09 abr, 2023 - 19:47 • José Pedro Frazão, enviado da Renascença à Ucrânia
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O diretor-executivo da Cáritas Spes Ucrânia admite, em entrevista à Renascença, que é difícil perdoar o agressor e diz-se magoado com a sua própria família que vive na Rússia.
O padre Vyacheslav Grynevych sentiu o dia 24 de fevereiro de 2022, data do início da invasão russa da Ucrânia, como o dia em que recebeu a notícia da morte do seu pai.
Nesta entrevista explica quão difícil é retirar as pessoas das zonas de combate, como é perigosa a operação em cidades como Kherson e como se viram forçados a parar a operação humanitária na Ucrânia ocupada pela Rússia.
Foi das suas mãos que o Papa Francisco recebeu uma cruz de estilhaços de vidros de casas destruídas por mísseis russos. Em Roma deixou a mensagem de que os ucranianos são ovelhas atacadas por um grande lobo e que esperam a vinda do seu pastor.
Como descreve a situação atual em termos humanitários e no plano de atuação do trabalho da Cáritas?
Tentamos responder a todas as necessidades que detetamos à nossa volta. A situação é muito difícil, porque continuamos em emergência, com muitos alarmes antiaéreos. A situação de guerra toca também na nossa vida privada e temos que estar prontos a unir tudo em nós mesmos. Temos o nosso trabalho profissional como funcionários da Cáritas SPES no apoio às pessoas, mas também todos nós precisamos desse apoio.
Neste momento, o número de pessoas necessitadas é enorme. Temos que continuar o nosso apoio através da distribuição de pacotes humanitários. As pessoas precisam de comida, água, de produtos de higiene. Também começámos projetos de reconstrução de casas, mas vemos que isso não é suficiente, porque, a cada dia, mais e mais pessoas apresentam necessidades.
A guerra está numa situação que não é estável, é muito dinâmica. E isso não é fácil, principalmente porque todos nós precisamos de apoio, não apenas físico, mas também psicológico, mental e espiritual. Graças aos nossos parceiros, podemos continuar a nossa ajuda e podemos desenvolver as nossas atividades de ajuda às regiões mais carenciadas.
Podemos dizer que após o Inverno entramos numa nova fase da vossa operação, com a chegada da Primavera e depois no verão?
A guerra tem sempre a mesma cara, a face da destruição. Agora é um pouco mais fácil, porque é possível programar algumas atividades. Nos primeiros dias da guerra, tivemos uma situação enorme de pânico, reorganizámos totalmente a nossa atividade normal como organização caritativa e preparámos uma nova resposta. E isso foi realmente muito cansativo.
Agora, a situação é de muito stress, especialmente naquela região de Kherson, Donetsk, Luhansk, Kharkiv. Aqui na parte central da Ucrânia, podemos planear, sabendo que temos deslocados internos e conseguimos a segurança para eles e para as suas crianças quando nos meses anteriores era muito, muito difícil. Agora é muito mais fácil. Por outro lado, não sabemos o que vai acontecer amanhã e isso obriga-nos a sermos muito flexíveis, com os olhos bem abertos, principalmente na questão da segurança, porque temos que pensar nos nossos voluntários.
Quão perto estão das linhas da frente de batalha?
Na nossa estrutura temos sete diretores e alguns deles têm responsabilidade por duas ou três regiões. Por exemplo, os nossos maiores centros estão em Kharkiv e em Odessa, que são responsáveis por outras cidades. Temos um centro logístico que recebe o apoio humanitário e vai para regiões como Odessa, Dnipro ou Kharkiv onde grupos pequenos de voluntários fazem a distribuição em carrinhas pelas zonas mais próximas da linha de batalha.
Às vezes, é realmente muito difícil chegar a esses locais por razões de segurança. Conseguimos cobrir regiões como Dnipro, Nikopol ou Zaporizhzhia, mas às vezes é muito difícil chegar a outros lados. Por exemplo, não conseguimos ir a Bakhmut porque é realmente muito perigoso, não conseguimos garantir a segurança.
Mas estiveram lá?
Eu estive em Sloviansk, embora a título particular. Como diretor tive que ir lá porque queria saber por que razão as pessoas não gostam de ser retiradas da sua terra. Para mim foi importante fazer esta viagem muito curta para falar com as pessoas, para entendê-las. Foi uma viagem muito importante a uma aldeia que fica a seis, sete quilómetros da linha de frente.
