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ENTREVISTA a Ana Luísa Pinto

"O Papa sabe que o contributo das mulheres enriquece a Igreja"

05 out, 2024 - 11:00 • Ângela Roque

A conselheira geral das Religiosas do Sagrado Coração de Maria, em Roma, congratula-se com os passos que têm sido dados para uma maior presença de mulheres nos órgãos de decisão eclesiais. Em entrevista à Renascença, a irmã Ana Luísa Pinto diz que “desmasculinizar” a Igreja é inerente à sinodalidade que o Papa quis imprimir a este processo, que espera seja para manter.

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Entrevista a Irmã Ana Luísa, conselheira geral das Religiosas do Sagrado Coração de Maria
Oiça aqui a entrevista à Irmã Ana Luísa, conselheira geral das Religiosas do Sagrado Coração de Maria. Foto: DR

A conselheira geral do Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria, em Roma, manifesta, em entrevista à Renascença, o desejo de que "a sinodalidade tenha vindo para ficar".

“Andamos há três anos a aprender a caminhar juntos e teremos de continuar a praticar”, diz a irmã Ana Luisa Pinto, numa entrevista em que fala do empenho que tem havido no processo sinodal, e da esperança com que olha para o futuro da Igreja, face ao “caminho corajoso” iniciado.

Antes de assumir este cargo internacional, em 2019, a irmã Ana Luísa foi psicóloga nos colégios do Sagrado Coração de Maria em Lisboa e no Porto, fundadora do movimento juvenil CoMTigo, para a pastoral universitária, e antiga diretora do Centro de espiritualidade Jean Gailhac, na Costa Nova.

Como tem acompanhado o processo sinodal e o que destaca do caminho de escuta já feito?

Creio que o tempo que estamos a viver agora como Igreja é verdadeiramente um tempo de graça, de muitas oportunidades e possibilidades com o futuro. Penso que esta é a hora da possibilidade de darmos forma ao sonho do Concílio Vaticano II.
É interessante notar que a teóloga espanhola, Cristina Inogés, que participa no sínodo sobre a sinodalidade, escreve num dos seus artigos que esta é a hora de discernir a Igreja que temos e não queremos, a Igreja que temos e queremos e a Igreja que queremos e ainda não temos

Nós, consagradas e consagrados, com tantos cristãos em todo o mundo, graças a esta caminhada sinodal, estamos em movimento e numa atitude de busca, procurando responder ao desafio lançado pelo Papa Francisco. Ainda não tinha acontecido a abertura solene do Sínodo, em 2021, e também nós, religiosas do Sagrado Coração de Maria, em Roma, fomos surpreendidos com uma carta por parte do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, que nos convocava a tomar parte ativa no caminho sinodal. Desde nessa altura até hoje, quer pessoalmente quer como congregação, temos tido a possibilidade de participar em vários momentos de oração, reflexão, partilha de experiências, perceções, desejos que temos, sonhos, isto sobretudo nas igrejas locais dos vários países onde nós estamos presentes.

Também a convite da União Internacional das Superioras Gerais, fomos envolvidas em processos de consulta e discernimento, cujos frutos chegaram à Secretaria-Geral do Sínodo como contributo da Vida Consagrada à Assembleia Geral do ano passado.

Para mim, um dos aspectos mais surpreendentes neste processo sinodal talvez seja o convite à participação de todos, nos vários níveis da Igreja Católica, diria para além das fronteiras da Igreja Católica, até quem tem estado à margem. Têm sido muitos os encontros entre pessoas que encontraram tempo e espaço para escutar-se mutuamente e dialogar, inclusive sobre questões bem complexas e dolorosas. Isto não é habitual em muitos dos ambientes da nossa Igreja, é algo novo, que vale a pena sublinhar.

Que expectativas tem para o futuro da Igreja, para o pós sínodo?

Eu espero que possamos continuar o caminho corajoso que já iniciámos, de identificar aquilo que deve ser preservado na Igreja, aquilo que deve ser abandonado, aquilo a que nos dedicarmos como essencial e aquilo que podemos, e talvez devamos sacrificar, para que possa nascer uma outra forma e estilo de Igreja. Não se trata de outra Igreja, mas de uma Igreja diferente, outra forma que a Igreja pode assumir, e eu diria que talvez deva assumir, para que tenha futuro.

Espero que a sinodalidade tenha vindo para ficar. Nós andamos há três anos a aprender a caminhar juntos e teremos de continuar a praticar. O caminho sinodal é uma prática. Tantas vezes o Papa Francisco tem denunciado o clericalismo e eu creio que a única saída do clericalismo consiste em ativar amplamente, profundamente a lógica sinodal, no modo como tomamos decisões, como na Igreja realizamos discernimentos e como trabalhamos.

Ainda que se possa registar o mal-estar de muitos agentes pastorais, de organismos das dioceses, das paróquias, de mulheres que muitas vezes ainda são deixadas à margem, parece-me que estão a ser dados passos em frente.

Sem a participação ativa das mulheres a Igreja não pode tornar-se verdadeiramente e de facto sinodal.

