19 jul, 2024 - 07:00 • Ana Catarina André , Ângela Roque
Cresceram no Patriarcado de Lisboa, onde foram ordenados padres. Trabalharam juntos, nos últimos anos, no Seminário dos Olivais, e estudaram em Roma, ainda que com alguns anos de diferença. D. Alexandre Palma, de 45 anos, e D. Nuno Isidro Cordeiro, de 59 – os novos bispos auxiliares de Lisboa – vão ser ordenados no próximo domingo, no Mosteiro dos Jerónimos.
Em entrevista conjunta à Renascença, falam sobre o legado da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a influência da Igreja na sociedade e o atual contexto marcado pela violência no discurso político, a pobreza e a guerra.
“Talvez o que nos falte como sociedade é pôr-nos de acordo em três ou quatro grandes fins”, diz D. Alexandre Palma, que era, até agora, vice-diretor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica e que, no início de julho, assumiu a presidência da Fundação JMJ, organização que encerrou as contas de 2023 com um saldo positivo de mais de 35 milhões de euros. “Vamos investir esse capital, de forma prudente e responsável”, garante.
Já D. Nuno Isidro Cordeiro, que era vigário-geral do Patriarcado de Lisboa, alerta para a necessidade de olhar para os mais frágeis e diz que, na atual sociedade, “os mais pobres vão sendo olhados como uma periferia, com a qual não temos de lidar”.
Com um novo patriarca de Lisboa há menos de um ano e a vossa nomeação agora para bispos auxiliares, a equipa episcopal Lisboa vai ficando composta, embora falte ainda nomear um terceiro bispo auxiliar. Quais são as áreas pastorais e geográficas que cada um vai assumir?
D. Alexandre Palma (AP) No Patriarcado, os bispos auxiliares acompanham de forma mais particular, não exclusiva, alguma área do território da Diocese de Lisboa. Nesse caso, sim, já temos planificado o próximo ano: eu ficarei mais ocupado com o acompanhamento da zona da cidade de Lisboa, e o D. Nuno ficará mais ocupado com o acompanhamento pastoral da Zona Oeste. Quanto aos outros departamentos ou áreas da ação pastoral da Igreja, esse trabalho de distribuição não está feito ainda. Todavia, creio que é também importante ter presente que nenhum de nós funciona autonomamente. Mesmo esse trabalho na área geográfica é sempre um trabalho de equipa, e é assim que pensamos e que procuramos depois levar a cabo essa ação pastoral.
Partem de uma formação de base diferente, de uma experiência de vida também diferente. Têm idades diferentes...
D. Nuno Isidro Cordeiro (NIC): Ele foi meu dirigido no seminário (risos).
AP: D. Nuno foi meu formador.
Vão trabalhar com o atual patriarca, D. Rui Valério, missionário monfortino que disse, desde o início, que quer ser um bispo da rua, próximo das pessoas. O que é que esperam deste trabalho em equipa? Continuidade ou mudança?
NIC: Continuidade, porque nós apenas vamos integrar uma equipa, cada um com aquilo que tem, que sabe fazer. É para nos ajudarmos e, sobretudo, para nos irmos motivando naquilo que é o processo próprio da vida pastoral na diocese.
AP: Creio que a nossa função está muito ligada ao ministério do bispo de Lisboa, que é o senhor patriarca e, portanto, de alguma maneira, somos seus colaboradores próximos. Evidentemente, participamos do cuidado pastoral sobre toda a diocese, mas muito chamados a esta união de ação e de coração com aquilo que é o sentir, o querer, o sonhar também do senhor patriarca na diocese.
"Não quero a Igreja influente por influente, quero a Igreja influente se isso ajudar a semear o Evangelho", D. Alexandre Palma
Olhando para a Igreja de forma global, e atendendo também à experiência que têm, o que consideram ser mais necessário transformar hoje na Igreja?
NIC: A vida cristã é um processo de conversão contínuo. Agora, naturalmente que há que dar atenção às realidades pastorais das comunidades em concreto, das circunstâncias atuais, e perceber onde é que havemos de atuar.
AP: Não sei se é necessariamente transformar: pode dar a ideia de que estávamos parados e agora vamos começar a transformar. Acho que essa é uma leitura muito simplista da realidade. A realidade ela própria está em transformação. Depois, podemos estar mais satisfeitos ou insatisfeitos com essa transformação, acharmos que devia ser mais assim ou assado, que é mais rápida ou mais lenta.
