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Entrevista

Abusos. "Resposta da Igreja é muito frouxa", diz Laborinho Lúcio

08 mar, 2023 - 19:00 • Pedro Mesquita (entrevista) , Pedro Valente Lima (vídeo)

O membro da Comissão Independente realça que o estudo forneceu à Igreja uma lista de nomes e "informação bastante" para intervir preventivamente no caso de sacerdotes denunciados. Para o antigo ministro da Justiça, "não é verdadeiro dizer que àquela lista de nomes não correspondem factos" e a informação é "mais do que suficiente para iniciar uma investigação e para poder adotar, para já, medidas de natureza preventiva".

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Abusos. "A resposta que a Igreja deu é muito frouxa"
Abusos. "A resposta que a Igreja deu é muito frouxa"

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Uma resposta "realmente frouxa" e que peca por escassa, até agora. Assim descreve o jurista Álvaro Laborinho Lúcio a ação da Igreja Católica sobre os alegados casos de abuso sexual de crianças em Portugal.

Em entrevista à Renascença, o membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Igreja Católica Portuguesa declara-se "perplexo" com a conferência de imprensa da CEP, de 3 de março, e a posição sobre a lista de padres denunciados por alegados abusos, quando anteriormente D. José Ornelas teve uma "intervenção extraordinariamente assertiva e extraordinariamente consonante com as propostas da Comissão Independente".

Laborinho Lúcio afirma que os bispos dispõem de dados para investigar e para afastar religiosos preventivamente, sem que isso ponha em causa a presunção de inocência. "Não é verdadeiro dizer que àquela lista de nomes não correspondem factos", sublinha.

O antigo ministro da Justiça acredita que a Igreja portuguesa ainda vai a tempo de liderar pelo exemplo, assumindo um palco global já na próxima Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2023). Laborinho Lúcio espera que "a igreja do Papa Francisco" leve a melhor sobre a fação ultraconservadora na Igreja, "que não é minimamente sensível ao sofrimento das vítimas".

O membro da Comissão Independente realça que este trabalho abre portas a estudos de maior envergadura sobre as mais variadas dimensões da sociedade portuguesa.

Começava por lhe perguntar se, depois da conferência de imprensa da CEP, já houve algum contacto entre a Comissão Independente e os bispos para esclarecer as dúvidas manifestadas pela Conferência Episcopal relativamente à lista de nomes que lhe foi entregue.

Tenho a convicção de que esta nossa conversa vai ser muito mais produtiva daqui para a frente, porque não começa da maneira como eu gostaria de a começar. Nós decidimos que sobre esse tema, nesta altura, não prestamos declarações.

Importa verdadeiramente saber se essa lista de nomes permite, realmente, a cada diocese, relacionar com os factos concretos de que são suspeitos os alegados abusadores. Antecipadamente, já existia, ou não, informação detalhada sobre as circunstâncias e as denúncias que as vítimas foram fazendo?

Sim, claro que sim. E, realmente, é muito estranha a declaração de que nós nos limitámos a apresentar uma lista de nomes relativamente à qual não há qualquer tipo de factos que possam depois desenvolver uma investigação.

É certo que nós apresentamos uma lista de nomes, mas essa lista de nomes estava anunciada por nós há imenso tempo, nas várias conferências de imprensa que fomos fazendo. E no próprio relatório final consta que nós apresentaríamos à CEP uma lista dos alegados abusadores. E isso foi o que aconteceu. Feita diocese a diocese, até para garantir o sigilo que, em cada diocese, tinha sido garantido, ao podermos ter acesso aos arquivos e, sobretudo, aos arquivos secretos da Igreja.

Foi isto que foi feito, era isto que se aguardava que se fizesse. O que acontece - e é por isso que a informação acaba por ser uma informação que falseia a realidade - é que os senhores bispos, todos eles, tinham muita informação sobre os factos que agora vêm dizer não existirem.

No contacto direto com o nosso grupo de investigação histórica, que foi aquele que contactou diretamente as dioceses, houve trabalho efetivo feito com alguns dos senhores bispos - e quando não foi com os senhores bispos, foi com representantes seus. Um cónego aqui, um cónego vigário acolá, que eram representantes dos bispos que trabalharam diretamente nos arquivos com o grupo de investigação histórica, que, por sua vez, receberam toda a informação da base de dados da Comissão.

