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ENTREVISTA PADRE JOÃO GOULÃO

Um ano de JMJ Lisboa. “Do ponto de vista emocional e espiritual, ainda não tirei todas as conclusões”

29 jul, 2024 - 06:00 • Ângela Roque

Na proximidade do primeiro aniversário da Jornada Mundial da Juventude, o responsável pela Via Sacra diz que a JMJ “revelou uma Igreja que muitos desconheciam”, capaz de “trabalhar em conjunto”, mas alerta para perigo do “saudosismo”. Sobre o Sínodo em curso na Igreja, diz que “o medo” é o maior travão a mudanças.

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Ouça aqui a entrevista com o padre João Goulão

A Via Sacra de 4 de agosto de 2023 no Parque Eduardo VII, em Lisboa, foi um dos momentos mais marcantes da Jornada Mundial da Juventude. Os jovens foram convidados a meditar sobre a fragilidade e vulnerabilidade, não só da sociedade, como da própria Igreja. O aborto, os abusos sexuais e a guerra estiveram presentes nas meditações apresentadas ao longo das 14 estações da celebração, que aliou de forma surpreendente arte e espiritualidade.

O padre João Goulão foi o responsável pela Via Sacra, que não deixou ninguém indiferente. Esteve também na direção coral do concerto dos jesuítas que encerrou a Vigília, dia 5, no Parque Tejo. Um ano depois da JMJ conta, em entrevista à Renascença, como essas experiências o marcaram, provando que a fé precisa de momentos de elevação e beleza.

“Foi uma espécie de flash, e agora temos muito trabalho pela frente”, diz o sacerdote jesuíta, que não espera grandes mudanças do processo sinodal em curso, mas deseja que ajude a combater a polarização que já existe na Igreja. “Se levar a que as pessoas se sentem, conversem, e não tenham medo de se expressar, já é um grande avanço”, diz.

"Hoje a nossa fé está a precisar como nunca de espaços para respirar, para contemplar, para deixar que os sentidos sejam tocados"

Há um ano, Lisboa preparava-se para acolher a Jornada Mundial da Juventude e o padre João Goulão esteve envolvido na preparação de um dos momentos altos da JMJ, que foi a Via Sacra, que mostrou que celebrações como aquela, que evoca o sofrimento de Cristo, podem ser vividas com uma linguagem mais jovem e mais cativante. Esteve também na direção coral do concerto do padre Duarte Rosado, que fechou a noite de Vigília, já no Parque Tejo. Como é que estas experiências o marcaram, pessoalmente?

Marcaram-me... Eu não sei se já tirei pessoalmente o sumo de tudo o que aconteceu...

Foi muito intenso?

Foi para lá de intenso! Não sei que palavra usar... foi muito emocionante! Mexeu muito comigo, não só por tudo o que implicou de mim nestes dois projetos, mas o contexto, ver aquilo acontecer no meio de tanta gente! Do ponto de vista emocional e espiritual, não consigo tirar bem todas as conclusões ou perceber bem o que aconteceu.

Agora, a Via Sacra trouxe-me uma confirmação muito grande acerca do nosso modo de expressar a fé e de a viver. Longe de ser uma experiência de entretenimento - porque podia-se olhar para aquilo e pensar isso -, a Via Sacra provou, sem margem de dúvidas, que estamos a precisar de uma coisa que é a contemplação e a estética. Hoje a nossa fé está a precisar como nunca de espaços para respirar, para contemplar, para deixar que os sentidos sejam tocados...

Está a precisar de espaços de beleza?

Sim. Nós estamos tão anestesiados, e vejo isso não só em jovens, mas em todas as gerações… Estamos muito anestesiados a todos os níveis. O nível de ruído é tão grande, que não nos queremos expor de maneira nenhuma. Tudo o que possa trazer alguma espécie de perturbação, afastamos. Hoje temos que ousar deixar sermos tocados. Obviamente que o deixar ser tocados, os sentidos, traz também a questão da beleza. E o que aconteceu ali foi aliar, de uma forma muito equilibrada, a beleza.

Na Via Sacra nenhuma das linguagens sobressaiu, o texto, ou as telas, ou as coreografias, o que ia acontecendo ao longo daquele percurso. Creio que, nesse sentido, a direção artística conseguiu um equilíbrio excecional, de que nenhuma linguagem sobressaísse. E isso foi extraordinário, e acho que foi a força daquela Via Sacra.