Dito isto, evidentemente, acho que há um enorme desafio que não é sequer da Diocese de Lisboa – é-o na medida em que ela é Igreja – e que se pode chamar de transmissão ou iniciação à fé. O que é a dinâmica de construção de comunidade? Nós hoje temos até a nível social, político, económico, familiar, profissional, grandes desafios em como é que somos menos apenas indivíduos ou um somatório de indivíduos, e somos mais um corpo. Esse desafio também existe dentro da Igreja.
Decorrente de tudo isto, talvez o desafio maior: o de levar o Evangelho, de testemunhar o Evangelho com a vida, com a naturalidade própria da vida. O Evangelho na vida de um cristão não deveria ser uma coisa postiça, uma coisa que se acrescenta, mas é qualquer coisa que vem de dentro e que por isso transparece para fora. Esse é um desafio que nós temos na Igreja de hoje. Como é que damos testemunho de Jesus e do Evangelho? Sinto isso também como um grande desafio e sinto-o, não a partir de agora, tanto da minha futura condição episcopal, mas a partir da minha própria condição batismal.
E a maneira como a Igreja se organiza, não só nas comunidades, mas também no diálogo com a sociedade não tem impacto nessa transformação?
AP: Plenamente de acordo, mas a meu ver isso é já uma maneira de procurar traduzir na realidade este primeiro desafio. O desafio pode ser neste caso a construção de comunidades. É evidente que hoje vivemos uma dinâmica, até na esteira do Concílio Vaticano II, onde a ideia da participação, da corresponsabilidade foi uma muito grande aquisição da própria vida eclesial deste tempo. Vivemos um tempo em que se fala muito de sinodalidade. Aliás, acho que estamos todos a aprender, à procura de perceber na prática como é que isso acontece. Isso sim, são traduções práticas deste grande desafio.
Consideram que a Igreja está a perder voz no espaço público?
NIC: Penso que não. Aquilo que é a circunstância de uma certa, porventura, indiferença do mundo em relação àquilo que é a vida espiritual e o sentir acerca de Deus é que marca esse desinteresse, até por este imediatismo da nossa vida de hoje, que está sempre a pedir decisões e respostas no imediato e, que, muitas vezes, não deixa as [pessoas] firmarem aquilo que é o sentido da vida, essa procura de Deus, de uma vida espiritual que, de facto, anime.
Embora haja sede de espiritualidade nas pessoas.
NIC: Sim, sim, mas muitas vezes diverge para esse imediatismo, [para se] ter a resposta no telemóvel, em vez de se pensar realmente naquilo que é o sentido da vida, naquilo que se está a fazer e nas decisões a tomar.
D. Alexandre Palma, ainda sobre esta questão de a Igreja estar a perder voz no espaço público…
AP: Esse é um assunto sensível, parece-me. [Historicamente], a Igreja foi acusada de ter tido muita influência. Nem sempre isso foi necessariamente ou, pelo menos, hoje é lido como uma variável positiva. Isto serve apenas para de alguma maneira ressituar a questão: que influência é que a Igreja quer ter e que a Igreja deve ter? Aquilo que o D. Nuno dizia remete de alguma maneira para um horizonte de influência. A influência não é uma influência política, não é uma influência económica, não é uma influência institucional no sentido de querer dominar a sociedade, como provavelmente algumas leituras da história possam acusar a Igreja. Mas é de alguma maneira uma influência junto da vida das pessoas em concreto, coração a coração, vida a vida, existência a existência. É aí que o Evangelho quer ser influente. Agora, nós não somos apenas indivíduos. Somos seres sociais, animais políticos, como diziam os antigos. De facto, existe uma tradução desta minha condição cristã, desta minha mundividência cristã, que não apenas afeta a minha vida individual, mas obviamente se projeta no meu ser social, no meu ser profissional, no meu ser político. Respondendo à pergunta diretamente…
Sim…
Se a Igreja, neste sentido, vem perdendo influência, eu respondo sim e não. Se calhar, se estamos a avaliar pelos antigos padrões, se a Igreja condicionava os processos políticos, o juízo moral, se calhar aí [sim]… A Igreja hoje está na sociedade, diria, coabitando com muitas outras propostas de sentido, até com outras propostas éticas, e temos de saber estar no mundo que é assim, que agora é assim. Mas, por outro lado, talvez o espírito também nos chame a uma criatividade do olhar que passe por perceber que provavelmente existem outras formas em que o Evangelho e a Igreja, como testemunho do Evangelho, mostram a sua influência também nos dias de hoje. Pode haver sinais dos tempos novos. Repito: não quero a Igreja influente por influente, quero a Igreja influente se isso ajudar a semear o Evangelho. E eu acho que, apesar de tudo, existem sementes do Evangelho, até flores do Evangelho que nascem em muito canteiros por aí espalhados.