"Os senhores bispos, todos eles, tinham muita informação sobre os factos [abusos] que agora vêm dizer não existirem."

Portanto, os senhores bispos sabiam que, relativamente a cada nome, existiam aqueles factos concretos praticados naquele ano concreto, contidos naquelas circunstâncias e com aquele tipo de abusos que são explicitados em cada uma das situações. Portanto, não é verdadeiro, e lamento dizer assim, dizer que àquela lista de nomes não correspondem factos.

Os factos que foram disponibilizados - e que podem, eventualmente, ser disponibilizados outra vez ou até com maior substância daqui para a frente, visto que a base de dados continua na posse da Comissão - são mais do que suficientes para iniciar uma investigação e são mais do que suficientes para poder adotar, para já, medidas de natureza preventiva.

Mas os bispos tiveram acesso ao acervo de documentos que vos permitiram chegar a conclusões?

Ao acervo de documentos diretos não, na medida em que a base de dados é confidencial. Ela foi trabalhada desde o início com a garantia de que manteríamos até o fim o sigilo quanto à identidade das vítimas.

Portanto, nós não podemos transportar toda essa documentação para as mãos dos senhores bispos, visto que, a partir daí, a identidade das vítimas fica à disposição de quem lê a base de dados que nós temos. Mas toda essa base de dados é disponibilizada a partir do momento em que nós podemos retirar dela todos os elementos que identificam as vítimas.

"É fundamental compreender que o trabalho que foi feito pela Comissão permite, verdadeiramente, assegurar a fiabilidade dos testemunhos."

A identificação delas depende da vontade de cada uma. Não pode ser violada agora, a partir da nossa abertura àquilo que no fundo é o contexto geral da intervenção da Igreja. Agora o que é fundamental é compreender que, por um lado, o trabalho que foi feito pela Comissão permite, verdadeiramente, assegurar a fiabilidade dos testemunhos.

Nós não podemos garantir que nos 564 testemunhos que foram apresentados não haverá um ou outro que tenha eventualmente escapado ao nosso crivo de avaliação. Mas eles foram trabalhados muito concretamente do ponto de vista do cruzamento de dados, através de uma formulação científica para a elaboração de inquéritos desta natureza, que permitem, evidentemente, ultrapassar situações de dúvida quanto à fiabilidade do testemunho.

E posso mesmo dizer que aquilo que se vai conhecendo dos trabalhos científicos que têm sido elaborados em áreas desta natureza, e que nos dizem, por exemplo, que em inquéritos deste tipo a hipótese de falibilidade ou de falsificação do testemunho ronda entre os 3% e os 5%, nós excluímos 10%. Portanto, estamos dentro de uma margem de segurança enorme.

"Os factos que foram disponibilizados são mais do que suficientes para iniciar uma investigação e são mais do que suficientes para poder adotar, para já, medidas de natureza preventiva."

Evidentemente, isto não é prova dos factos em concreto. Essa prova dos factos em termos finais de condenação ou não tem que ser feita. Continua a vigorar, aqui, o princípio da presunção de inocência, evidentemente. Continua a haver necessidade de fazer a prova concreta dos factos para que se possa depois extrair uma decisão condenatória.

Agora, para início do processo, para suspensão da atividade, se for caso, para desvio do local onde pressupõe o contacto de cada um dos eclesiásticos, ou de outros membros da Igreja, com crianças, isso pode ser feito imediatamente.

Mas nessas medidas cautelares: será ou não essencial que se saiba quem disse, em que lugar e quando?

Não. O “quem disse” não é. E prova disso é que hoje há muita investigação criminal que parte de dados fornecidos anonimamente. Durante muito tempo isso não era admitido. Hoje é admitido também no próprio direito canónico. Portanto, isso não é necessário.

O que acontece é que nós não estamos perante uma qualquer pessoa que se arroga a condição de vítima e que indica um nome à Igreja para ser perseguido. Não é isso que acontece. O que acontece é que nós temos os testemunhos das vítimas.

