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ANTÓNIO LAGE RAPOSO

Acolhimento de retornados pela Igreja em 1975 foi “ato de grande coragem”

06 dez, 2024 - 08:00 • Ângela Roque

Presidente da Cáritas Portuguesa no pós-25 de Abril recorda momentos altos do seu mandato, em que a instituição se reestruturou e acabou por ser pioneira em várias áreas, como na criação dos primeiros centros de dia do país. Decisão de ajudar quem chegava das ex-colónias foi tomada nos jardins da Quinta do Bom Pastor, na Buraca, onde está hoje o grupo Renascença.

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Lage Raposo. "Acolher de retornados" pela Igreja em 1975 foi “ato de grande coragem”
Foto: Beatriz Pereira/RR

O papel da Cáritas Portuguesa foi determinante nos anos quentes que se seguiram à Revolução dos Cravos. O livro "Mudar Vidas. A Igreja em Ação", dos jornalistas António Marujo e Clara Raimundo, recentemente publicado, recorda o mandato de António Lage Raposo à frente da instituição católica entre 1976 e 1982.

A Cáritas - que, tal como a Renascença, chegou a ser ocupada por militares - reestruturou-se nessa altura, para responder aos desafios que eram crescentes. Da criação dos primeiros centros de dia, à dinamização de cooperativas para autoconstrução de habitação, até ao acolhimento de quem chegava das ex-colónias, a instituição tornou-se pioneira em muitas respostas sociais.

Em entrevista à Renascença, o antigo empresário começa por recordar o episódio que acabaria por o conduzir à liderança da Cáritas. No ano quente de 75 houve um cerco ao Patriarcado. António Lage Raposo era então o responsável pela Pastoral Familiar da diocese, e fez questão de se solidarizar com o Patriarca da altura, o cardeal D. António Ribeiro, e lançou-lhe um desafio.

O que a gente pode fazer é acolher os retornados. Eu propus isto assim ao Patriarca, e ele disse 'eu vou nisso! Vá ter comigo à Buraca e conversamos lá com o Reitor (do seminário dos Olivais)'. Assim aconteceu.

A conversa fez-se na Quinta do Bom Pastor – curiosamente no mesmo local onde hoje estão instalados o grupo Renascença e a própria Conferência Episcopal - entre Lage Raposo, D. António Ribeiro e o então reitor do seminário dos Olivais, José Policarpo, que inicialmente teve dúvidas. Mas o cardeal decidiu avançar.

“O Patriarca disse ‘eu acho que devemos fazer isto'. E fizemos. Dois meses depois estávamos a receber retornados no Seminário dos Olivais”, bem próximo do aeroporto onde as pessoas se amontoavam. “O Patriarca cedeu as instalações dos Olivais, como cedeu depois as do Seminário de Almada, e nestes dois locais recebeu-se muita gente”, conta.

A conversa teve lugar em junho de 75. O acolhimento começou a ser feito em agosto e decorreu até final de 75, lembra o antigo presidente da Cáritas, que considera que a Igreja teve ”uma atitude de uma enorme coragem! Quer dizer, o país estava todo na incerteza maior, no meio do PREC, em 75, e é nessa altura que o Patriarca toma esta decisão. É uma coisa absolutamente notável”.

E qual foi a reação dos políticos? “Eu fui propor isto a quem tomava conta do assunto dos retornados nessa altura e disseram-me 'a única instituição que reconhecemos é a Cruz Vermelha. Se quiserem funcionar como pensão, funcionem'. E foi assim”.

Foi na sequência desta operação que António Lage Raposo foi convidado para presidir à Cáritas, a partir de 1976. À Renascença fala num tempo de “grande liderança” na Igreja. “Tive uma fantástica relação com a Conferência Episcopal, nessa altura com o Patriarca (D. António Ribeiro), e com a Comissão Episcopal, que era liderada pelo D. Manuel Martins, e também com quem estava nessa altura como assistente na Cáritas, que era o Padre Serrazina. Tudo funcionou magnificamente”, sublinha.

