Siga-nos no Whatsapp

Entrevista Renascença/Ecclesia

Uma portuguesa na “crise esquecida" de Cabo Delgado. "É nesta altura que eles mais precisam de nós"

23 jun, 2024 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Fátima Castro relata os ataques terroristas de que foi alvo a paróquia do Norte de Moçambique e revela que há mesmo pessoas que perguntam se "ainda há guerra em Cabo Delgado". Apesar de um quotidiano marcado pela insegurança e medo, a leiga missionária de Braga garante que “nunca” pensou em desistir.

A+ / A-
Entrevista a Fátima Castro
Ouça aqui a entrevista a Fátima Castro, missionária portuguesa na paróquia de de Santa Cecília de Ocua, no Norte de Moçambique

“A crise em Cabo Delgado está esquecida" e a ameaça terrorista persiste, alerta Fátima Castro, leiga missionária portuguesa numa paróquia da Diocese de Pemba, no Norte de Moçambique.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Fátima Castro relata os ataques terroristas de que foi alvo a paróquia e revela que há mesmo pessoas que perguntam se "ainda há guerra em Cabo Delgado".

Em serviço voluntário desde 2021 na paróquia de Santa Cecília de Ocua; que é administrada pela Arquidiocese de Braga, Fátima salienta a importância da presença, por estes dias, na região de Jorge Moreira da Silva, subsecretário-geral das Nações Unidas, para “para voltar a colocar Cabo Delgado nas agendas”.

Apesar de um quotidiano marcado pela insegurança que obriga “as pessoas a deslocarem-se por medo”, a leiga missionária de Braga garante que “nunca” pensou em desistir, apesar das muitas dificuldades no terreno, e sublinha a relação “muito saudável” vivida em toda a comunidade de maioria islâmica.

Que importância tem a presença no terreno de um alto representante das Nações Unidas?

Tem toda a importância, na medida em que voltam a colocar Cabo Delgado nas notícias internacionais e nacionais, porque muitas vezes não se fala de Cabo Delgado.

Mesmo internamente?

Mesmo internamente, sim.

E porquê?

Nós, às vezes, brincamos com a situação, dizendo que Cabo Delgado é outro país, que não faz parte de Moçambique. Muito facilmente encontramos pessoas que nos perguntam se ainda há guerra em Cabo Delgado, porque as notícias não falam disso e, quando falam, falam como se tudo estivesse normalizado, que já não houvesse por aqui ataques, já não houvesse por aqui insurgentes, o que de facto não se verifica. Por isso, esta presença, esta vinda cá é sempre muito oportuna para voltar a colocar Cabo Delgado nas agendas.

"Nunca tive essa vontade de sair, porque também entendo que é nesta altura que eles mais precisam de nós"

Há o risco de que Cabo Delgado acabe por se tornar uma crise esquecida como a tantas outras?

Eu penso que já está esquecida. Há momentos aqui da história que voltam a colocar Cabo Delgado nas notícias, mas depois facilmente esmorecem essas mesmas notícias, porque há outros problemas no mundo e entendem que esses problemas são realmente maiores e mais graves do que aqui, o que leva a algum esquecimento de Cabo Delgado.

A Fátima tem uma forte ligação ao Centro Missionário da Arquidiocese de Braga, que tem levado a cabo diversas iniciativas humanitárias e solidárias, tem mesmo a responsabilidade pastoral na paróquia de Santa Cecília de Ocua. Que retrato nos pode fazer? Qual é a realidade neste momento?

Em relação à paróquia de Santa Cecília de Ocua, a nossa presença vai fazer quase dez anos deste acordo que foi celebrado entre as duas dioceses. As realidades de há dez anos para esta parte são muito diferentes, até porque a guerra começou aqui em 2017. A realidade daqui da paróquia, e eu cheguei em 2021, é muito diferente neste momento também.

Nós tivemos o primeiro ataque na paróquia em outubro de 2022, com todas as crises e condicionalismos que trazem esses mesmos ataques, e depois voltamos a ter um novo ataque aqui na paróquia, em fevereiro do ano corrente. As realidades mudam porque se a nossa vinda era mais pastoral e de alguma forma social, a realidade também nos obriga a criar outros tipos de pastoral, como a pastoral do sofrimento, a pastoral da presença, da escuta, do estar, do acompanhar.

Estavam a dizer que é uma crise que já começou em 2017 e essa crise já terá provocado mais de um milhão de deslocados internos. Quem está no terreno sente desproporcionalidade entre a forma como a comunidade internacional olha para este conflito e outros que estão em curso?

Isto parece que se torna normal, dentro desta anormalidade toda, vive-se isto como se fosse uma coisa normal. As pessoas deslocam-se por medo, por insegurança, por vários fatores. Agora, não se deixam de deslocar quase todos os dias, porque quase todos os dias se houve, às vezes notícias que são verdadeiras, outras que são falaciosas, outras que são simples boatos, outras que são suposições.

Acredito que já haja muito pânico instalado...

