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Abusos na Igreja. “Em muitos casos partimos da estaca zero” para calcular compensações

19 set, 2024 - 18:05 • Ângela Roque , Ana Catarina André

Entre as 47 vítimas de abusos sexuais na Igreja que já pediram para ser indemnizadas, “15 ou 20” têm de prestar novo depoimento, mesmo tendo já preenchido o questionário da Comissão Independente. “Se não há um documento que o ateste, para nós não existe”, diz à Renascença Rute Agulhas, do Grupo Vita.

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Rute Agulhas, coordenadora do Grupo Vita, garante que há total respeito pelas vítimas de abusos sexuais na Igreja, mas diz que quem contactou a extinta Comissão Independente (CI), liderada por Pedro Strecht, vai mesmo ter de ser ouvido de novo, no âmbito do processo de atribuição de compensações em curso. Em declarações à Renascença, a psicóloga explica que não podia ser de outra forma, porque os registos anteriores foram destruídos.

“Como essa informação não está documentada, não nos chegou de forma alguma, naturalmente vamos ter de perguntar”, explica Rute Agulhas, dizendo que estas situações “não podem ser confundidas com as outras”, de pessoas que foram sinalizadas pelo Grupo Vita ou pela Comissão Diocesana respetiva. “O seu relato está escrito, documentado e está na nossa posse”, garante.

Esta semana, o método de trabalho utilizado pela extinta Comissão Independente, liderada por Pedro Strecht, nomeadamente a validação de depoimentos anónimos, bem como a destruição de parte dos dados fornecidos pelas vítimas, levou a uma troca de acusações entre os membros das duas estruturas criadas pela Igreja para estudar o fenómeno dos abusos sexuais e acompanhar as pessoas que foram alvo destes crimes.

Em comunicado, divulgado na quarta-feira, dia 18, a Comissão Independente garantiu que a validação dos relatos “foi considerada a partir de diferentes e apertados critérios que pudessem evitar a existência de falsos testemunhos” e adiantou que a “destruição da base de dados, em março de 2024 (de que a CEP teve previamente conhecimento), seguiu protocolos de pesquisa utilizados em temas considerados particularmente sensíveis (…)”, acrescentando que foram cumpridas as normas europeias de proteção de dados.

Em resposta, Rute Agulhas reafirmou que, “de acordo com a boa prática”, a validação dos depoimentos “não é passível de ser feita com rigor apenas com base em relatos escritos anónimos”. “A validação de um relato (ou, dito de outra forma, a avaliação da sua credibilidade) exige uma avaliação aprofundada, apenas possível com uma ou mais entrevistas presenciais, tal como definido em protocolos de avaliação forense nacionais e internacionais”.

“Grupo Vita não pode tratar de pessoas anónimas”

À Renascença, D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal (CEP), confirma que a informação recolhida pela CI foi quase toda destruída, mas diz que isso estava previsto desde o início.

“Estes dados da Comissão Independente foram depurados de tudo aquilo que pudesse ser caminho de reconhecimento e identificação de pessoas, por causa da lei da proteção de dados e do respeito pelas vítimas, mas também de eventuais agressores”, indica D. José Ornelas.

O também bispo de Leiria-Fátima acrescenta: “O anonimato da maioria dos depoimentos feitos à Comissão Independente não era aí um obstáculo, porque se tratava de caracterizar situações, tipificar abusos, para motivo de estudos. Isso foi algo importante, porque mexeu com a sociedade civil e a Igreja, e deu origem a todo este trabalho que estamos a fazer”. De acordo com o presidente da CEP, este anonimato “não serve para o momento atual para o Grupo Vita”.

“O Grupo Vita com os seus objetivos e com a sua metodologia não pode tratar de pessoas anónimas. Eu não marco consulta para uma pessoa anónima, nem recebo uma pessoa anónima. São pessoas concretas que vêm falar, e que precisam de ser atendidas. Neste momento, esta presença e identificação das pessoas está na base de qualquer possibilidade de ajudar [as vítimas]”, diz o bispo, considerando que não se trata de dar razão à CI ou ao Grupo Vita. “São fases diferentes que exigem metodologias diferentes”.

Entre 111 pessoas há 47 que querem compensação

Ainda que a maioria da informação recolhida pela Comissão Independente tenha sido eliminada, Rute Agulhas confirma que em três casos, e com o consentimento das próprias vítimas, a Comissão Independente transmitiu elementos ao Grupo Vita. “A CI enviou-nos alguma informação, mas muito escassa, e mesmo nestas situações sentimos necessidade de entrevistar as pessoas. Os dados foram poucos para aqueles que são necessários reunir e recolher, com vista a uma avaliação do dano para a atribuição de uma compensação financeira”.