Mas como é que se chega às pessoas neste contexto de imediatismo? As pessoas estão noutro comprimento de onda…
NIC: Temos de afirmar este espírito que tem vindo agora ao de cima, com o Sínodo: o sentido do acolhimento. Procurar ter esta atenção constante às pessoas no seu contexto, e a cada pessoa em concreto. Aquilo que é a pastoral das nossas comunidades, seja nós padres, seja as pessoas que estão mais envolvidas, é aprender, reaprender constantemente esta proximidade com cada um. Não ficar apenas na voz, no telemóvel ou na mensagem. Esse é o caminho essencial. Agora, isto faz-se com muita paciência.
AP: Este aspeto parece muito importante. Nós Igreja estamos para fazer caminho com as pessoas. Se essa é a circunstância em que as pessoas estão, então é aí que vamos começar a fazer o caminho. Provavelmente muitas dessas existências aceleradas que correm, correm provavelmente em algum momento vão parar, e vão dar-se conta de que estão a construir uma casa na areia e que pouco fica.
Continuo a acreditar que há uma fome, uma sede de profundidade e de seriedade no coração humano que está lá. E quero crer que muitos dos nossos contemporâneos, em algum momento, vão eles próprios cair em si ou olhar para si e perceber que há qualquer coisa, que a vida não pode ser só isso. Nesse sentido, de facto, há uma enorme responsabilidade da nossa parte, que é sabermos acompanhar também essa fase, e aí perceber que o Evangelho pode ser essa semente, esse pão que alimenta essa fome.
Isso não se faz também com bispos mais interventivos no espaço público?
AP: Talvez sim, talvez não. Em primeiro lugar: a voz da igreja não é igual à voz dos bispos. Talvez valha a pena começar por aqui. Há muito mais voz da Igreja do que apenas a voz dos bispos. Segundo, evidentemente, os bispos têm a sua voz e têm o seu ministério [que] também não é substituível, eu percebo, por outras vozes.
Há um ano, Lisboa preparava-se para receber a Jornada Mundial da Juventude. Que lastro ficou desse grande encontro?
NIC: Ficaram vários dinamismos da vida das comunidades, alguns projetos de grupos de jovens que se têm mantido, e que têm procurado desenvolver precisamente a partir daí o entusiasmo para corresponder aos desafios da Igreja.
AP: Em primeiro lugar, ficou uma experiência de enorme alegria, felicidade e testemunho jubiloso da fé cristã dentro da Igreja, fora da Igreja, na sociedade portuguesa. Igreja e sociedade não são a mesma coisa, mas podem dar as mãos e construir alguma coisa de grande e de belo para o país e para fora. Isso fica e ninguém nos tira.
Depois, a jornada também formou muita gente: jovens que arregaçaram as mangas, que fizeram acontecer a nível paroquial, a nível das dioceses, a nível do Comité Organizador Local, o COL. Talvez nem sempre tenha transparecido para fora que foram muitos jovens que fizeram isso. Isso é formação. Acho que todas as entidades eclesiais, dioceses, congregações religiosas saem das jornadas com uma atenção particular à pastoral juvenil. Está por ver o que é que isso vai gerar em concreto, em cada jovem, cada rapaz, cada rapariga – portugueses e estrangeiros. Sobra um outro fruto que me veio parar às mãos, que é a própria Fundação [JMJ].
Já lá iremos. Antes e aproveitando que estamos a falar da juventude, durante muitos anos pensou criar-se no Patriarcado de Lisboa um espaço dedicado aos jovens, penso que ainda no tempo do D. José Policarpo. Isso vai avançar?
NIC: Tem de perguntar ao senhor patriarca e à Pastoral Juvenil.
A Igreja não desperdiçou de alguma forma esse pico de vivência da fé que a JMJ trouxe a JMJ?
AP: Vamos ser francos. Sim, e é inevitável.