Imenso, sim, imenso. Em várias ocasiões aqui, depois dos ataques, voltamos a sair e voltámos a entrar, mas por pânico, por medo, por insegurança.

Já faz parte do dia-a-dia, faz parte do quotidiano essa situação de insegurança. Em algum momento, perante este cenário, pensou em desistir?

Não, nunca. E já fui tendo esta conversa várias vezes: mais do que nunca, faz-me sentido a presença aqui. Eu vinha com aqueles objetivos muito bem definidos, o que é que era para fazer, o que é que faz aqui o dia-a-dia, as situações que vão ocorrendo, vão-nos moldando os planos e nós vamos ajustando.

Nunca, nunca me passou pela ideia, nunca tive essa vontade de sair, porque também entendo que é nesta altura que eles mais precisam de nós. Às vezes, não precisam que nós demos nada, eles precisam apenas que nós estejamos cá. Têm muito esta expressão, “estamos juntos”, e nestes últimos tempos ouço-a quase diariamente. Os nossos responsáveis, os nossos animadores vão-nos perguntando onde é que nós estamos, e nós dizemos, “em casa, estamos na missão”. E eles dizem, “então estamos juntos, cuidamos uns dos outros”. E é isso que nós agora fazemos, é o estarmos para escutar ou para ajudar, dentro das nossas poucas possibilidades também, mas é o estarmos juntos. E sair não é opção.

"Nós não ajudamos nem raça, nem cor, nem religião. A nossa missão é com todos"

Como é o trabalho aí, a realidade da paróquia, imagino também a dificuldade em acudir a comunidades que são muito dispersas.

Sim, a nossa paróquia tem neste momento 98 comunidades. Para termos um bocadinho a noção, em termos territoriais tem a mesma dimensão, esta paróquia, de toda a Arquidiocese de Braga, mas neste momento tem apenas um padre, o padre Manuel Faria, e uma leiga, que sou eu, a trabalhar para estas 98 comunidades.

Temos toda a parte pastoral, a parte dos sacramentos, da formação; depois temos a parte social, que é a parte dos projetos, o projeto de aleitamento e nutrição, o projeto de apoio às meninas, às raparigas, o projeto dos campos de reassentamento, que temos dois campos de reassentamento aqui na paróquia, desde 2021, e todo este trabalho passa quase todo por nós. Claro que temos a ajuda de muitos leigos aqui, nesta Igreja ministerial, que se colocam todos em movimento para ela poder funcionar.

E a ajuda externa também é importante nestes casos, nomeadamente a ajuda que vem da arquidiocese e de outros pontos, também chega?

Sim, a Arquidiocese de Braga está nesta primeira linha, neste envio dos missionários e neste envio de recursos, mesmo nas situações de maior emergência. Depois aqui a Diocese de Pemba, também, com os projetos de emergência, que nos têm ajudado muito nestes últimos tempos. E depois as dioceses vizinhas, a Diocese de Nacala, porque a paróquia é mesmo encostada, faz fronteira, e quando houve esta deslocação em fevereiro, a população daqui saiu para Namapa, que já pertence à Nacala. A diocese tem sido também uma grande parceira. Também há aqueles anónimos e congregações, mesmo daqui dentro da diocese, que se disponibilizam para ajudar e para estar connosco, para estarmos junto do povo.

E como está agora o Programa Alimentar Mundial? Ao longo do último ano chegaram notícias de que havia falta de apoio da comunidade internacional, em particular do Programa Alimentar Mundial. Esse é um problema ultrapassado?

Não, ainda se mantém. Nós verificamos, por exemplo, que a primeira linha de ajuda, quando aconteceu o ataque aqui na paróquia, foi o Programa Alimentar Mundial, mas já não com o kit básico que eles estavam a dar às famílias, ou seja, já estava a ser racionado, talvez porque também eram muitas famílias e não havia a capacidade de resposta imediata. Mas depois, aquilo que vamos percebendo, também pelos campos de reassentamento, que muito desse apoio terminou ou então é mais esporádico. Vêm outras organizações, que vão ajudando na medida do possível, mas nota-se um decréscimo do PAM nesta ajuda humanitária.

"Nota-se um decréscimo do PAM na ajuda humanitária"

Fátima foi de Portugal, de uma das dioceses com maior percentagem e até predominância cultural católica do país, de Braga, para uma região em Moçambique que é maioritariamente islâmica. Como é que tem sido esta experiência de trabalhar com a comunidade muçulmana?

Muito saudável, até porque nós temos um discurso que diz que nós não ajudamos nem raça, nem cor, nem religião. A nossa missão é com todos. E por exemplo, estes projetos sociais que nós temos, maioritariamente são muçulmanos. Mas nós não perguntamos quando vem uma mamã ou uma família pedir leite para a criança qual é a religião. Claro que nós percebemos pela indumentária que usam, mas para nós isso não é importante.