“Eu era um voluntário, tinha a minha vida, era empresário, e o que me salvou nisto foi ter um secretário-geral fabuloso, que infelizmente já cá não está. Foi o Afonso Sampaio Soares”. Um verdadeiro “trabalho de equipa”, que agradece.

É um passado histórico do qual a Igreja e a Cáritas podem orgulhar-se? “Não me compete a mim dizer. Mas acho que sim”, responde. Antigo empresário, acredita que a sua experiência profissional o ajudou a exercer o cargo, sobretudo na gestão. “Isto envolveu muito dinheiro, como se calcula. A Cáritas deu, nessa altura, uma ajuda estimada entre 350 e 400 mil diárias no acolhimento aos retornados, e tudo isto foi feito muito à base de voluntários”.

Durante o seu mandato a Cáritas reestruturou-se. “Até àquela data era uma organização de assistência imediata, porque fazia distribuição de alimentos e de roupas, e era isto. Já estava espalhada pelo país, onde tinha delegações. O Patriarcado de Lisboa, que nessa altura era quem dominava mais a situação, tinha enviado para lá o Padre Serrazina. O D. António Marcelino, que foi bispo auxiliar de Lisboa e depois bispo de Aveiro, estava nessa altura num secretariado de ação social, fizeram uma remodelação de estatutos e puseram a Cáritas Portuguesa ao estilo já de uma tendência que vinha de Roma, de que a Cáritas fosse o rosto e a marca de ação social da Igreja. Foi já nesta situação e com esse tipo de estatutos que eu entrei para a Cáritas”.

Nessa altura “houve a nomeação da Comissão Episcopal. O primeiro presidente foi o D. Manuel Martins, de Setúbal, mais o D. António Marcelino, e um bispo auxiliar do Porto, D. Domingos Pinho Brandão. Mas já depois da minha saída foi criado um secretariado, e aí quebrou-se outra vez (esse modo de trabalhar). A marca Cáritas continua a ser muito forte, a tendência, em termos gerais, é que seja usada na generalidade da Ação Social da Igreja, mas considero que aqui se deu um passo atrás com a criação do secretariado” da Pastoral Social. Por estar acima da Cáritas? “Sim. Não há tanta autonomia. Naquela altura estávamos mais numa situação sinodal do que estamos hoje”, conclui.

Habitação e centros de dia

Nos seis anos em que António Lage Raposo foi presidente houve muitos momentos que exigiram capacidade de resposta, como as cheias de 1979, ou o sismo de 1980 nos Açores. A necessidade aguça o engenho, e foi nessa altura que a Cáritas dinamizou a criação de cooperativas de autoconstrução de habitação. Antonio Lage Raposo recorda o bairro que fizeram na Ameixoeira, em Lisboa, e a ajuda que deram tanto em Alverca, onde havia desalojados das cheias, como em Angra do Heroísmo, que ficou destruída.

“Fomos lá com uma delegação, verifiquei que a situação na cidade estava para além das capacidades técnicas da Cáritas, mas que na zona rural e semi-rural era interessante uma solução de autoconstrução de grupo. E foi assim que se passou a atividade da Cáritas em Angra”, conta, lembrando que “as cooperativas, na maior parte das vezes nem eram formais. As pessoas juntavam-se naturalmente, elas e os vizinhos, e faziam o conjunto das casas. Isto só é viável no momento em que há uma catástrofe, porque é todos ao mesmo tempo, unidos. Propícia uma ação de grupo”.

A Igreja ajudou a financiar a construção de casas nos Açores depois do sismo. “A Conferência Episcopal promoveu um peditório nacional. Devo dizer que em valor real foi o maior peditório que a Cáritas alguma vez teve foi esse. Vinha já esse hábito a partir dos retornados, havia condições para as pessoas se interessarem e confiarem que a Cáritas era capaz de ser uma resposta para a situação. E de facto as pessoas mobilizaram-se bastante”.