Se reparar, aconteceu uma coisa muito bonita: o silêncio que se fez ao longo da Via Sacra. Ao princípio, as pessoas bateram palmas na primeira estação, na segunda... o silêncio que se foi fazendo ao longo da Via Sacra foi uma coisa avassaladora.

Mostrou que as pessoas estavam a ser tocadas e a viver intensamente...

É engraçado, foram manifestando epidermicamente o que sentiam: agora vamos bater palmas, que isto foi extraordinário, agora vamo-nos fechando, vamos acompanhando Jesus... Creio que, através dos sentidos, fomos sendo conduzidos no Mistério da vida de Cristo, da Paixão, de uma forma sublime.

Aquele momento mostrou que a arte ajuda a espiritualidade, que eleva e que aproxima de Deus?

Sim, e isso para a Igreja não é novidade absolutamente nenhuma, mas acho que nos esquecemos muito, há alguns anos. Mas, para a Igreja este nunca foi um tema, e isso é que é extraordinário, sempre fez parte, mas esquecemo-nos!

Às vezes, o que sinto é que tentamos voltar às artes e aos artistas, de uma forma mal feita, medíocre, pequenina. Não acompanhámos o que sempre foi um património da Igreja, da linguagem estética, da linguagem dos sentidos, da linguagem da verdade, da honestidade, manifestado plasticamente. Isso sempre foi natural na vida da Igreja, não foi um acrescento, não foi 'vamos construir umas paredes e pôr aqui umas pinturas'. Sempre foi natural. Creio é que perdemos essa naturalidade.

"Nos grandes eventos é sempre importante a questão do luto, saber fechar (...). Há sempre do revivalismo, do saudosismo"


E depois daquela vivência, fica a sensação de vazio? A fasquia ficou tão elevada que não se consegue acompanhar?

Ah não, de todo! Acho que fizemos, e fizemos bem, foi extraordinário. Parece-me que é muito importante saber tirar os frutos, fazer a leitura correta e agora temos de olhar para nossa realidade.

Acho que há sempre um perigo muito grande, nestas coisas grandes, que é viver do revivalismo, do saudosismo, tentar repetir, plasmar, voltar. Qual é o problema? É associar a sensação à experiência. ‘Tivemos uma sensação ótima, temos de repetir esta experiência’. No trabalho com a juventude esse é um grande perigo, estar sempre a meter uma espécie de formas no microondas, 'isto funcionou, vamos lá meter outra vez e ver se ainda dá qualquer coisa', e não perceber que o que funcionou, funcionou, a lógica do encontro.

Nos grandes eventos é sempre importante a questão do luto, saber fechar. Assim como se começou, saber fechar, saber retirar o fruto e voltar a semear. Porque senão podemos não conseguir olhar para a frente, para o que nos está a circundar, estamos sempre a olhar para trás.

“Trazer alguma mensagem de esperança, ver as ruas de Lisboa com esta vida, trouxe aqui um lado curioso, público da Igreja, que muita gente desconhecia”

Um ano depois, que balanço faz? Que legado fica da JMJ para a Igreja em Portugal? O que é que fez mudar?

A organização da Jornada trouxe, sem dúvida nenhuma, a capacidade de trabalharmos juntos vindos de vários sítios diferentes, de carismas diferentes, modos de rezar e de celebrar diferentes. E isso foi uma coisa que teve um impacto e uma força muito grande. Fez-nos sentir um corpo único. Por outro lado, trouxe a força da imagem, da estética, da beleza. E esta JMJ em particular foi muito marcada por isso.

Muita gente não conhecia uma Igreja que sabe falar de outras coisas, sem ser as coisas que as pessoas estão habituadas há 200 anos, que os católicos são uns caretas, que são uns tipos que não dizem nada que interesse. Mas, a ocupação fresca do espaço, dizer qualquer coisa interessante, trazer alguma mensagem de esperança, ver as ruas de Lisboa com esta vida, trouxe aqui um lado curioso, público da Igreja, que muita gente desconhecia.

Obviamente que isto foi fruto de um grande evento, foi uma espécie de flash, e agora temos muito trabalho pela frente. Muito trabalho do ponto de vista, nomeadamente, da comunicação, da linguagem, de como é que anunciamos a esperança, de como é que falamos da misericórdia, de como é que anunciamos a Boa Nova, a hospitalidade, o anúncio do próprio Evangelho. Como é que dizemos que é relevante hoje? Como é que explicitamos aquilo em que acreditamos, o nosso património, a nossa tradição, a beleza daquilo que queremos viver, da construção de sociedades mais justas, mais orientadas para tratarmos e cuidarmos uns dos outros. Nós temos um património enorme, enorme ao longo dos séculos, um património de vida, de Espírito, que honestamente há muita gente que anda à procura dele. Portanto, temos aqui uma urgência também muito importante de saber e de aprender a comunicá-lo.