Por outro lado, foi realmente muito perigoso e fomos bombardeados. De certa forma todos nós aqui na Ucrânia aceitamos esta situação da guerra. Aqui em Kiev ou especialmente naquelas zonas, quando ouço as explosões, às vezes penso que isso não me toca.
Disse às pessoas que podíamos organizar uma evacuação para um local seguro, com parceiros que nos apoiam e de forma gratuita. Elas respondiam: "o que vai ser da minha casa, o que vai ser das minhas pequenas hortas, dos meus animais". Mas então eu disse: "vocês podem ser mortos de maneira muito simples, não podem ter controlo sobre os ataques à bomba". E eles diziam: "mas aqui sabemos que este é o nosso lugar, é a nossa casa". E além disso, é muito difícil porque as crianças ficam lá. E agora estamos a pensar no que podemos fazer com isso.
As pessoas não querem sair.
Elas aceitam esta terrível situação de guerra. Têm uma imagem misteriosa do que é a segurança. Muitas vezes não querem nem gostam de ir para um lugar desconhecido, porque, para elas, um lugar seguro muitas vezes significa um lugar onde ninguém está à espera delas.
Em Kherson suspenderam uma nova operação?
Quando novos territórios são reocupados, muitas vezes os nossos voluntários vão nos primeiros grupos, porque eles têm contactos, conhecem o governo local, têm apoios e pacotes humanitários que podem começar a distribuir.
A nossa ideia era também ter uma presença frequente, por exemplo, em Kherson. E os nossos funcionários organizaram esse apoio humanitário a partir de outras cidades. Tivemos a ideia de abrir uma nova cozinha com refeições quentes para distribuir às pessoas. Começámos a falar com os nossos parceiros, recebemos uma cozinha móvel especial e queríamos montá-la. Mas há um mês o governo local disse-nos que era muito perigoso e devíamos ter muito cuidado para não criar filas de pessoas do lado de fora, porque a cidade é bombardeada todos os dias e é perigoso não apenas para os nossos funcionários, mas também para as pessoas. Por isso decidimos parar e organizámos lá uma pequena distribuição, aguardando o momento em que será seguro abrir novas atividades.
O que aconteceu à operação na área ocupada da Ucrânia?
Temos um centro sob ocupação e tentámos ajudar desde os primeiros dias. Apoiámos o centro até ao último momento, quando deixou de ser possível ajudar porque as transferências pelo sistema bancário deixaram de funcionar.
Parámos a nossa atividade e tentámos encontrar outras formas de apoio. Mas quando os soldados russos começaram a visitar o centro onde estavam os nossos funcionários, uma parte deles foi retirada daquele centro e outra parte ficou lá porque têm pais que estão doentes que não podem deixar sozinhos.
Durante alguns dias, distribuíram comida e também apoiaram pessoas, mas quando os soldados russos começaram a visitar-nos, fizeram muitas questões sobre a rede Cáritas, sobre os nossos parceiros e, por fim, disseram que queriam que o apoio social passasse pela rede oficial deles. Nós dissemos que não podíamos fazer isso, porque com certeza seria muito perigoso para nós e não gostaríamos de colaborar. Finalmente, tomámos a decisão de fechar este centro. Agora temos apenas um segurança lá dentro e ainda estamos à espera de perceber quando será possível reativá-lo.
Foram alvo de ações russas?
Não, estamos em silêncio. Apenas interrompemos a nossa atividade, dissemos que não gostávamos, mas eles não nos visaram. Fizeram apenas algumas visitas tensas com soldados do novo governo responsáveis pela política social. Mas é realmente muito perigoso, especialmente quando os nossos colegas nos ligam durante a noite a perguntar o que devem fazer. Não podemos correr esse risco, porque ninguém sabe o que pode acontecer.
Celebrações sob bombardeamento, prisões em tempo d(...)
Nesta nova fase é possível passar do fornecimento apenas de comida e medicamentos e produtos de higiene para outro tipo de atividades como ajuda em saúde mental ? Está a haver uma mudança?