O Papa quis contar com a ajuda das mulheres, religiosas e leigas, neste Sínodo. Foi um sinal importante e pode deixar marca na Igreja?

Parece-me que sim, para além das várias nomeações de mulheres para o envolvimento ativo na liderança e em ministérios da Igreja, que antes apenas eram reservados a homens, parece-me bem significativo o facto de, pela primeira vez, um Sínodo da Igreja ter também rosto de mulher. Entre os participantes, à volta de 20% são mulheres - mulheres a participar nas assembleias do sínodo e a tomarem parte ativa nas decisões. Portanto, eu creio que estão a ser dados passos em direção a uma presença cada vez maior de mulheres nos órgãos de decisão da Igreja, que é de resto um compromisso do Papa Francisco no caminho da sinodalidade.

Já no Sínodo da Juventude se tinha ouvido o apelo a uma mudança no que diz respeito à questão da reciprocidade entre homens e mulheres. No sínodo da Amazónia a questão foi trazida à tona ainda de forma mais clara, com o reconhecimento da reciprocidade entre mulheres e homens como um dever de justiça. Eu creio que o Papa Francisco sabe que a presença e a contribuição das mulheres para a vida e o crescimento das comunidades eclesiais enriquecem a Igreja e, de facto, não apenas enriquecem mas constituem a sua identidade.

A Igreja é uma comunhão de homens e mulheres que partilham a mesma fé e a mesma dignidade batismal. O próprio Papa Francisco reconhece que não temos ouvido suficientemente a voz das mulheres na Igreja e que é necessário que mulheres ehomens caminhem juntos em escuta do Espírito, que justamente possamos encontrar-nos e escutar-nos reciprocamente para - e este é um neologismo criado pelo próprio Papa Francisco – ‘desmasculinizar’ a Igreja. E este, a meu ver, tem de ser um propósito da própria sinodalidade, porque sem a participação ativa das mulheres a Igreja não pode tornar-se verdadeiramente e de facto sinodal.

O papel das mulheres já está a ser mais valorizado?

Eu creio que este sínodo sobre a sinodalidade está a mover algo. Isto é significativo. As mulheres estão a ser envolvidas no discernimento, na tomada de decisões na Igreja, sobre a Igreja. A voz das mulheres está a ecoar. Julgo, ainda assim, que há um longo e exigente caminho a percorrer na escuta das mulheres quanto à sua presença e ao seu papel na Igreja. Diria que a consciência da reciprocidade entre mulheres e homens precisará de crescer. Talvez precisemos de dar vida à cultura do nós, juntos. E acho que é necessário continuar a praticar a cooperação entre homens e mulheres em todos os níveis da Igreja. Mas devo dizer, honestamente, que há sinais de evolução no presente e olho o futuro com esperança.

O que está em causa neste Sínodo em curso é fundamental para a vida e missão da Igreja

No processo de escuta para o sínodo os católicos do mundo inteiro deram sinais sobre o que esperam da Igreja (temas como o acolhimento dos homossexuais, o acesso das mulheres ao diaconado , ou a ordenação de homens casados, etc). É positivo que o Papa tenha determinado a criação de grupos de trabalho para esses temas?

É natural que as expectativas sobre a 2ª Sessão do Sínodo, que está agora a decorrer neste mês de Outubro, fossem elevadas, sobretudo atendendo à amplitude de áreas e temas que emergiram da 1ª fase. Ao que parece, esta Assembleia de Outubro não será tanto sobre este ou aquele tema, mas incidirá sobre a sinodalidade, sobre como sermos uma Igreja missionária em caminho. Portanto, imagino que as questões teológicas e propostas pastorais de mudança terão este objetivo.

O próprio instrumentum laboris para a 2ª Sessão é diferente do anterior. Se para a 1ª Sessão era importante evidenciar a amplitude dos temas a tratar, o documento de trabalho para esta Sessão de Outubro pretende evidenciar alguns nós a desatar, por assim dizer, para responder à pergunta ‘como ser uma Igreja sinodal em missão?’, tendo em conta o caminho feito até agora e propondo argumentos teologicamente fundamentados, juntamente com algumas propostas concretas para ajudar ao discernimento.

O que está em causa neste Sínodo em curso é fundamental para a vida e missão da Igreja, no que diz respeito à compreensão da identidade sinodal da Igreja e ao modo efetivo como se realiza a missão de anunciarmos hoje o Evangelho de Jesus.

Relativamente aos temas complexos, ou até mesmo fraturantes, entre os quais aqueles que referiu na sua pergunta, os participantes da 1ª Sessão em Outubro de 2023 consideraram que iriam requerer mais aprofundamento, portanto, relativamente a estes temas, o Papa Francisco criou uma dinâmica paralela de estudo e reflexão, os tais grupos de trabalho. Estes grupos têm vindo a trabalhar em articulação com os dicastérios da Cúria Romana e eu penso que este é um dado que nos traz esperançasobre a continuidade da reflexão do discernimento e da própria concretização futura. Portanto, imagino que nesta 2ª Sessão os grupos em torno destes temas poderão apresentar um ponto de situação a ser considerado ainda durante esta 2ª Sessão a decorrer.