A psicóloga confirma que, até agora, já contactaram o Grupo Vita 111 pessoas – “vítimas não anónimas, que reportaram a sua situação”. Destas, 47 querem uma reparação financeira. Segundo Rute Agulhas, quem já fez o pedido vai começar a ser ouvido em outubro, num processo inicialmente previsto para arrancar em setembro, mas que se atrasou. “Vamos agora dividir-nos por zonas geográficas, para fazermos o atendimento das pessoas na zona do Porto, Braga, Coimbra. Temos um pedido relativamente aos Açores e outro à Madeira.”

Cada pedido de indemnização vai ser avaliado “caso a caso”. "Apesar de as pessoas sentirem – e eu percebo isso – muita revolta, porque já preencheram um questionário (algumas até falaram pessoalmente com alguns elementos da CI), [o seu relato] não está documentado. Não há um relatório, não há uma informação que nos ateste que aquela pessoa, de facto, escreveu ou disse aquilo”, diz Rute Agulhas, acrescentando que, tal como anunciado anteriormente, há também vítimas a receber apoio psicológico e psiquiátrico.

Apelo à “serenidade” e a que se confie no processo

Segundo Rute Agulhas, a troca de acusações dos últimos dias entre a Comissão Independente e o Vita “cria ruido” e pode ter impacto no processo de apoio às vítimas. “Começam a proliferar artigos de opinião de pessoas, até de outras áreas muito distintas, que se pronunciam sem conhecimento de causa concreto sobre o que é uma avaliação do dano. Nas redes sociais também vai havendo comentários”, constata.

Neste momento, a psicóloga pede que se confie no processo e nas estruturas criadas. “Temos de nos recentrar no essencial, transmitir a todas as pessoas esta mensagem de serenidade e calma, porque este processo vai decorrer de acordo com aquilo que são as boas práticas, que outros países já têm vindo a desenvolver. Não é uma mera opinião do Grupo Vita ou da Conferência Episcopal Portuguesa. Houve um processo para chegar a este regulamento, que é ponderado e refletido, e teve a consulta de diversos especialistas”.

Apesar da polémica, D. José Ornelas sublinha ter “uma confiança muito grande” quer na Comissão Independente, quer no Grupo Vita, nas Comissões Diocesanas e na sua coordenação nacional. “Estão, neste momento, no terreno a fazer um trabalho muito válido de formação de pessoas, de chamar a atenção para a gravidade da situação e de preparar um futuro” para que nas instituições da Igreja “estas coisas não voltem a acontecer”, e, se acontecerem, que haja “gente preparada para dar resposta e atenta, sobretudo ao sofrimento das vítimas”.

O presidente da CEP, e bispo de Leiria-Fátima, lembra que a ajuda da Igreja às vítimas de abuso não se limita às futuras indemnizações, reconhecendo que não tem sido um processo fácil. “Sabíamos que não ia ser uma coisa pacífica, até pela experiência de outros países. Por isso, fomos refletindo e traçando o caminho possível, o menos intromissor na vida das pessoas”, diz, lembrando que as compensações não são “simplesmente económicas" e que há "mais de uma centena de pessoas com consultas" e outras ajudas.

“Estão a derrotar-nos pelo cansaço”

Segundo Rute Agulhas, há vítimas que compreendem a dificuldade de validar testemunhos anónimos. “Uma senhora mandou-nos uma mensagem, estes dias, em reação a tudo isto, a dizer: ‘o meu caso também terá sido validado pela Comissão Independente e eu questiono-me: como é que podem validar uma coisa sem nunca me terem ouvido?’”.

Uma perspetiva que não é partilhada por todos os que foram alvo destes crimes. Em declarações à agência Lusa, António Grosso, da Associação Coração Silenciado, garante que algumas vítimas de abuso sexual na Igreja "estão a desistir" de pedir compensação, considerando que estão a querer derrotá-los "pelo cansaço”.

"Aliás, quando saiu o regulamento [da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal para a atribuição de compensações financeiras às vítimas], alguns contactos nossos diziam-nos que era tão complicado, que era para desistirmos", acrescentou.

A associação está também contra a não atribuição de uma compensação igual para todos, e considera "muito lamentável” a polémica que se instalou entre a coordenadora do Grupo VITA e os membros da CI. António Grosso diz ainda que, até ao fim de setembro, a Coração Silenciado prevê tomar uma posição pública sobre o processo indemnizatório.

A Renascença tentou contactar o psiquiatra Pedro Strecht e a socióloga Ana Nunes de Almeida, membros da extinta Comissão Independente, mas nenhum dos dois quis prestar declarações.

*O Grupo Vita pode ser contactado através da linha de atendimento telefónico (91 509 0000), ou do formulário para sinalizações já disponível em www.grupovita.pt

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