"Quando o medo começa a imperar, deixa de haver escuta, conversa, o canal de comunicação começa a ficar fechado"

O trabalho que se fez em conjunto na JMJ, envolvendo tantas pessoas de tantas proveniências, também é um legado que há que manter? Essa colaboração entre sacerdotes, leigos, jovens, mais velhos?

É, e começa-se a notar. Creio que há um grande esforço, uma grande consciência do próprio Patriarca nesse sentido.

Tem notado isso na Diocese de Lisboa?

Tenho, mesmo em muitas conversas que vamos tendo, quem trabalha mais na Pastoral Juvenil, há um desejo grande de fazer isso. Às vezes podemos não saber muito bem como é que vamos fazer, ou o que é que isto significa, mas há um desejo de nos encontrarmos, de começarmos a conversar sobre as coisas, e creio que isso é fundamental. Porque, honestamente, um dos maiores bloqueios nisto tudo é sempre o medo. Qual é o maior obstáculo a um trabalho em conjunto, à constituição de um corpo? É o medo do diferente, dos que pensam e vivem de outra forma, celebram de outra forma. É o medo! Quando o medo começa a imperar, deixa de haver escuta, conversa, o canal de comunicação começa a ficar fechado.

Mas noto um desejo muito grande, que creio também é fruto deste caminho das Jornadas, de colaboração, de rede, de outro género de pensamento. Mas, não é fácil…

Nem imediato? É um processo...

Temos muitas formas muito entranhadas - e começo por mim -, umas mais clericais, outras menos, entre sacerdotes, leigos, entre religiosos e religiosas, isto não está alocado a ninguém. Há muitas formas de poder, de clericalismo, de centralização, de laicismo, sei lá! É muito importante que, comunitariamente, nos saibamos centrar, como aconteceu na JMJ. Como o projeto era claro, a comunidade toda organizou-se. A responsabilidade com que agora ficamos é, certamente, que as comunidades se comecem a centrar no seu anúncio do Evangelho, no serem comunidades de acolhimento, onde as pessoas podem caminhar, de acompanhamento.

E isso depende de todos, não só dos sacerdotes, nem só dos leigos?

Não, não, de todo.

Polarização. "Dentro da Igreja já há, e é possível que haja cada vez mais"

A Igreja está em caminho sinodal. Quais são as suas expetativas para este processo, em termos de resultados? E como é que avalia o caminho que já foi feito até aqui?

Olhe, honestamente, não sei. E não sei por causa do que estava a dizer há pouco: o medo tem muita força.


Continua a ter muita força?

Até à hora da nossa morte! Não é por acaso que o Evangelho está cheio de expressões destas, 'não tenham medo'. Vamos ter sempre medo de deixar as formas a que já nos habituámos para fazer alguma escuta do Espírito, e perceber que os tempos podem trazer novas formas. Há temas que é inevitável que lhes toquemos, que olhemos para eles, que nos deixemos inquietar, que não tenhamos medo de nos pormos em causa. Porque, neste momento, começamos a tratar da vida de muitas pessoas, e isto não são só questões dogmáticas, de sim ou não, de 'estás dentro ou estás fora'.

Há aqui um elemento que na questão do Sínodo pode ser um bocadinho assustador: de repente, há católicos e cristãos que se apresentam à Igreja e que pedem: 'ajudem-nos a caminhar, como é que se caminha?' De repente, nas comunidades, começamos a ter, como nunca tivemos, vozes de coerência e de gente que quer caminhar e que não consegue encontrar caminho. De que forma é que isto vai ser possível? Eu desejo que o Sínodo traga muita novidade, mas não sei se trará assim tanta...

Será sempre um processo e um caminho lento?

Sim. Acho que vai gerar, sobretudo, esta lógica da escuta e da conversa, instalá-lo como modo, isso já não seria nada mau. Já conseguimos conversar, sentar-nos à mesma mesa. Se o resultado do Sínodo for estarmos aqui sentados, quem pensa de maneira diferente dentro da Igreja Católica, e conseguirmos conversar, estarmos interessados em encontrar o que pode ser melhor para a nossa comunidade, debater, estudar, rezar juntos, só isso já seria um grande avanço, já seria incrível! Porque o que acontece é o princípio da polarização - e o Papa Francisco é bem consciente disso -, em que não há comunicação. E como não há fóruns de debate, não há explicitação das posições contrárias, eu vou constituindo tribos, e a minha tribo vai-se autojustificando a si própria: vou fazendo os meus congressos, divulgações, as minhas peregrinações, as minhas lógicas internas.

