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Entrevista a Renzo Pegoraro

"A Europa é um continente que perdeu a alma"

09 nov, 2024 - 08:15 • Ana Catarina André

O chanceler da Pontifícia Academia para a Vida critica as sociedades que aceitam a eutanásia e alerta para o risco de a medicina “perder de vista o bem geral da pessoa”. Para o padre Renzo Pegoraro, a Europa “perdeu um pouco a identidade e não sabe para onde ir”

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Estudou Medicina, Filosofia e Teologia, em Roma e em Pádua. Aos 65 anos, Renzo Pegoraro é chanceler da Pontifícia Academia para a Vida, o organismo criado pelo Vaticano para "defender e proteger o valor da vida humana e a dignidade da pessoa".

Em entrevista à Renascença, em Roma, onde trabalha, o sacerdote italiano, que é também professor, diz que “uma sociedade que aceita a eutanásia e o suicídio assistido envia a mensagem de que, sob certas condições, a vida pode ser interrompida, em vez de ser acompanhada”.

Renzo Pegoraro considera, ainda, que “seria importante” que a Igreja em Portugal participasse no debate parlamentar, cultural e social sobre a criopreservação de embriões. “Muitas vezes, falta conhecimento básico sobre quem é o embrião, como se desenvolve a vida humana”, sublinha.

Tem-se recorrido a uma linguagem que fala em direitos para justificar temas como a eutanásia e o aborto. Aliás, este ano, o parlamento europeu aprovou uma resolução para que o aborto seja incluído na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Como é que olha para esta questão?

O mundo ocidental tende a ver muitas coisas de acordo com as categorias da liberdade e do direito. A liberdade, a minha liberdade, autodeterminação é exaltada, perdendo-se de vista a dimensão das relações e do bem comum. Portanto, a minha liberdade que se torna superior a muitos outros valores, outros princípios.

Em segundo lugar, os direitos que perderam um pouco a característica de direitos universais e passam a ser os meus direitos. Os meus têm precedência sobre os direitos dos outros e cria-se uma tensão difícil de gerir. Há aqui também um discurso cultural, social, moral a fazer, e é preciso também perceber que as leis podem expressar certos valores e princípios, como o valor da vida humana, mesmo na doença. É importante saber hoje quais são os problemas do fim de vida e compreender, também, as soluções para uma boa assistência, evitando dois riscos.

Quais?

Em primeiro lugar, o que é vulgarmente chamado de encarniçamento terapêutico, tratamento excessivo. A medicina tem muitos meios à sua disposição, mas corre o risco de perder de vista o bem geral da pessoa, fazendo uma abordagem parcial, ou seja, curando o órgão e esquecendo a pessoa.

A Igreja definiu há muito o dever de evitar formas de encarniçamento terapêutico, com o critério fundamental da proporcionalidade, ou seja, quando o tratamento se torna desproporcional em relação aos benefícios que traz para a pessoa.

No entanto, definir a proporcionalidade implica elementos objetivos que são da competência sobretudo do médico, mas também elementos subjetivos, pessoais, de natureza psicológica e espiritual. Insistimos, não só na Igreja, mas também na sociedade, em valorizar as relações, a família, as pessoas que nos rodeiam, para que seja uma escolha cada vez mais partilhada e não individualista.

A vida é sempre preciosa, mesmo que a pessoa esteja doente ou numa etapa avançada.

Isso leva-nos ao tema da solidão....

Exatamente. Hoje, a ideia da minha liberdade e do meu direito existe num contexto de sociedade neoliberal, muito individualista – já não existe a pessoa, mas o indivíduo, um indivíduo mais desligado das relações, da família, do contexto. E assim perdemos de vista o todo das coisas.

Portanto, por um lado, não à obstinação terapêutica e, por outro, não à eutanásia ou ao suicídio assistido. Trata-se de acreditar que o médico e a sociedade estarão sempre prontos a cuidar das pessoas. A lei reconhece que o doente tem direito a dizer não, mas isto não significa que seja sempre moralmente legítimo – depende da responsabilidade moral da pessoa de recusar algo que pode ou não funcionar. Mas há um limite social para dizer: respeita-se a vontade do doente mesmo quando ele diz não, mas o médico ou enfermeiro não colabora para provocar a morte do sujeito.