Temos os testemunhos que foram trabalhados, muitos deles presencialmente. A esmagadora maioria [foi] através do inquérito que foi elaborado, repito, com grelhas de avaliação crítica, cientificamente fundadas, e que nos permitem atribuir uma grande fiabilidade aos testemunhos apresentados.

"Hoje há muita investigação criminal que parte de dados fornecidos anonimamente. É admitido também no próprio direito canónico. Portanto, não é necessário [revelar nomes das vítimas]."

Depois, a partir daí, nós reunimos um conjunto de factos concretos que foram transmitidos às dioceses e aos senhores bispos em cada diocese. Portanto, têm nas mãos todos os elementos para iniciar um trabalho.

Confirma que a lista de alegados abusadores inclui cerca de 100 pessoas ainda no ativo?

Sobre isso nós também não falamos. Nós enviámos as listas, as listas hoje são pertença da Igreja. A Igreja falará das listas como entender que deve fazer.

A lista de alegados abusadores inclui nomes que tenham sido comunicados à Comissão Independente pelos próprios bispos?

Não sou capaz de dizer agora, não creio que tenha havido. Há, sim, nomes que vieram indicados pelos bispos a partir dos arquivos, aí sim. Isso aí foi o conhecimento que a visita aos arquivos permite construir.

Portanto, da mesma maneira que a lista final incorpora todos os dados que estavam na base de dados da Comissão, essa base de dados também já é integrada pelos elementos que vieram dos próprios arquivos e do próprio visita aos arquivos da Igreja.

Como é que se processou a articulação entre a Comissão Independente e a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas? Ao longo de todo o trabalho, houve partilha de informação e, se sim, nos dois sentidos?

Não. Houve partilha de informação, muitos escassa, por parte das comissões diocesanas relativamente à Comissão. Quando digo escassa, foram os elementos que nos foram fornecidos, que são muito frágeis do ponto de vista quantitativo, mas eram os dados que as comissões diocesanas tinham.

Não houve informação nossa [enviada] diretamente para as comissões diocesanas, visto que nós mantivemos sempre fechada toda a informação desde o início até ao fim.

É importante não esquecer que a Comissão Independente era uma comissão de estudo, não era uma comissão de investigação e muito menos uma investigação de promoção de processos que sejam dirigidos a uma eventual condenação.

Tudo isso são trabalhos a desenvolver depois pelas entidades que têm competência para o poder fazer e, nomeadamente, pelas estruturas da Igreja, no âmbito da aplicação daquilo que são as regras previstas no direito canónico.

Portanto, não houve informação nossa enviada diretamente durante o estudo. Essa informação, agora, resulta exuberantemente do relatório que foi apresentado e resulta da informação mais esparsa que vai ser dada aqui e ali, a partir das perguntas que nos são dirigidas. O que é facto é que há hoje disponibilizada toda a informação bastante para intervir.

"Há todo um outro aspeto que é muito importante, que é o de saber como se vai agir [daqui] para a frente, como se vai atuar no sentido de prevenir este tipo de situações. As imensas recomendações que foram enviadas pela Comissão acabaram por passar para segundo plano, na medida em que ficamos a discutir esta perspetiva das listas e dos nomes referidos nas listas."

Há, todavia, um aspeto que eu não posso deixar de referir. Nós não podemos ficar apenas ligados a esta ideia - que, aliás, foi introduzido pela própria conferência de imprensa da Conferência Episcopal Portuguesa - que é esta questão das listas e da relação das listas com factos ou não.

Isso é um dos elementos [do estudo]. É um elemento importantíssimo, visto que tem a ver, obviamente, com a identificação das pessoas, dos abusadores e com a possibilidade de intervir sobre eles, sobretudo preventivamente, mas há todo um outro aspeto que é muito importante, que é o de saber como se vai agir [daqui] para a frente, como se vai atuar no sentido de prevenir este tipo de situações.

E aí todas as imensas recomendações que foram enviadas pela Comissão Independente acabaram por passar todas elas para segundo plano, na medida em que ficamos a discutir esta perspetiva das listas e dos nomes referidos nas listas.

"A resposta que a Conferência Episcopal deu é realmente (...) frouxa, muito frouxa."