A fasquia ficou muito alta?
AP: Não é só isso. Há uma dimensão emocional do evento. É preciso perceber isto. Nós estávamos, eu estava comovido, porque nós somos também emoção. Mas não é possível viver sempre nessa alta intensidade emocional.
"Vamos investir esse capital [da Fundação JMJ], de forma prudente e responsável", D. Alexandre Palma
Assumiu recentemente a presidência da Fundação JMJ. Já começou a delinear a equipa e o plano de atividades? [esta entrevista foi gravada antes de os elementos da direção da fundação serem anunciados]
AP: Permita-me dar um passo atrás. A Fundação JMJ foi o ente criado para organizar as jornadas. Esse foi o seu foco durante todos os anos. Depois do Verão de 2023 havia ainda dossiês abertos que era preciso ir fechando relativos à organização da própria Jornada, desde pagamentos a fornecedores, auditorias. Tudo isso ocupou estes meses 'grosso modo' da transição de 2023 para 2024. Tomou-se a decisão de perpetuar a Fundação para os mesmos fins fundamentais, que é a promoção da infância e da juventude, mas vamos fazê-lo de maneira diferente. Já não vamos organizar uma JMJ, mas vamos fazê-lo apoiando iniciativas, projetos de quem esteja no terreno a trabalhar com a infância e com a juventude.
Com horizonte nacional agora?
AP: Com horizonte local, nacional e internacional. A fundação pode perpetuar a sua atividade, porque houve um balanço positivo nas contas, como foi publicamente anunciado. Esse balanço positivo vem de várias fontes: dos peregrinos, em primeiro lugar; de um grupo grande de voluntários que obviamente, pela sua generosidade, acabaram por ajudar também nas contas. Vem das parcerias. Para que fique claro: não há nenhum dinheiro público neste balanço positivo. Só há dinheiro privado. De onde é que vem o remanescente das jornadas que agora alimenta a fundação? Vem de várias fontes. Ora, essas fontes tanto são portuguesas como são da Nova Zelândia, tanto são da sociedade civil como são de grupos paroquiais.
É tudo isto que de alguma maneira constrói o que agora vem a ser a fundação. Fui nomeado no dia 1 de julho. A anterior direção esteve a funcionar até ao final do mês de junho. Estamos na fase de constituição da direção [anunciada já depois da realização desta entrevista]. É a direção que terá a função de objetivar este desiderato de apoiar quem estiver no terreno a trabalhar com infância e juventude, com aquela latitude, com aquela abertura que procurei descrever.
Que obrigação de prestação de contas é que a fundação tem?
AP: Eu e a fundação não queremos outra coisa senão transparência. Não é mérito meu. É mérito do senhor D. Américo Aguiar, anterior presidente da direção e de quem estava com ele – desde a primeira hora, fizeram da transparência das contas um ponto de honra. Essa transparência está no terreno, o relatório de contas da fundação é público, a auditoria da Deloitte pública é, como é público também o estudo sobre o impacto económico realizado por investigadores independentes do ISEG.
Respondendo à pergunta: a Fundação continuará a trabalhar exatamente com esta transparência e com esta auditoria, não apenas de contas, mas também de processos. Não [se trata] apenas de verificar que as contas estão corretas, mas que nós agimos da maneira correspondente aos fins da Fundação. Continuaremos a contar com parceiros externos que deem garantias, desde logo a quem a Fundação pertence, mas também à sociedade, de que estamos a trabalhar com rigor e transparência. Vamos fazer sempre tudo bem feito? Provavelmente não, mas vamos querer trabalhar com estes valores que, repito, herdei da gestão anterior.
Como é que, nos próximos anos, a Fundação vai assegurar receitas para que continue a desenvolver as suas atividades?
AP: Esse é o projeto que me foi entregue: não dispersar o fundo, os tais 30 a 35 milhões. Pô-lo a render e distribuir os rendimentos do fundo. Qual é a vantagem disto? Permite perpetuar o bom das jornadas por muitos anos. Como é que vamos fazer? Vamos investir esse capital, de forma prudente e responsável. Esses investimentos gerarão um retorno de base anual é esse retorno que pagará o que quero que seja o mínimo possível de funcionamento da própria Fundação, e que distribuirá por um conjunto de parceiros, mais institucionais, seja públicos, da sociedade civil ou da Igreja, seja até parceiros mais informais, pequenos projetos, grupos. Provavelmente terão modalidades de candidatura a apoios diferentes, mas, em tese, abertos a estas possibilidades.
