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Exclusivo Renascença

Cardeal Parolin. "Existe um compromisso sério na Igreja em evitar erros do passado"

10 mai, 2023 - 23:00 • Aura Miguel

Em entrevista exclusiva, antes de presidir às celebrações da peregrinação internacional em Fátima, o secretário de Estado do Vaticano fala sobre os abusos na Igreja, a guerra na Europa e as "realidades e desafios inéditos" da atualidade, sem esquecer a próxima JMJ, que Lisboa acolhe em agosto.

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Nas vésperas de chegar a Portugal, para presidir às celebrações da peregrinação internacional de 12 e 13 de maio em Fátima, o Cardeal Pietro Parolin falou à Renascença.

Nesta entrevista exclusiva, o secretário de Estado do Vaticano revela os seus anseios de paz e as preocupações com o que se passa no mundo e no seio da Igreja, sem esquecer o fenómeno dos abusos de menores, sobre o qual destaca que "o importante é que a Igreja se dote, ou esteja a dotar-se, de mecanismos que permitam identificar imediatamente tais fenómenos".

Sobre a guerra na Ucrânia, diz que "parecemos tatear no escuro", mas reforça o empenho do Vaticano em contribuir para uma solução de paz.

Quanto aos investimentos para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2023), que vai ter lugar na primeira semana de agosto, em Lisboa, o Cardeal Parolin diz esperar que "o contributo, incluindo o económico, possa ser partilhado por todos: Igreja, Estado, entidades privadas e públicas."

Com que espírito vai a Fátima presidir às principais celebrações de 12 e 13 de maio?

Para mim será um regresso, porque já estive duas vezes em Fátima, ainda que o tenha feito já com uma idade avançada. Antes, nunca tive oportunidade de lá ir. Fui em 2016, como preparação para o centenário das aparições, e depois fui com o Santo Padre, em 2017.

Que experiências guarda das idas a Fátima?

Foram belas experiências, profundamente espirituais, que me comoveram muito em certos momentos das celebrações.

Acima de tudo, o mistério de Fátima envolveu-me totalmente, bem como a presença de tantos peregrinos tão cheios de fé, de devoção e de amor a Nossa Senhora. Por isso, volto com alegria e espero poder reviver aquela experiência que já tive.

A este respeito, agradeço também ao Bispo de Leiria Fátima, Sua Excelência Monsenhor José Ornelas, pelo convite, que aceitei com muito gosto.

A paz no mundo e a consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria estão relacionadas com a Mensagem de Fátima. É também por isso que aceitou o convite?

Não creio que tenha surgido diretamente ligado à guerra na Ucrânia e à consagração da Ucrânia e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, mas este é certamente um momento propício para fazer uma peregrinação a Fátima.

Pensei muito nisso e disse “olha que providência, o Senhor permite-me regressar a Fátima, precisamente neste momento em que a paz na Europa e a paz no mundo correm grande perigo, sobretudo este perigo de escalada da guerra”.

Por tudo isto, será sobretudo uma peregrinação de paz, porque a paz é uma das mensagens fundamentais de Fátima.

Uma paz que, no entanto, parece difícil de alcançar…

Uma paz que se alcança também pela oração e pela penitência. E isto é interessante. Claro que são necessários esforços diplomáticos. E também nós, como Santa Sé, sob a orientação do Papa Francisco, estamos a tentar dar todo o nosso contributo e desencadear todos os esforços para se encontrar uma solução política e diplomática para esta crise, que está realmente a destruir um país.

Mas, ao mesmo tempo, não devemos esquecer as armas autênticas que Nossa Senhora nos indicou: rezar e fazer penitência. Por isso, considero que este é um momento oportuno para estar em Fátima. É mais uma razão para lá estar.

Quais são as preocupações e esperanças que o Secretário de Estado do Vaticano vai apresentar a Nossa Senhora?

Vou pedir luz a Nossa Senhora, porque muitas vezes parecemos tatear no escuro. Há muito boa vontade, há muito empenho, mas nem sempre é possível encontrar caminhos concretos de concretizar iniciativas de paz, portanto, pedirei certamente isso a Nossa Senhora. E há muitas outras preocupações e intenções que colocarei aos pés da Virgem de Fátima; vou pedir pelo mundo e pelas suas necessidades.

Quais necessidades?

Creio que uma das principais necessidades no mundo, relacionadas também com a guerra, é justamente reconstruir um mínimo de confiança entre países.

Hoje já não há confiança mútua. Só existe medo, medo dos outros, não é? O tema que o Papa Francisco desenvolveu na sua encíclica Fratelli Tutti passa por redescobrir as razões da fraternidade, reconstituir um mundo verdadeiramente fraterno, onde as pessoas vivam como em família, por isso, esta será uma das principais intenções.