Uma coisa é o discurso da informação, do consentimento, da liberdade do doente, que gostaríamos de ver cada vez mais inserido num contexto social, relacional, e não isolado. Por outro lado, o estado, o sistema de saúde, que nos diz para curar pessoas, que perante determinadas situações pára, mas não colabora na morte. A vida é sempre preciosa, mesmo que a pessoa esteja doente ou numa etapa avançada. Aqui vemos a importância dos cuidados paliativos.

Repito: é uma mensagem cultural, mas também jurídica, a de que o Estado garante o cuidado das pessoas, mesmo quando estas não podem ser curadas. Minimiza a dor, dá apoio psicológico, acompanha espiritualmente, apoia a família – cada vida é curada, aceitando que termina, porque somos todos mortais –, mas não abandona, nem vê na eutanásia uma forma de resolver os problemas. Uma sociedade que aceita a eutanásia e o suicídio assistido envia a mensagem de que, sob certas condições, a vida pode ser interrompida, em vez de ser acompanhada.

Recentemente, foi usada na Suíça uma cápsula para suicídios. Que precedente é este que se abriu?

Essa cápsula foi considerada ilegal pelo tribunal. A ideia de que posso decidir sozinho, sem relação com o médico, a família, representa o fracasso completo. A liberdade e o direito são importantes e devem ser reconhecidos, mas também devem ser equilibrados no sentido da responsabilidade, da pertença a uma comunidade. Caso contrário, tornam-se uma espécie de cancro, que cresce demasiado, come tudo o resto e consome a vida.

A era do Cristianismo na Europa acabou

Nos últimos tempos, tem-se discutido em Portugal o tema da criopreservação de embriões, sobretudo por causa da alteração legislativa que pôs fim ao anonimato dos dadores. Teme que haja uma banalização crescente do número de embriões criopreservados?

Houve, durante muitos anos, um debate sobre como evitar as consequências do congelamento de embriões – a Igreja sempre disse para que se evitasse. A lei italiana aprovada em 2004 previa que a cada ciclo de fertilização os embriões obtidos, no máximo dois ou três, fossem todos implantados no útero materno. Se as coisas não corressem bem, o ciclo teria de ser repetido, para evitar embriões congelados. A

lei, entretanto, mudou e é possível o congelamento em determinadas situações. Passado um certo tempo, pergunta-se ao casal se desejam outra gravidez, ou se se consideram abandonados. Nesses casos, são recolhidos num único centro nacional. Também aqui, como noutros países, se coloca o problema do congelamento por cinco anos. Deve prolongar-se esse período ou suspendê-lo, deixando os embriões morrerem?

Trata-se de uma decisão com diversas implicações…

O problema subjacente não é apenas técnico. Trata-se de compreender, em primeiro lugar, quem é o embrião, que forma de respeito exige, como garantir a sua vida e integridade. Seria importante enquanto Igreja, em Portugal, participar no debate parlamentar, mas também no debate cultural e social.

Muitas vezes, falta conhecimento básico sobre quem é o embrião, como se desenvolve a vida humana. Parece impossível, mas muitas pessoas não estão bem informadas, e mantêm certos preconceitos e posições ideológicas que não são não científicos. Trata-se, portanto, de fornecer e promover uma informação correta, válida para todos, crentes e não crentes, sobre quem é o embrião humano, quando começa a vida humana, o que significa o desenvolvimento embrionário, o que significa congelar um embrião, que sentido tem, etc.

Em segundo lugar, há a responsabilidade moral de respeitar a vida do embrião: Como combinar as novas tecnologias, a fertilização in vitro com a transferência de embriões, etc., com o respeito pela vida e pela integridade dos embriões. Em terceiro lugar, é preciso intervir a nível legislativo, para garantir tanto quanto possível o respeito pelos embriões.

Estas crianças que nascem através destes procedimentos de fertilização in vitro vão deparar-se em adultas com questões como: Quem eram os meus pais? Quem é a minha família? O que explica que tenha sabido disso tão tarde (nos casos em que assim foi naturalmente)? Ou seja, o problema também se põe do ponto de vista do impacto no crescimento destas crianças.

A questão tem diversos aspetos. Como dizer a alguém que foi concebido em proveta? Quem lhe diz isso? Os pais? Há razão para isso? Os dados da literatura são muito variados. Em segundo lugar, é ainda difícil compreender o impacto na pessoa – para uns não muda muito se a família for boa, saudável; para outros cria-se um fantasma. Há outros casos ainda em que as consequências são mais graves, porque o pai biológico é diferente do pai afetivo e social.