À medida que as nossas sociedades vão enriquecendo, os mais pobres vão sendo olhados sempre como uma periferia, com a qual não temos de lidar", D. Nuno Isidro Cordeiro
Mudando de tema, nos últimos anos a Igreja tem-se mobilizado no combate ao abuso de menores. Que balanço faz do que tem sido feito?
AP: Sobre este assunto, acho que há duas dimensões: uma dimensão passada, e uma dimensão presente e futura. O que é que dá unidade a isto? Primeiro, há uma coragem de olhar um problema muito difícil de frente, com todas as nuances e dificuldades da parte da Igreja. E há um crescendo de consciência, que eu acho que é geral. Vamos fazendo algum caminho na Igreja. O lugar da vítima em todo este universo: dar-lhe um papel, uma voz, um destaque que porventura não tinha tido. E, sobretudo, olhar o passado da forma que é pública, que teve muito pontos positivos e também teve alguns pontos negativos, a meu ver, na gestão do processo, mas esse não é tanto o ponto... Tentar, de alguma maneira, olhar o assunto de frente, tentar dar voz às vítimas, tentar perceber o que é que foi mal feito, tentar pedir perdão e tudo o que vem daí. E depois há uma dimensão para o presente e para o futuro: como é que nós fazemos tudo o que está ao nosso alcance para que nada de semelhante se volte a repetir no presente e no futuro. Esse trabalho, quero hierarquizar, mas não é menos importante.
De facto, há um ganho de consciência incomensurável. Se perguntarmos na Igreja em Portugal, e até na sociedade portuguesa, sobre este assunto, hoje ou há dez anos, existe uma evolução tremenda na perceção do problema, e creio que nos próximos dez anos estaremos ainda muito mais à frente do que estamos hoje. Creio que para esse benefício, algum contributo a Igreja em Portugal deu: deu o que deu, muito, pouco, mas algum deu. Repito, por consciência de si própria, ou seja, a Igreja não precisa de nenhum estímulo para querer, de alguma maneira, fazer este trabalho de purificação e de reabilitação, mas acho que está a dar, sob esse ponto de vista, algum contributo à sociedade portuguesa, por mais que as opiniões possam ser, a esse respeito, divergentes.
A Igreja está em processo sinodal. O que é que poderá mudar?
NIC: É um momento de provocação, de nos chamar ao reconhecimento daquilo que é nossa vocação essencial de batizados e da importância de cada um se descobrir como parte essencial no caminho da edificação e construção da Igreja, com o que cada um pode contribuir. Não sei o que é que pode mudar, senão aquilo que for a vontade de cada um em assumir as suas responsabilidades, os seus compromissos enquanto cristão, batizado, na vida das comunidades.
AP: Sublinho esta palavra que o D. Nuno usou. É um momento muito 'provocador', até biograficamente. Nos ciclos sinodais em que tenho participado, sinto-me muito desafiado. É-me difícil e tem-me feito bem...
Difícil porque põe em causa?
AP: Não. Respondo por outra via: acho que uma das grandes aquisições que pode vir desse processo sinodal, independentemente das transformações que podemos almejar ou não, é a escuta, o método baseado na escuta do próximo, proposto pelo Papa, no fundo, as rondas sucessivas baseadas na escuta. Dar prioridade à escuta. Isso é desafiante, porque nós temos imensas coisas para dizer, temos imensas opiniões, e nada contra, há um momento no método que é o próprio para tu dizeres o que queres, o que pensas, o que sonhas, o que sofres, o que for. Mas, depois existe todo o outro momento em que tu escutas, e não é apenas uma escuta tática, é uma escuta no espírito. Isto é, daquilo que este método me faz ouvir aos meus irmãos, o que é que Deus pela boca deles me esta a dizer? Isto é tremendamente provocador, e é difícil neste sentido. Se levarmos a sério o método é, de facto, muito provocador.
Respondendo: quando se fala em transformações do processo sinodal, está-se a pensar em A, B, C, X, Y e Z. Não diminuindo nada disso, diria que se o método da escuta, e da escuta segundo o Espírito, entrar, se se impregnar no solo das nossas comunidades cristãs, isso é uma revolução. Obviamente que isso também tem a ver com a ideia da corresponsabilidade, da participação, mas é uma revolução espiritual.