Depois, também peço pela Igreja, que não vive momentos fáceis e creio que a intenção principal será a unidade da Igreja. Precisamente porque a Igreja que vive no mundo, por vezes, também corre o risco de receber este espírito de divisão e polarização que existe no mundo.

Além disso, gostaria de apresentar os jovens a Nossa Senhora, no contexto da Jornada Mundial da Juventude que, em breve, se celebrará em Lisboa. E também vou rezar pelos sacerdotes, que atravessam hoje um momento difícil na sua vida, no seu ministério, portanto vou apresentar todos estes irmãos diante do Senhor e pedir a Nossa Senhora que nos ajude a encontrar os caminhos da evangelização, porque creio que a Igreja, sob o impulso do Papa Francisco, está a colocar-se, realmente, numa atitude de saída, justamente para poder anunciar o Evangelho.

Estamos numa “mudança de época”, como diz o Papa. O que é que isto implica para a Igreja?

Não é fácil encontrar as modalidades, as linguagens e as expressões que permitam um anúncio eficaz. Portanto, farei uma oração especial pela evangelização e depois também pelo sínodo sobre a sinodalidade, para que possa, realmente, envolver todos os batizados e todos os fiéis neste esforço de participação na vida da Igreja e de impulso evangelizador.

E rezarei também por todas as pessoas - são muitas - que se confiam às nossas orações e por tantas situações de dor, de sofrimento, de dificuldade material e espiritual. Lá [na Capelinha] será o momento para colocar todas as intenções no coração da Mãe.

Na homilia da missa que celebrou, na noite de 12 de maio 2017, sublinhou que a paz está ao alcance de todos, não só dos poderosos mas também dos simples, através de “meios aparentemente inúteis, como a conversão, a oração reparadora, a consagração”. Porém, à nossa volta, o panorama da secularização e do cansaço da fé o é animador…

Sim. Hoje, uma análise desapaixonada sobre o que está a acontecer poderia levar-nos a um certo pessimismo e é fácil ceder ao pessimismo, porque muitas situações que vivemos anteriormente já não existem.

Encontramo-nos diante de realidades e desafios inéditos, porém acredito que estas continuam a ser as ferramentas com as quais operamos eficazmente no mundo, porque são as ferramentas que nos unem a Deus. Então sabemos - e isto vale para todos - que sozinhos não podemos fazer nada. Devemos estar unidos ao Senhor para podermos ser eficazes na nossa intervenção. E o que nos é pedido não são os resultados.

Então o que é pedido?

Gostaria de destacar o seguinte: talvez estes meios não pareçam dar sabe-se lá que resultados, mas a nós não nos pedem para produzir sabe-se lá que resultados. A nós pede-se para sermos fiéis e generosos e para continuar a fazer, dia a dia, e a cumprir o nosso dever. Pede-se para vivermos plenamente a nossa vocação cristã, o nosso ministério, no lugar onde estamos e é isso que devemos fazer.

Por outro lado, o Papa Francisco sempre disse que a paz se constrói com métodos artesanais, não é com métodos e golpes de efeitos impressionantes. Estes são os meios que Nossa Senhora nos pediu e que devemos continuar a adotar.

Volto a insistir: sobretudo na Europa e no mundo ocidental, a quebra da prática religiosa é uma evidência. Neste contexto, é hoje mais difícil ser Secretário de Estado do que era dantes?

Não faço ideia, porque vivo a situação presente e, evidentemente, não vivi a situação dos meus antecessores. Santo Agostinho, numa bela passagem, diz sempre “hoje queixamo-nos tanto dos males presentes porque não experimentámos os males passados e, portanto, não os carregamos dentro de nós”.

Se lermos um pouco de história, vemos que hoje os problemas cresceram até ao infinito, não é?

Por exemplo?

Basta pensar, por exemplo, nos meios de comunicação, através dos quais chegam constantemente às nossas mesas informações, problemas, dificuldades, etc., coisa que dantes só chegavam de vez em quando, não era? Portanto, o ritmo tornou-se muito mais premente e tornou-se muito mais difícil de acompanhar adequadamente todas estas situações.

Como lhe disse, gosto de história - porque a história é a mestra da vida - e vejo que muitos dos meus antecessores também tiveram de enfrentar situações muito, muito, muito difíceis. Por isso, respondendo à sua pergunta, acho que sim, talvez hoje haja complicações, mas as dificuldades sempre existiram. Nesse sentido, não me sinto privilegiado.

A sua presença em Fátima, de certo modo, antecipa a vinda do Santo Padre a Portugal em agosto, para a Jornada Mundial da Juventude. Qual é a sua expectativa para este grande encontro em Lisboa?