Isso, repito, é muito importante. Mas é fundamental nós compreendermos que, relativamente a tudo o resto, a resposta que a Conferência Episcopal deu é realmente uma resposta que eu diria, enfim, com alguma benevolência, frouxa, muito frouxa, e que gerou em nós uma imensa perplexidade.

Ficou surpreendido?

Absolutamente. Absolutamente surpreendido. E essa é uma questão que não pode deixar de ser colocada.

Ficámos todos surpreendidos nós, membros da Comissão, por várias razões, que eu enuncio brevemente, para se perceber qual é o ponto da situação quanto à relação que nós estabelecemos, agora, com o que verdadeiramente está a acontecer.

A Conferência Episcopal Portuguesa teve a iniciativa de constituir esta comissão: primeiro ponto que joga claramente a seu favor. Pode dizer-se que foi demasiado tardia. Fosse como fosse, constituiu a comissão.

Foi a primeira instituição, de resto, a fazê-lo.

Segundo ponto a seu favor - e [que é] importante: não houve nunca nenhuma interferência por parte da Conferência Episcopal nos trabalhos da Comissão.

Foi verdadeiramente independente.

Completamente independente, o que permitiu que nós pudéssemos ter sido também completamente isentos no trabalho que desenvolvemos.

Também não houve nenhuma reação negativa quando o relatório foi apresentado por vocês.

Outro ponto a louvar é a presença do Conselho Permanente da Conferência Episcopal na primeira fila [da apresentação do relatório final da Comissão Independente]. Foi particularmente saudável e de louvar, visto que os senhores bispos sabiam que, provavelmente, não iam ouvir informações que lhes agradassem particularmente.

Portanto, temos aqui três pontos que jogam claramente a favor da Conferência Episcopal Portuguesa. No dia 3 de março, três semanas depois de ter sido apresentado o relatório e dos senhores bispos terem tido tempo mais do que suficiente para o estudar profundamente, nós vamos a Fátima e reunimos durante a manhã com os senhores bispos...

Como é que foi essa reunião?

A reunião começa com uma intervenção do senhor D. José Ornelas, extraordinariamente assertiva e extraordinariamente consonante com as propostas da Comissão Independente.

Louvando mesmo trabalho da Comissão Independente, agradecendo e dizendo que a Igreja estava claramente disposta a prosseguir na linha que tinha sido a determinada, quer pelos resultados, quer pelas recomendações que tínhamos feito.

O debate com os restantes senhores bispos foi rápido, decorreu com brevidade. Não foi especialmente substantivo.

Foram colocadas dúvidas?

Uma outra questão, mas muito frágeis, de fácil esclarecimento. Surgiu uma questão, que também é importante que fique resolvida, porque nós verificámos que havia algumas pessoas que perguntavam como é que as comissões diocesanas agora podiam desenvolver o trabalho de investigação.

Nós tivemos o cuidado de dizer que acharíamos que, neste momento, a recomendação por parte da Comissão, de que devia ser constituída outra comissão, com um traço de independência semelhante ao desta, era fundamental e que era a partir da intervenção dessa comissão que se chamaria depois à ação as comissões diocesanas.

"O único argumento que nos leva a dizer que era fundamental partir de uma comissão independente é porque é essencial criar a confiança das vítimas na estrutura que vai trabalhar com elas."

Não estaria nisto, nem esteve nisto nunca, qualquer reserva quanto à intenção da intervenção das comissões diocesanas, nem qualquer reserva quanto à constituição das comissões diocesanas.

O único argumento que nos leva a dizer que era fundamental partir de uma comissão independente, é porque é essencial criar a confiança das vítimas na estrutura que vai trabalhar com elas.

Mas, nessa manhã, os bispos receberam a tal lista e verificaram logo que era uma lista de nomes. Houve algum tipo de...

Não sei se verificaram logo. A lista foi entregue no início, em envelopes fechados, e cada um deles dirigido a cada diocese, na linha do que eu disse há pouco: porque havia um compromisso da nossa parte de que o trabalho dos arquivos ficaria sempre secreto, seria sempre sigilo.

Já me disse que considera que os bispos estão em condições de agir. Quais são as medidas cautelares possíveis para que estes alegados abusos não possam ser repetidos? E pergunto-lhe também se nesta fase já existe ou não o direito do contraditório?