O importante é percebermos que há uma criança que perdeu a mãe e que precisa do leite, ou uma família que não tem alimentos, porque esse também é um dos graves problemas que está a surgir agora e que futuramente será pior. No projeto de apoio às meninas, também, grande parte delas são muçulmanas, mas isso para nós não é importante. O importante é a pessoa e é a necessidade e é aquilo que ela precisa no momento. Por isso é muito saudável, mesmo esta convivência com os líderes de outras religiões locais que frequentam a nossa casa e que nos visitam, é uma vida saudável.

Eu também fiz esta pergunta porque muitas vezes se define o conflito em Cabo Delgado como um conflito religioso…

Não, de todo. Eu tive a preocupação de ir perguntando nas comunidades se haveria algum conflito, dentro dos pequenos grupos, para trabalhar nesse sentido, caso houvesse. Aqui vivemos todos como irmãos e sofremos todos o mesmo, partilhamos todos os mesmos sofrimentos, a mesma vida. Eles foram dizendo que não, que isso nunca foi um problema. Até porque as famílias aqui são mistas: o pai é muçulmano, os filhos são cristãos, ou seja, não há uma linhagem familiar que tenha a mesma religião. Por isso é que eu também acho que é uma convivência saudável e eles não veem isso como um problema de religiões.

A apresentação das tradições da missão do Ocua aos jovens estudantes de Braga é uma forma de reforçar esta ligação e também de promover a defesa das populações, tornando-as mais conhecidas e também apreciadas?

Claro, é tornarmo-nos próximos também de Braga, porque a Paróquia de Ocua, pastoralmente e territorialmente, lhe pertence.

É paróquia 552, não é?

É verdade, de Braga. Por isso tem esta ligação e é importante que também os cristãos e a comunidade de Braga conheçam a realidade daqui. A Igreja é missionária por inerência e não faria sentido, de outra forma, que Braga tivesse uma paróquia e os cristãos de Braga não conhecessem a vida pastoral, a vida religiosa, a vida cultural desta sua paróquia também. Por isso é muito importante esta divulgação que se está a fazer nas escolas, com esta exposição e que também os alunos, os jovens, percebam que há realidades que são muito diferentes das deles.

Ainda há pouco tempo eu conversava com um jovem daí e explicava que havia jovens aqui que fazem 13 quilómetros para ir para a escola e estão lá duas horas para depois voltarem a fazer 13 quilómetros a pé, todos os dias, debaixo deste sol africano. Fazem este esforço para estudar. E esse jovem daí dizia-me: “mas isso não é possível, ele vai uma vez à escola e depois não volta”. Esta disparidade que existe entre estas duas realidades, às vezes é difícil eles aí entenderem como é que é a vida aqui. Por isso faz tanta falta este cruzar de conhecimentos e divulgar a Paróquia de Santa Cecília de Ocua em Braga.

Nas suas últimas mensagens ‘Urbi et Orbi’ e nos discursos ao corpo diplomático, uma tradição anual, o Papa tem falado sempre da situação em Moçambique, especificamente em Cabo Delgado. Qual tem sido a importância destas intervenções? Acha que esta palavra de Francisco pode sensibilizar a comunidade internacional?

Nós ficamos sempre muito felizes e agradados quando percebemos isso e quando ouvimos o Papa Francisco falar deste problema, porque temos sempre a esperança de que Cabo Delgado volte às agendas mundiais. Mas depois também percebemos, com alguma tristeza, que é momentâneo. Agradecemos imenso este esforço do Papa Francisco, mas depois parece que voltamos a cair no esquecimento, até que haja outra coisa maior, mais importante. Acreditamos que ele continua a olhar por nós e a rezar por nós e que coloca o mundo, que é isso que também é importante, que coloca o mundo a rezar por este povo que vive numa constante Via Sacra.

A Conferência Episcopal Moçambicana publicou uma nota pastoral sobre o processo de recenseamento eleitoral e as eleições gerais de outubro deste ano. É um tema que precisa de atenção por parte da comunidade portuguesa?

Também, sim. Eles pedem que os cristãos sejam uma parte ativa na política. O Papa Francisco também diz isso muitas vezes, que nós os cristãos devemos de estar na política. A Conferência Episcopal aqui de Moçambique fez essa nota, que foi lida nas nossas paróquias, nas comunidades, pedindo que os cristãos se empenhem nestas próximas eleições, de forma a tentar normalizar este processo eleitoral, que são sempre muito complicados.

Estão a ser ponderadas novas iniciativas para ajudar as populações na Diocese de Pemba?

Essas nunca param, e nós temos sempre esta vontade e esta iniciativa de querer fazer mais e melhor por este povo.

E há sempre novas necessidades, não é?

Sempre, sempre. E nós vamos aprendendo, ao estar com o povo, a perceber quais são as necessidades que eles têm, e que são partilhadas com o Centro Missionário de Braga, sempre muito disponível para ajudar também dentro das possibilidades que tem a Arquidiocese. Várias iniciativas estão a ser pensadas, estamos agora quase a festejar o décimo aniversário deste acordo de cooperação entre as dioceses, por isso deve haver novidades para essa altura.

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+