Acredito que a JMJ ainda é uma ferramenta muito eficaz de pastoral juvenil. Tivemos um sínodo sobre os jovens, onde procurámos refletir sobre qual é a melhor maneira de anunciar o Evangelho aos jovens, e as duas palavras-chave que foram identificadas pelo sínodo são justamente a de ouvi-los e acompanhá-los; escuta e acompanhamento dos jovens. Parece-me que a Jornada Mundial da Juventude se insere nesta linha e, sobretudo, é também uma oportunidade para vivermos juntos uma forte experiência de fé, de que os jovens tanto necessitam neste momento.

Pude participar em algumas Jornadas Mundiais da Juventude e vi como, realmente, são momentos de recarga espiritual.

Também ouvi alguns jovens, inclusive meus familiares, que participaram em Jornadas anteriores, por exemplo as da Polónia e Panamá, e as respostas foram sempre positivas. Ou seja, creio que é verdadeiramente uma graça do Senhor. E agora, tendo em conta que esta JMJ já foi adiada por causa da pandemia, a expectativa para a sua realização ainda é maior.

Apesar das confusões que a organização envolve, com milhares de voluntários, grande mobilização de meios e muitos gastos que geram quase sempre polémicas, ao longo destes 40 anos de JMJ a aposta do Papa continua a entusiasmar jovens de todo o mundo.

Creio que sim. Claro que há despesas mas, por outro lado, devemos reconhecer que estes encontros e iniciativas de grande escala envolvem, inevitavelmente, despesas. Espero que o contributo, incluindo o económico, possa ser partilhado por todos, ou seja, pela Igreja, pelo Estado, por entidades privadas e entidades públicas.

É preciso ainda ter em conta, mesmo fazendo um raciocínio terra-a-terra, que são despesas, sim, mas também são investimentos, porque depois deixam algumas obras a nível da cidade que podem servir os cidadãos.

Por exemplo, disseram-me - porque quis indagar sobre este ponto - que um benefício é o aterro que fica junto ao Tejo, que vai dar origem a um grande parque, ou seja, não será só usado para as comemorações da JMJ, mas também estará disponível para os cidadãos. Todas as coisas podem sempres er vistas por diferentes prismas.

Acho que não devemos considerar apenas a bondade da iniciativa em si, mas devemos também ver a bondade dos seus desdobramentos e suas consequências.

A questão dos abusos tem ensombrado a vida dos católicos e da sociedade também em Portugal. Que palavra tem a dizer aos portugueses que sofrem e se escandalizam com esta realidade?

É sempre muito delicado falar destas coisas. Gostaria de dizer que compreendo e compartilho o sofrimento de quem sofre com esta realidade que infelizmente também está presente na Igreja e que nos dói muito. E então gostaria de convidar todos a prestar atenção às vítimas; o nosso primeiro dever é para com elas. Mostrar atenção verdadeiramente, mostrar solidariedade, mostrar compaixão - no sentido etimológico do termo, ou seja, “compatire”, sofrer juntos, ouvi-los, acompanhá-los...

Também gostaria de dizer isto: existe um compromisso sério por parte da Igreja; talvez seja difícil acreditar plenamente, mas devo repeti-lo. Por parte da Igreja, existe um sério empenho em evitar os erros do passado, sobretudo na gestão destes casos por parte das autoridades e um empenho para prevenir tais situações.

O importante é que a Igreja se dote, ou esteja a dotar-se, de mecanismos que permitam identificar imediatamente tais fenómenos e poder geri-los de maneira correta, sobretudo, permitindo às vítimas alcançar justiça.

Pensa que a questão dos abusos pode ensombrar a participação num acontecimento grandioso como é a JMJ?

Sabe, é difícil fazer prognósticos, por isso, também eu não sei o que dizer. Espero que não. E também espero, sinceramente, que a celebração da Jornada Mundial da Juventude possa ser um momento de reforço do compromisso da Igreja.

Haverá ali muitos jovens e, portanto, há que tomar consciência da grande responsabilidade da Igreja para com eles. Precisamos de saber lidar com estas coisas de maneira correta.

No contexto mundial, como é que o Secretário de Estado do Vaticano avalia as relações da Santa Sé com Portugal?

Diria que as relações com Portugal são boas relações. Vejo que há comunicação entre nós e depois temos a famosa Concordata, que estabelece quais são os pontos de colaboração nos setores de interesse comum e tentamos, da nossa parte - e penso que também da parte do Estado português - implementar quais são, digamos, as disposições da Concordata, tendo em vista o bem dos cidadãos. De qualquer modo, eu daria uma avaliação positiva sobre as relações recíprocas.

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  • João Lopes
    11 mai, 2023 Porto 09:20
    Excelente entrevista.

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