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Perseguido, católico, lusodescendente. Birmanês Aloysius tem uma história para contar ao Papa

03 ago, 2023 - 06:01 • Fábio Monteiro

A aldeia de Aloysius ardeu. A mãe e os irmãos foram obrigados a fugir, um primo foi assassinado pelos militares. Nem “na missa é possível estar em paz, pois não sabes quando é que eles vão aparecer”, confessa. O jovem está em Lisboa à procura de uma oportunidade para se encontrar com o Papa Francisco e falar sobre os bayingyis - comunidade de lusodescendentes católicos em Myanmar que, nos últimos anos, tem vindo ser perseguida.

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Pequeno, moreno, sorriso fácil, 24 anos. Quem olha para o rosto de Aloysius não percebe, mas o jovem tem uma história de terror e perseguição para contar.

Aloysius pertence aos bayingyis, comunidade de lusodescendentes católicos de Myanmar, que remonta ao século XV. Na terça-feira, a convite do Movimento Cumprir Portugal (MCP) e da Associação Internacional de Luso-Descendentes (AILD), chegou a Portugal para participar na Jornada Mundial da Juventude (JMJ). E procurar uma oportunidade para falar com o Papa Francisco.

Porquê? Desde o golpe militar que abalou Myanmar em fevereiro de 2021, os bayingyis – vistos como parte de oposição ao regime - têm sido perseguidos. A aldeia em que morava, Chathar, foi reduzida a cinzas, após uma série de ataques das forças militares. Um primo, que fazia partes das forças de resistência, foi assassinado.

“Os soldados entraram nas casas, levaram tudo de valor. Invadiram a Igreja, dormiram lá, beberam lá. Deixaram lá latas de cerveja. Destruíram algumas das janelas, algumas estátuas”, conta à Renascença.

Os ataques à aldeia de Aloysius – que mora e estuda e estuda em Macau desde o final de 2019 – começaram em janeiro de 2022. Logo no primeiro assalto, os militares “queimaram umas dez casas”.

“Mesmo quando uma missa está a decorrer, as pessoas têm de estar de alerta. Mesmo na missa, não estás em paz, porque não sabes quando é que eles vão vir”, nota.

Após sucessivas investidas, a única estrutura que resta na aldeia é a escola, da qual o jovem mostra à Renascença fotografias no telemóvel. A mãe de Aloysius e dois irmãos mais novos foram obrigados a fugir.

O jovem, que abandonou o seminário no ano passado, ainda pensou regressar ao seu país natal, mas foi demovido por professores e pela própria família. “Eles não querem que volte para Myanmar. Não tenho lá futuro. Posso sempre morrer no meio desta crise sem sentido”, conta.

E acrescenta ainda: “Os militares não se interessam. Os militares não se interessam se és budista ou católico. Se és contra eles, eles matam indiscriminadamente. Nós somos católicos, somos um pouco diferentes, mas não assim tanto. Se és contra os militares, és o inimigo deles.”

Ligação a Portugal

Aloysius não fala português – mas tem um orgulho nas raízes portuguesas. Assim como a maioria dos bayingyis.

A comunidade nasceu de uma série de casamentos inter-raciais entre comerciantes e mercenários portugueses que, no século XV, passaram por Myanmar e trabalharam para os regentes locais.

“As casas onde vivemos são conhecidas como as casas dos descendentes dos portugueses. Estamos lá há mais de quatro séculos. Não temos cultura portuguesa. Mas a coisa que temos é: apesar de terem passado séculos, ainda mantemos a fé e ainda somos uma comunidade católica”, conta Aloysius.

O historiador e investigador Joaquim Castro, especialista na história dos bayingyis, atesta as palavras do jovem. E também quer alertar para o problema que esta comunidade de lusodescendentes vive em Myanmar.

Joaquim foi um dos promotores da ideia de trazer Aloysius a Portugal e de o tentar colocar a conversar com o Papa Francisco. Afinal, o líder da Igreja Católica irá, esta quinta-feira, encontrar-se com uma série de jovens refugiados. Tendo em conta que os bayingyis são lusodescendentes e católicos, “faria todo o sentido”, nota o especialista.

Bayingyis perseguidos por sonharem com democracia

Em Myanmar, sublinha o historiador, os bayingyis nunca foram perseguidos por causa das suas crenças religiosas. Agora, sim, mas por ambicionarem viver numa democracia.

“O problema surgiu agora, precisamente quando a junta militar regressou ao poder, no início de 2021. E a partir daí houve um movimento geral, sobretudo de parte dos jovens, de repudio. Os bayingyis são um dos grupos que se está a rebelar”, conta.

Face à situação que se vive em Myanmar, Joaquim Castro defende, então, que o Estado português deve equacionar a possibilidade de, à semelhança do que foi feito com os judeus sefarditas, dar o direito à nacionalidade aos bayingyis.

“Porque eles de facto nunca se desligaram de Portugal, sempre arvoraram a bandeira da portugalidade”, nota.

A Associação Internacional de Luso-Descendentes tem, neste momento, uma campanha a decorrer de angariação de fundos de apoio para os bayingyis perseguidos em Myanmar.

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  • Timbo Caspite
    03 ago, 2023 Lisboa 12:33
    A perseguição à igreja cristã nunca parou. Milhares de pessoas, todos os anos, são mortas, presas e sofrem violência apenas por professarem Jesus Cristo. Várias pessoas em todo mundo têm seu direito de professar sua fé negada além de se tornarem vulneráveis a todos os tipos de hostilidades, inclusive acesso à comida e água limitados. De acordo com os dados da Lista Mundial da Perseguição 2022, mais de 360 milhões de cristãos no mundo enfrentam algum tipo de oposição como resultado da identificação com Cristo.

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