Mas há uma hierarquização ainda muito cimentada nas comunidades. As próprias comunidades muitas vezes põem o padre num lugar diferente.
NIC: De acordo. O espírito clericalista, que é um espírito de poder, estará sempre presente, até mesmo entre muitos leigos, porque acham que o senhor prior é que deve decidir... Mas esse é um trabalho que penso que, até em termos gerais, com aquilo que são os avanços em termos de educação e cultura, vai evoluindo. Agora, todas estas coisas evoluem muito vagarosamente, como sempre foi na Igreja. Mudanças drásticas penso que não as teremos...
Este Sínodo já vai com dois anos de trabalho, mas não vai encerrar em outubro...
NIC: Este Sínodo já vem sobretudo desde o Concílio Vaticano II. Alguns até dizem que, finalmente, o Concílio Vaticano II está a ter uma aplicação mais prática, por isso, não são só dois anos.
Mudando de assunto, assistimos a uma crescente violência no discurso político. O que é que está a falhar?
AP: Estão a puxar a minha faceta mais de teólogo e académico. Por um lado, existe um problema que creio que é evidente: uma fragmentação das nossas sociedades, no geral. A ideia de um tecido comum, de um bem comum, do horizonte comum, tende a perder-se. Se calhar estou a ser exagerado, mas, simplificando: tende a perder-se e quando falta, de alguma maneira, este horizonte comum, o que é que aparece? Aparecem horizontes particulares, discursividades particulares, interesses particulares, mundividências particulares, que têm todo o direito, sobretudo numa sociedade democrática como a nossa, que vive exatamente de uma certa tensão das diferenças. O problema é que tem de haver um equilíbrio entre unidade e distinção, entre unidade e diferença. Quando começa a haver aqui um desequilíbrio, provavelmente começa-se a acicatar esta ideia de uns contra os outros, os outros deixam de ser os meus pares, passam a ser os meus adversários, os meus inimigos.
Claramente esse é um problema grande nas nossas sociedades. A política torna isso mais evidente e vocês, media, dão mais atenção à política. Mas provavelmente mais grave do que isso: a política é apenas um laboratório onde isto se torna mais evidente, mas provavelmente isto significa que noutras áreas da vida isso manifesta-se.
Queria só dizer isto: li há pouco tempo qualquer coisa como 'o nosso tempo vive de excesso de meios e escassez de fins'. Talvez o que nos falte como sociedade é pôr-nos de acordo em três ou quatro grandes fins – que existem, acho que não é muito difícil –, mas para os quais, mesmo por caminhos diferentes, possamos todos convergir, nem que seja como um horizonte de esperança no futuro.
D. Alexandre Palma mostra gratidão e entusiasmo. J(...)
A pobreza continua a ser uma realidade nacional cada vez mais preocupante. Indo agora assumir esta missão como bispos em Lisboa, como é que também vos interpela esta questão?
NIC: Claro, isso está sempre presente, até como vigário-geral, no conhecimento que tenho das estruturas das instituições ligadas à Igreja, IPSS e outras, que todos os dias estão na frente de luta a acompanhar as pessoas em situações difíceis, desde os sem-abrigo até aos idosos sozinhos, aos muitos lares e diversos equipamentos.
De facto, a ação social como sentido de verdadeira caridade, que é própria da Igreja, é preocupação constante, porque temos de estar sempre a procurar encontrar entre as instituições as sinergias necessárias para chegar às pessoas e perceber quais são os problemas e como é que se podem resolver.
É fundamental esta missão social da Igreja?
NIC: Sim, sem dúvida.
Há um problema de indiferença generalizada, de políticas eficazes? Naturalmente que não me refiro às IPSS e às pessoas que trabalham nessa área de combate à pobreza...
NIC: É tudo isso. Porque à medida que as nossas sociedades vão enriquecendo, entre aspas, os mais pobres vão sendo olhados sempre como uma periferia, com a qual não temos de lidar. Vemos como toda a mentalidade centrada na economia, na política, nas questões financeiras, muitas vezes deixa de parte esta atenção concreta à realidade das pessoas.
AP: Desde logo, a pobreza goza de uma grande invisibilidade das nossas sociedades. Tem pouco palco, tem pouca força política, não aparece. Tirando em momentos, quando acontece qualquer coisa de ainda mais grave, goza uma grande invisibilidade. Nós vivemos em sociedades onde quem não tem força, quem não tem voz pública, rapidamente desaparece do radar.