É fácil - dentro, fora, politicamente, socialmente, eclesialmente, não interessa -, que ao quebrarmos os elos do confronto, dos olhos nos olhos, da relação, haja uma polarização enorme. Dentro da Igreja já há, e é possível que haja cada vez mais.

O Sínodo... não creio que vá à resolução de alguns temas que neste momento são muito importantes a Igreja tê-los bastante em conta. Mas, como modo e como método, se isso acontecer, se facilitar e se levar a que as pessoas nas comunidades se sentem, conversem, e não tenham medo de se expressar, já é um grande avanço.

O meu grande desejo é esse, e é simples: conversar, explicitar as nossas posições, estudar, aprofundar, passarmos tempo uns com os outros neste desejo de construirmos uma comunidade centrada à volta do Evangelho e que tenha força social, que tenha alguma coisa a dizer às pessoas. Desejo isso honestamente.

A caminho do "todos, todos, todos", aquela frase que marcou também a JMJ, e que também se liga aqui com o Sínodo...

Sim. O Papa Francisco tem este estilo, atira umas frases, de repente despenteia tudo, dá para tudo, não dá para nada, ninguém sabe, fica tudo um bocado perdido... Aqui houve quem ficasse muito nervoso, porque de repente o Papa está dizer que vale tudo. Tem a ver com o medo.

A Igreja sabe muito bem quem é há muitos séculos, a questão não está aí. A questão está em partirmos de um princípio que não é assim tão claro para muita gente dentro da Igreja, de que cada um é chamado a fazer o seu percurso ao seu ritmo. A adesão a Cristo, à fé, a conversão é um caminho muito pessoal, não é um caminho de eu saber dizer umas coisas do catecismo, é um caminho que leva anos.

Há um caminho pessoal no 'todos, todos, todos'. É disso que o Papa está a falar, o caminho de conversão interior, de peregrinação nesta terra, é aberto a todos, e isso é que muitas vezes, para muitas comunidades da Igreja, não é assim tão óbvio. Por isso é que é tão importante que a porta seja aberta a todos. Agora, o caminho, cada um vai fazer o caminho de entrada, de conversão, de deixar-se receber por este amor tão grande. Leva tempo, é preciso acompanhamento, é preciso desejo próprio, luta. O 'todos, todos, todos' não traz nervosismo absolutamente nenhum, tem é que trazer uma alegria enorme, porque a questão é abrir a mensagem de Jesus, aquilo que é o maior tesouro que a Igreja tem, para possibilitar esse caminho a toda a gente.

Já falámos do CUPAV, relembrámos a JMJ, falámos do Sínodo. Uma mensagem e um desejo para 2025?

Em primeiro lugar queria que o CUPAV se construísse em 2025! E tenho este desejo que estava a partilhar consigo: nós deixámos de conseguir conversar frontalmente, honestamente, e gostava muito que conseguíssemos conversar com verdade. Isso mata-nos, se não o conseguimos fazer, vai tornando os ambientes mais tóxicos. O meu grande desejo é esse, e é simples: conversar, explicitar as nossas posições, estudar, aprofundar, passarmos tempo uns com os outros neste desejo de construirmos uma comunidade centrada à volta do Evangelho e que tenha força social, que tenha alguma coisa a dizer às pessoas. Desejo isso honestamente.

Para mim é um grande desafio saber como é que isso se faz depois na pedagogia da fé, como é que se ensina desde pequeninos a isso? Creio que deveríamos todos pensar, mais do que estar a tentar entreter, porque às vezes a nossa lógica com os mais miúdos é 'agora não fazes muito barulho', e na igreja podemos dizer a mesma coisa, 'agora não fazes barulho, temos aqui umas coisas para tu fazeres'. Ter uma lógica pedagógica de formar cristãos adultos neste sentido, no sentido de que tu tens alguma coisa a dizer às pessoas que vivem contigo, de que há esperança, há um estilo de vida que é libertador, que cura, que cuida, e isso não vem de ti. E ultimamente isso é a presença de Jesus vivo no meio da tua vida.

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