Sim, porque desde o início existe uma lógica no nosso sistema. Por exemplo, começámos com pacotes humanitários em regiões que estavam sob ocupação junto à Bielorrússia, na zona de Chernobyl. Depois entrámos nestas mesmas famílias com projetos de reconstrução. Depois, como o nosso grupo-alvo eram as famílias, convidámos as crianças dessas famílias para acampamentos internacionais em colaboração com outras Cáritas, para que os nossos programas não se limitem apenas a um projeto.
A mesma situação acontece, por exemplo, se tivermos deslocados internos nos nossos centros, que têm também empregadores sociais que resolvem algumas questões difíceis sobre passaportes, documentos, oportunidades de trabalho. Temos também psicólogos que apoiam essas pessoas. É muito difícil pensar em apoio psicológico na primeira linha quando as pessoas precisam mesmo de comida.
Temos muitas opções diferentes onde tentamos oferecer apoio, mas muitas vezes é simplesmente impossível. Nos primeiros dias da guerra eu recebi uma chamada para ajudar na evacuação massiva em Odessa de um hospital especial de recém-nascidos onde as crianças estavam em incubadoras.
Quando me perguntaram sobre a oportunidade de organizar essa evacuação, eu disse que gostaríamos de apoiá-los e que íamos pensar sobre isso. Mas, finalmente, disse que não podíamos fazer isso porque é um assunto muito específico. Tem que se ser especialista, não se pode simplesmente trazer crianças.
E tantas vezes temos que dizer que não podemos fazer, apenas conseguimos partilhar contactos para entrarem em contacto com outras organizações que sejam especialistas neste campo ou naquele.
Regressando aos primeiros dias da invasão, estavam preparados para o que aconteceria no dia 24 de fevereiro?
Lembro-me muito bem desse dia. Preparámo-nos com antecedência, até porque os nossos parceiros internacionais disseram-nos que tínhamos que preparar algum plano.
Concentrámo-nos nas evacuações e o nosso primeiro pensamento foi para a forma de estabelecer locais seguros para os nossos funcionários e beneficiários a partir de territórios que potencialmente podiam ser atacados pela Rússia.
E tínhamos três cenários diferentes. O primeiro deles estava naquela linha da frente de Luhansk e Donetsk que os russos irão atacar e aquele território poderia ser mais ou menos ocupado. Outro cenário era o de um ataque à Crimeia e a Kherson. A 23 de janeiro organizámos uma reunião em Odessa com os nossos diretores para planear essas responsabilidades.
E quando finalmente começou esta guerra terrível, a 24 de fevereiro, a nossa primeira atividade foi organizar a evacuação para nós mesmos e para as nossas famílias. Graças a esta preparação, pudemos reagir muito rapidamente à resposta. Fizemos a evacuação ao fim de três semanas, quando a situação em Kiev não era clara. Decidimos fazer uma pequena transferência de equipa para a Polónia. Se algo acontecesse conosco, eles poderiam continuar a comunicação com os parceiros para continuar o apoio.
Usámos esta oportunidade para estabelecer um centro logístico que organizou a distribuição da Europa para a Ucrânia. E duas semanas depois estávamos na Transcarpátia, mas depois voltámos e continuámos o nosso trabalho.
"Eu disse ao Papa que estamos à sua espera, porque somos como ovelhas que são atacadas por um lobo, um animal brutal, e estamos à espera do nosso pastor. E ele disse: 'Estou a fazer o que posso'"
Lembra-se desse dia?
Claro. Uma colega ligou-me às 5h00 da manhã e disse-me: " Padre, acorde, a guerra começou, a Rússia começou a guerra". Na minha mente, meu Deus, foi tão doloroso. E quando falo com os meus colegas e parceiros, todos se lembram do que sentiram. Na minha experiência, foi tão doloroso que me lembrei daquele momento quando eu tinha 13 anos e a minha mãe acordou-me de manhã e disse-me: "O teu pai morreu". Foi o mesmo sentimento que me percorreu, o de que a minha vida não será a mesma a partir deste momento.
Quando voltei para Kiev, recebemos mensagens de tranquilidade dos nossos parceiros, para não nos preocuparmos porque estariam connosco. Não era apenas uma questão sobre projetos e apoio financeiro. Muito importante foi perceber que não estava sozinho ao nível da gestão. Sem esse tipo de apoio para entender o que é guerra...