Há ainda uma terceira questão, nas situações de doações anónimas. Deve permanecer anónimo ou pode ser conhecido? Aqui colocam-se diversos aspetos éticos, morais, mas também jurídicos. Há Estados em que o anonimato se mantém. Há outros que permitem que, ao fim de 18 anos, seja conhecida a identidade do doador. O assunto é ainda mais complicado nas barrigas de aluguer – e isto é válido para doações femininas e masculinas. São questões que devem ser seguidas do ponto de vista cultural e social, para compreender como é que a Igreja pode participar na discussão, recordando os valores básicos do respeito pela vida humana, pela dignidade do embrião e pelo casal.

A comparação com o Islamismo também pode ser muito positiva.

Todas estas alterações que são também sociais estão, na sua perspetiva, relacionadas com a perda da identidade cristã da Europa?

A questão é muito complexa. Aceitamos mais ou menos que a era do Cristianismo na Europa acabou. Não somos uma sociedade formalmente e oficialmente cristã. Estamos num mundo muito secularizado, que está a tornar-se pluralista a nível religioso, com o Islão, as religiões orientais, etc.

Por isso, precisamos de compreender o que é a Europa, qual o seu contexto histórico. É claro que é judaico-cristão, mas o importante é a profundidade dessas raízes, a fonte. Mais do que as raízes, talvez a imagem seja a da fonte. É preciso ver se a fonte ainda dá água ou está cada vez mais pobre – este é um dos grandes problemas. Diria, de forma algo provocadora, que a Europa é um continente que perdeu a alma. Perdeu um pouco a identidade e não sabe para onde ir.

Nas cartas europeias ainda existem valores como a solidariedade, a dignidade humana, a justiça, mas são um pouco formais e pouco substanciais. Depois, é necessário perceber como dar força às fontes e conteúdo a esses valores que não são apenas superficiais, mas são mais profundos. Há também uma grande necessidade de espiritualidade, porque a ciência, a tecnologia, a política e a economia precisam de alma, e o espírito ajuda a perceber quem somos e para onde vamos. A Europa pensa avançar descurando muito este aspeto.

Esquecendo-se disso?

Ficou muito na esfera privada que está limitada a determinadas situações. É um grande desafio perceber como poderá tornar-se uma realidade importante na vida, no pensamento e na política da Europa. A comparação com o Islamismo também pode ser muito positiva, porque nos obriga a repensar a identidade e a forma de interpretar determinados valores e a importância da religião na vida pública. Para a Europa é uma comparação importante, difícil e complexa, mas talvez pudesse ser interessante recorrer a experiências históricas.

Penso em Espanha, ou na Sicília, em Itália: a forma como elaboraram uma coexistência nos séculos passados poderia fornecer elementos interessantes também para o futuro. Um dos problemas é que, por vezes, já não temos um bom conhecimento da História. Depois, esquecemo-nos que já enfrentámos certos problemas há 500 anos – não se trata de voltar atrás, mas de aprender com a História a olhar para a frente. Este é um grande desafio que a Europa enfrenta atualmente.

O Papa Francisco consegue chegar a crentes e a não crentes. Acha que tem sido eficaz no que diz respeito a estes temas ligados à vida?

É importante e preciosa a intervenção do Papa Francisco que fala a todos – os Papas ou a Igreja sempre falaram a todos os homens e mulheres de boa vontade. É uma mensagem que tenta sempre encontrar valores partilhados, com a forte ideia do Papa Francisco de uma fraternidade universal, Frattelli Tutti, de que todos pertencemos ao mundo humano, à humanidade, à fraternidade humana e vivemos na mesma casa.

A Laudato Si diz que devemos cuidar da casa comum, crentes e não crentes. Neste sentido, pode haver valores como a fraternidade e a responsabilidade pelo ambiente, pela criação, que possam encontrar um certo consenso e colaboração, tal como alguns valores básicos que o Papa reclama como o respeito pela vida humana, o conceito de justiça, a atenção aos mais pobres e vulneráveis, entre os quais incluímos também os embriões, os idosos, os doentes, os deficientes.

No próximo ano, há um jubileu dedicado à esperança e o Papa insiste que sem esperança fazemos pouco. Por outro lado, se trabalharmos juntos podemos alimentar e cultivar a esperança. Todos os temas da vida estão ligados à esperança, seja para melhorar, para se curar ou para dar sentido à própria morte.

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