Reparem: o D. Nuno deu aqui dois ótimos exemplos: o que é a situação dos sem-abrigo na cidade de Lisboa, por exemplo? Quem é que fala por eles? A situação de muitos idosos que vivem com escassez de meios, quem é que fala por eles? Quem é o ‘opinion maker’ que está nos canais de televisão, ou aqui na Renascença, ou noutra rádio, a falar por eles? Há aqui um problema de invisibilidade, que é complexo, eu percebo. Não se pode expor as pessoas, não é a indigência das pessoas que torna lícito expô-las mas, não é uma invisibilidade do sujeito, é uma invisibilidade do problema. Obviamente depois a economia, a política, a sociedade responde a estímulos. Se nós não vemos, mais facilmente nos esquecemos que existe ali um problema e, sobretudo, nos vai faltando a força e a criatividade para tentar resolvê-lo.
Uma última questão sobre o atual contexto internacional marcado pelo aumento das guerras, o alastrar dos populismos, uma possível vitória de Trump nos Estados Unidos. Como é que, enquanto bispos, olham também para este contexto que não parece de todo animador?
NIC: Pessoalmente, aquilo que acho que deve ser a minha resposta é estar inteiro naquilo a que sou chamado. Na medida em que responder às questões concretas da vida da Igreja de Lisboa hoje, no contexto de uma equipa episcopal e no contexto de um presbitério, no contexto das comunidades que temos, pôr-me inteiramente ao serviço. Penso que esse é o espírito que pode ajudar a encaminhar o mundo para a paz, é fazer a paz onde estou.
A P: Para além da forma muito sábia como o D. Nuno acabou de desmontar a questão, eu só acrescentava uma coisa, que é esta: falando nós a partir do campo do religioso, dito assim, nós estamos muito habituados a lidar com o apocalipse. Temos grandes desafios diante de nós, e nas nossas mãos, enormes. Como é que vai ser exatamente? Não sei. Mas, não seria tão tremendista ou apocalíptico. Acredito na criatividade e continuo a acreditar na bondade fundamental da humanidade, e ela, ao longo da história, foi capaz do pior, mas também foi capaz do melhor. E eu continuo a acreditar que é no meio do caos que também vai aparecer o melhor da humanidade. Não sou ingénuo, mas também não sou desesperançado. Pelo contrário, tenho esperança.
Este foi um espaço em que quisemos também ajudar a dar a conhecer, de alguma forma, os dois novos bispos auxiliares de Lisboa. Para terminar, temos uma série de perguntas curtas, mais pessoais, para as quais também pedimos respostas curtas e breves.
O que é que vos faz rir?
NIC: O Charlot.
AP: Uma criança a rir.
Que hobbies têm?
NIC: Ouvir música.
AP: Eu gosto muito de caminhar.
Que música é que não esquecem?
NIC: A nona Sinfonia de Beethoven.
AP: A de um autor que para mim é sempre uma enorme inspiração, Leonard Cohen.
Algum livro que marcou a vossa vida. A Bíblia não conta porque é óbvia...
NIC: O 'Meu Pé de Laranja Lima'.
AP: Talvez, porque me apanhou numa idade... as 'Confissões de Santo Agostinho'.
Praticam desporto? O patriarca corre, e parece que corre cedo...
AP: Caminhar conta?
NIC: Se caminhar contar...
O que é que são umas boas férias?
AP: Amigos, e à medida dos últimos anos, mar.
NIC: Umas boas férias é passar em casa sossegado.
Para quem está agora de férias que sugestões deixam?
AP: Vou dizer um álbum, por causa também de uma resposta que eu já dei, não é exatamente do Leonard Cohen, mas é uma reinterpretação jazzística da obra de Leonard Cohen, chama-se 'Here it is'. Se os mais versados procurarem nos sítios certos, encontrarão. Se quiserem uma sugestão mais para a família: ir visitar um museu. Temos vários pelo país fora, seja de arte mais antiga, seja de arte contemporânea. Gosto muito de aprender e, ao longo da minha infância, poder visitar museus fez-me aprender muito.
NIC: Quem quiser conhecer um pouco mais da Igreja, pode ir visitar o Mosteiro de São Vicente de Fora: o museu e as atividades que tem também para as famílias e para os jovens. São boas atividades culturais para este tempo de férias.