Depende do que do que se entende por direito do contraditório. Evidentemente que se houver um início de um processo de investigação, a pessoa sobre quem recai a investigação tem, obviamente, o direito, desde logo, a ser ouvida e de apresentar tudo aquilo que sejam os seus argumentos e as suas provas no sentido de demonstrar o contrário.

Evidentemente que sim, faz parte de qualquer inquérito num Estado de Direito democrático, seja o direito civil, seja o direito canónico que esteja a ser aplicado. O que não impede - e isso é que nos parece fundamental - que as pessoas sobre quem recai esta suspeita possam ser preventivamente suspensas ou deslocadas de lugares onde tenham contacto com crianças.

Isto é perfeitamente possível. Não põe nada em causa no princípio da presunção de inocência, não põe nada em causa no princípio do contraditório da produção da prova.

Basta dar um exemplo: o princípio da presunção de inocência evidentemente que é um princípio que vem do próprio processo penal e que leva a que, em todos os processos de investigação criminal, tenha que ser respeitado. Todavia, muito antes das condenações e muito antes do trânsito em julgado das condenações, pode haver situações de prisão preventiva de prisão domiciliária, suspensão de funções, etc.

Tudo isso são medidas preventivas que jogam verdadeiramente aqui, neste domínio, visto que, ainda por cima, o que nós temos são testemunhos, não são meras queixas apresentadas num papel avulso para uma pessoa que não se sabe quem é.

"[A suspensão preventiva] é perfeitamente possível. Não põe nada em causa no princípio da presunção de inocência, não põe nada em causa no princípio do contraditório da produção da prova."

Temos aqui a fiabilidade do testemunho, assegurada pelo trabalho da Comissão enviado à Igreja, que não envolve, repito, a condenação imediata daquela pessoa.

Quanto a essas medidas cautelares, nem todos os bispos têm assumido posições idênticas.

Não, mas os bispos têm dito coisas que são, eu peço imensa desculpa, mas que são erradas do ponto de vista técnico. Têm feito algumas afirmações que são absolutamente surpreendentes, porque nós temos a conferência de imprensa que gerou tal perplexidade de todos nós - e a perplexidade torna-nos incapazes de explicar o que está por detrás das razões que levaram àquela conferência de imprensa -, mas temos depois a confirmação sucessiva daquilo que foi dito na conferência de imprensa.

Nós temos inclusivamente declarações do senhor D. Manuel Clemente, cardeal patriarca - que é uma pessoa que eu estimo pessoalmente, que já deu sucessivas provas, inclusivamente a sua qualidade - que diz coisas que... Como por exemplo, a previsão de indemnização poder ser insultuosa para as vítimas, o que significaria que a Igreja alemã, Igreja irlandesa, Igreja francesa, seriam igrejas insultuosas, porque o fizeram desde logo e atribuíram uma importância significativa para poderem indemnizar as vítimas, sendo certo que caberá às vítimas, elas sim, dizer se estão ou não estão interessadas em requerer essa indemnização.

"Caberá às vítimas, elas sim, dizer se estão ou não interessadas em requerer essa indemnização."

Devo dizer que aconteceram apenas um, dois ou três casos - e, portanto, absolutamente espúrios -, em que elas manifestaram o desejo de serem indemnizadas. Nos outros não.

E nesses casos, se houver pedidos de indemnização, no seu entender as vítimas devem ser indemnizadas pelos supostos abusadores - caso se confirme, claro, a acusação -, ou pela própria Igreja?

Se nós entramos numa análise estritamente jurídica, no limite judiciário do caso, evidentemente que é necessário definir, entrar em argumentações jurídicas complicadas, entre o saber se a responsabilidade é objetiva ou é subjetiva, qual é a responsabilidade que cabe à Igreja enquanto instituição, entrar na distinção entre comitente e o comissário, que são coisas muito complicadas do ponto de vista jurídico. O que está aqui em causa não é nada disso.

O que está aqui em causa é o dever de repor uma situação que foi praticada no seio da própria Igreja e que, a não encontrar, por parte da Igreja, uma disponibilidade para fazer, acaba por levar a Igreja a incorporar como seus os abusos que verdadeiramente foram praticados no seu seio por vários dos seus elementos.