Sabe, sou apenas um padre. Não nos ensinaram no seminário o que tem que se fazer durante a guerra. Mas os nossos parceiros tinham tido essa experiência terrível de emergência e foram como anjos que nos apoiaram com conselhos e estamos realmente muito agradecidos.
Gostaria de lhe perguntar sobre o seu encontro com o Papa Francisco.
Durante este tempo, tive dois encontros com o Papa Francisco. Em julho de 2022 foi o primeiro encontro e, realmente, vi que ele está connosco. E, para mim, foi realmente muito importante e algo que eu queria partilhar com os meus colegas. O Papa está connosco, entende muito bem o que está a acontecer e tenta resolver as coisas. Mas também dessa vez, quando o vi, observei que ele está cansado.
Sabe, a situação de guerra ganha volume a cada dia, são muitos combates muito difíceis pela paz. E também tentei compartilhar com o Papa que a nossa experiência, como ucranianos, é que a paz é algo que temos que construir. É um processo, não é apenas a assinatura de um acordo que se faz, a guerra pára e temos paz. Não, é um ato interno muito profundo que está ligado ao perdão. E vejo por mim mesmo, como padre, que isso é muito difícil, depois de todas aquelas imagens, de destruição de casas e também de famílias, depois de toda essa experiência que eu tenho, porque perdi muitos amigos nesta guerra.
É difícil perdoar?
É muito difícil perdoar, principalmente num momento em que ninguém tenta explicar. Se eu não fiz parte da guerra, o que é que fiz para começar esta guerra? E acho que temos limites. Os russos também têm responsabilidade nisso.
Parte da minha família está na Rússia e, nos primeiros dias da guerra, eles só queriam falar com a minha mãe e diziam que: "Putin começou isto, mas ele é um bom homem, ele está certo e só quer matar todos aqueles nazis que vocês conhecem". E foi tão doloroso ouvir todas aquelas explosões e alarmes. Ao tentar pôr-me a salvo e à minha família, ter que ouvir tudo isto... Acho que não se resolve apenas com um perdão. Temos que falar e trabalhar sobre isto. Eu entendo que esse momento virá no futuro. Mas não será um momento fácil para nós e para os russos.
O que é que o Papa lhe disse?
Eu falei-lhe genericamente sobre o perdão e sobre a paz. Ele ouviu-me, não me respondeu, mas eu vi que é algo muito difícil para ele. Um dos meus objetivos era convidá-lo a vir para a Ucrânia porque aqui somos uma minoria e, para nós, é muito difícil pensar no que vai acontecer depois.
Como minoria, teremos oportunidade de dizer que fizemos tudo neste momento. E o Papa disse que tentou fazer tudo o que podia. E eu vi quão sério ele estava quando tentou explicar todos os primeiros contactos que fez. O Papa visitou a embaixada da Rússia no primeiro dia, ele tentou comunicar.
Por outro lado, eu disse que estamos à sua espera, porque somos como ovelhas que são atacadas por um lobo, um animal brutal, e estamos à espera do nosso pastor. E ele disse: "Estou a fazer o que posso".
Eu disse que tenho certeza de que nós, da nossa posição, muitas vezes não entendemos todas as responsabilidades do Papa. Sei que ele está a fazer muitas coisas boas para nos apoiar. E muitas vezes não se pode dizer o que se está a fazer, porque nesses casos perdem-se os contactos.
Sei que lhe deu depois um presente que veio de Vorzel, nos arredores de Kiev.
Esse presente foi feito pelos nossos colegas. Um dos projetos que temos passa pela construção de casas. Um amigo que trabalha connosco fez uma cruz a partir de janelas destruídas e lá dentro daquela cruz estava uma pequena borboleta com pequenos pedaços de papel e uma pequena carta de crianças sobre amor e esperança.
Eu disse ao Papa que esta cruz não era apenas feita daquelas imagens físicas que vemos ilustradas na cruz, até porque esta cruz feita com destroços de vidros realmente parecia algo terrível. Mas ilustra também o que sentimos nas nossas almas porque os nossos olhos e o nosso coração representam a janela das nossas almas e também esta imagem terrível está dentro de nós.
Por outro lado, esta borboleta, que na velha tradição cristã ilustra a Ressurreição de Jesus Cristo, é para nós um sinal de esperança, de solidariedade, dessa motivação que temos dentro de nós e que gostaríamos de trabalhar profundamente, para aguardar esse belo momento de paz e justiça.