É também da altura do seu mandato o lançamento da atual rede de centros de dia e dos lares de idosos. O país já tinha um problema de falta de respostas antes, mas a situação agravou-se com a chegada dos retornados. “À medida que se iam arrumando as famílias que eram acolhidas pela Cáritas nos centros de acolhimento, começaram a ficar para trás os mais idosos, que já não tinham condições de retomar uma vida ativa. Isto pôs pressão nessa área”. Mas, não havia as respostas que há hoje.

"Fomos à Alemanha perceber o que é que se ia passando por lá. A Cáritas alemã interessou-se muito pelo assunto e acabou por nos financiar um programa, para alavancarmos 30 centros de dia. Porque fazer lares era muito complicado, era muito dinheiro. Mas os centros de dia eram uma primeira agregação para - nas aldeias, particularmente - as pessoas terem algum apoio, terem sociabilidade. Eram umas unidades interessantes. E foi assim que financiámos as tais 30. Os jornalistas que levantaram os números dizem que a certa altura já havia 40, e hoje já há mais de mil”, refere.

Não tem dúvidas de que a Cáritas continua a ser uma ajuda fundamental no país, onde a taxa de pobreza ainda é elevada, e há cada vez mais novos pobres, incluindo entre os que até têm trabalho.

A Cáritas é hoje uma rede no país e dá a resposta que vai podendo sob vários aspetos, até sob o aspeto do pensamento. Temos um programa com as Cáritas diocesanas e as universidades, para fomentar a pesquisa em matérias social e fazemos a publicação, por concurso, das teses de dissertação”.

Igreja também tem de enfrentar a "mudança de civilização"

Pelos 50 anos do 25 de Abril António Lage Raposo lamenta que se esteja outra vez em crise, mas com outros contornos. “Estamos em guerra, não há que olhar para isso de outra maneira. O mundo está a mudar, também por causa disso, mas por razões que são tecnológicas, de desenvolvimento, conhecimentos, isto da Inteligência Artificial e outras coisas, a passagem dos automóveis para os elétricos… Estamos numa completa mudança, quase diria, de civilização”, com reflexos também na Igreja.

“É claro que isto se reflete na Igreja, porque a Igreja tem de dar a resposta em cada época aos problemas daquela sociedade. O que quer dizer que nunca tem a resposta feita, tem de a elaborar nessa altura. Ora, nós tivemos uma reelaboração com o Vaticano II e neste momento estamos a arrancar outra. Há que olhar as coisas assim”. Mas, podemos olhar com esperança? “Se só temos dificuldades, há que enfrentá-las e vencê-las, mais nada! Há que ser muito criativo”.

O atual caminho sinodal, diz, “é uma das linhas da resposta”, mas “é absolutamente necessário mais envolvimento dos leigos no conjunto da Igreja”, porque “os problemas são da sociedade civil. Eu sou um homem que venho da ação católica, a nossa formação de base era ligada à intervenção nos meios, como se dizia nessa altura, portanto, na sociedade. Mas, apesar de tudo, a Igreja hoje está mais virada para os problemas. Naquela altura estávamos ainda bastante com o espírito de saída da guerra. Neste momento, não. Os problemas são outros, são de globalização, de visão para uma sociedade diferente e como é que se faz a transição. Há que ter uma enorme atenção. E a Cáritas tem feito o seu caminho de evolução em cima desta situação social”.

Aos católicos, neste tempo de Advento, pede que se lembrem que “todos os dias estão a morrer pessoas numa situação de guerra. E nós estamos cá um pouco mais longe, mas precisamos de ter mais consciência da gravidade do momento e do que é preciso investir em esperança, em confiança, e em fazer aquilo que é preciso fazer”.

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  • EU
    06 dez, 2024 PORTUGAL 11:19
    Aqui, a reunião serviu para receber quem FOI EXPULSO sem pestanejar. A reunião na PONTINHA tinha como intenção LIQUIDAR meia dúzia DELES. O meu pedido vai sendo concretijado, pois isto É HISTÓRIA VERDADEIRA. É isto que eu peço.

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