Portanto, eu não tenho dúvidas de que há, necessariamente do ponto de vista moral e ético, uma imposição de disponibilização para o poder fazer.

Mas não é apenas isso. É um problema também no eventual tratamento, no apoio psicológico ou psiquiátrico, que também não pode ser feito por elementos internos da Igreja, nem por pessoas designadas pela Igreja.

Toda esta construção que tem sido feita não atribui nenhum relevo à individualidade e à dimensão do sujeito de um outro que é vítima. A vítima não aparece nunca como aquilo que deve ser o centro que motiva depois a procura de soluções...

Mas a Igreja anunciou que apoiará a vítima, que dará esse apoio psicológico, dentro ou fora, e mesmo de uma forma independente.

Pois muito bem, mas tem que ser mais assertiva relativamente a isso. O que acontece é que, aparentemente – e eu não quero estar a fazer, sequer, uma acusação para lá daquilo que hoje são elementos dos quais podemos dispor -, até agora, não se verificou uma atitude, diria que de compaixão para com as próprias vítimas e para com o sofrimento das vítimas.

Por outro lado, as respostas que a Igreja se propõe dar, aparentemente, seguindo mesmo algumas delas na linha das recomendações que a Comissão fez, não aceitam a ideia da externalização da resposta. Isto é, a ideia de que é por fora que a resposta deve ser dada e é com elementos que são estranhos à própria Igreja que nós devemos iniciar um caminho de resposta.

"Até agora, não se verificou uma atitude [da Igreja] de compaixão para com as próprias vítimas e para com o sofrimento das vítimas."

Há um desejo de internalização para dentro daquilo que é a estrutura da própria Igreja, o que verdadeiramente será desejável num futuro próximo, mas neste momento é inexequível, visto que o problema fundamental é reorganizar a confiança que as vítimas podem ter na Igreja e assim dificilmente se conseguirá.

Regressando ainda às conclusões do relatório e às recomendações que fizeram, a Comissão Independente vai partilhar este relatório final com as instâncias internacionais, desde logo com o Vaticano? Também já enviaram esse documento ao Vaticano ou compete aos bispos enviá-lo?

Nós temos a expectativa de que seja a Igreja enviá-lo através do correio hierárquico e da comunicação hierárquica interna, mas evidentemente que é perfeitamente natural que nós façamos uma edição especial.

E vão fazê-lo?

Estamos a avaliar isso. Mas há um aspeto que me parece importante: é que é de bom tom - e aqui é uma questão de delicadeza diria eu - que nós façamos uma edição com algum cuidado para oferecermos, evidentemente, ao Papa, diretamente ao Papa. E isso, provavelmente, vai acontecer.

Quanto à PGR, deveria já ter tido uma palavra mais efetiva neste caso?

Não. A questão da relação com o Ministério Público tem que ficar muito clara no espírito das pessoas - e eu aí faço questão em tentar contribuir para essa clarificação.

Nós não podemos esperar muito da intervenção do Ministério Público aqui. Não porque o Ministério Público não a quer ter, mas porque, num Estado de Direito como o nosso, há regras para intervir a esse nível e a garantia dos elementos que sustentam a intervenção do Ministério Público praticamente não existe aqui.

Nós temos muito poucos casos dentro do prazo de investigação criminal. Isto é, a grande maioria dos casos já prescreveu. Portanto, não pode haver investigação criminal sobre factos que constituem crimes cujo procedimento criminal já prescreveu.

"Nós não podemos esperar muito da intervenção do Ministério Público aqui. Não porque o Ministério Público não a quer ter, mas porque, num Estado de Direito como o nosso, há regras para intervir a esse nível e a garantia dos elementos que sustentam a intervenção do MP praticamente não existe aqui."

Mas se isso retira força legal para uma intervenção, não retira também força na própria Igreja?

Não. E é bom não deixar criar aí relações de mimetismo entre uma coisa e outra. Nós estamos a falar no direito penal e em direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República e pela lei processual penal.

Portanto, nós enviámos ao Ministério Público 25 casos que cabiam dentro do prazo da prescrição. Desses 25 casos, nós, no momento em que fizemos a apresentação do relatório - e eu estou muito à vontade, porque fui eu quem disse isso -, dissemos que desses 25 casos, havia alguns cuja investigação parecia relativamente simples, outros cuja investigação seria de uma grande complexidade e outros cuja investigação criminal provavelmente nem sequer teria lugar.