Claro que há quem pergunte o que vai acontecer com os resultados destes grupos depois de serem apresentados, ou o que irá fazer o Papa Francisco com estes estudos que pediu. São questões ainda em aberto e em reflexão.

Pessoalmente, penso que temas eclesialmente exigentes, até culturalmente sensíveis, pedem tempo de maturação à luz do Evangelho e da experiência humana. Pedirão certamente reflexão teológica, talvez até diálogo com as ciências sociais ehumanas, e certamente mais discernimento pessoal e comunitário. É legítimo e necessário olhar de frente os temas quentes. Porém, eu gostaria de dizer que o próprio tema fundamental para a vida e missão da Igreja, que é o tema da sinodalidade, e depois também a forma de governo que realiza com os seus pressupostos teológicos e as suas implicações práticas, não é, de todo, pacífico na Igreja.

O Papa Francisco tem sido fiel ao projeto de uma Igreja descentrada de si mesma. Ele deseja afastar a Igreja da autorreferencialidade e colocar no seu centro Jesus Cristo e o seu Evangelho

Que balanço faz do pontificado do Papa Francisco?

Um dos núcleos centrais do seu pontificado tem sido precisamente recuperar o anúncio da mensagem cristã por meio de uma Igreja que anuncia o coração da mensagem de Jesus Cristo. Creio também que o Papa Francisco tem sido fiel ao projeto de uma Igreja descentrada de si mesma. Ele deseja afastar a Igreja da autorreferencialidade e colocar no seu centro Jesus Cristo e o seu Evangelho. Uma Igreja que sai da sua zona de conforto e vai ao encontro dos outros, do mundo, em compaixão e em misericórdia.

Eu creio que o Papa Francisco acredita genuinamente na dignidade de toda a pessoa humana. Durante o seu pontificado, temo-lo visto ir ao encontro das periferias, das margens da sociedade. Muitos passos tem dado, com coragem e com audácia. Por exemplo, clamando por compaixão pelos católicos divorciados e recasados que desejam receber a Eucaristia; desafiando a sociedade ao acolhimento, à hospitalidade para com os refugiados, imigrantes; continuamente pregando a integridade ecológica face às mudanças climáticas que estão a ser devastadoras; defendendo os pobres, os marginalizados. E poderia mencionar vários outros exemplos.

O Papa dá exemplo do tipo de liderança que o nosso mundo precisa. O sonho que tem para a Igreja, os sonhos que tem partilhado connosco, são proféticos. É uma Igreja sinodal missionária.

O Papa Francisco deseja uma Igreja-povo de Deus caminhando juntos em saída, que tenha coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho. É uma Igreja que ultrapassa as fronteiras de toda a ordem da Igreja Católica e que se dispõe ao diálogo com o mundo de hoje. Uma Igreja que procura construir pontes, acolher todos de braços abertos, semdiscriminação ou preconceitos. Uma Igreja reconciliadora, de portas abertas. Tão bonita esta imagem! Uma Igreja de portas abertas como símbolo de uma comunidade que inclui, que promove a inclusão. Nas palavras do próprio Papa, uma Igreja que evangeliza e que vive a alegria do Evangelho que anuncia. Então, eu vejo isto como grandes novidades da liderança de Francisco e que creio são também grandes desafios para todos nós, Igreja.

Estamos às portas do Jubileu da Igreja, convocado para 2025, e o tema ’Peregrinos da Esperança’, e o próprio evento, oferecem testemunho do estilo de pontificado do Papa Francisco. É um chamamento a fazermos caminho, a sermos peregrinos da esperança profética, da esperança que o nosso tempo e o mundo hoje tanto precisam. Então, creio que o Jubileu do próximo ano será uma espécie de prolongamento do Sínodo sobre a Sinodalidade. Espero que assim seja, para que continuemos a desfrutar da reconstrução daquela Igreja que o Concílio Vaticano II tão bem desenhou e que, no fundo, nós desejamos.

A minha maior esperança é que cheguemos como Igreja onde o Espírito nos quer levar.

Comentários
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  • Bernardino Nasciment
    09 out, 2024 bernadinonascimento3@gmail.com 22:30
    Parabens Irmã Ana Luisa Pinto 🙏🙏
  • Ir. Rosinha, RSCM
    09 out, 2024 Brasil 01:57
    Discussáo enriquecedora, alargando os nossos horizontes!
  • Sara
    08 out, 2024 Lisboa 13:18
    O papa devia rezar por Portugal tanta mulher a desaparecer e a ser morta, que este silêncio de quem nos governa, devia ser julgado , o que está acontecer no nosso país, nao são casos pontuais, é só mais uma, que desapareceu, que morreu e que foi violada
  • Maria Helena Morra
    07 out, 2024 Belo Horizonte / Brasil 21:20
    Excelente reflexão !! Esclarecedora com uma reflexão profunda . Parabéns !! Adorei !!

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