Por exemplo: nós tivemos um caso em que uma senhora, numa reunião onde estávamos vários, meteu dentro do bolso de um de nós um papel dizendo: “investiguem estes dois”. E foi-se embora. Quando nós chegamos aos trabalhos da Comissão, vimos um papel, tínhamos um nome de dois eclesiásticos, sem mais nada.

Aí sim, era um papel com dois nomes. Nós tínhamos duas alternativas. Ou rasgávamos o papel - e teríamos alguém, um dia, a dizer: “eu enviei uma queixa contra duas pessoas que não fizeram nada”.

Ou enviávamos para o Ministério Público, porque é a única entidade com competência para investigar. Evidentemente, que isto é ininvestigável. Não se pode investigar isto, visto que nós não podemos começar a perseguir uma pessoa pelo simples facto de haver um papel que diz: “esta pessoa cometeu um crime”.

Não houve situações dessas?

Houve situações. Esta situação foi enviada ao Ministério Público e faz parte dos 25 casos.

Mas, curiosamente, foi enviado ao Ministério Público, mas não consta na nossa base de dados. Portanto, não consta daqueles [casos] que nós enviámos à Igreja como validados.

"Esta situação [papel com nomes de dois eclesiásticos] foi enviada ao Ministério Público e faz parte dos 25 casos."

Entre as medidas que a Conferência Episcopal já anunciou, está a constituição de um grupo específico para dar continuidade ao trabalho de escuta das vítimas e recolha de eventuais denúncias de abusos sexuais de menores, mantendo, diz a CEP, um carácter de independência. Como é que olha para esta decisão? Está confiante?

Eu agora não posso falar em confiança ou não. Quer dizer, eu quero estar confiante. Quero alimentar a ilusão, porventura excessivamente ingénua, de que o que se está a passar seja alguma coisa que rapidamente voltará à sua situação normal.

Porque se o caminho for este, que foi anunciado, então, provavelmente, não. E nós temos que ser muito claros nisto. Uma comissão dessas, que seja aquela que a Comissão propôs, tem de ser constituída por uma maioria de personalidades externas, de reconhecido mérito, especialistas em áreas como a sociologia, antropologia, psicologia, psiquiatria, o direito, e que podem integrar. Essa é a diferença relativamente à nossa, de membros designados pela Igreja, em minoria.

Portanto, esta comissão, que será uma comissão criada pela Igreja, maioritariamente constituída por elementos externos, que não venham da escolha da simpatia deste ou daquele membro da Igreja, mas que venham do reconhecimento público da sua qualidade, será uma comissão que pode vir suceder ao trabalho que nós desenvolvemos, passar uma fase de recolha de testemunhos, de apreciação desses testemunhos e depois de envio para as comissões diocesanas para, a partir daí, se desencadear o respetivo processo.

Do ponto de vista das vítimas, como é que tudo estará a ser percecionado? Algumas delas, já se sabe, e só contaram o que lhes aconteceu muitos anos depois dos factos que foram descritos. Teme que a agitação dos últimos dias possa prolongar o silêncio de quem ainda não falou?

Temo, claro que temo. Temo que possa prolongar o silêncio de quem ainda não falou e que possa manter o silêncio de quem, ainda depois de ter falado, mantém a sua identidade sigilosa e não queira vir a descobri-la.

Neste momento, presumo eu - não falo, evidentemente, pelas vítimas -, as vítimas dirão o que teria acontecido se nós tivéssemos mudado o nosso nome atrás do testemunho que apresentámos. Porque as poucas vezes em que nós ouvimos falar das vítimas, por parte desta perspetiva da Igreja, é para pôr em causa a veracidade dos seus próprios testemunhos.

Nós não podemos saber se estamos perante testemunhos verdadeiros ou falsos. Portanto, nós precisávamos de ter criado aqui um fluxo, uma corrente de abertura da Igreja que permitisse a garantia da confiança das vítimas presentes, passadas e futuras, de forma a que elas pudessem estabelecer uma relação tão próxima quanto possível com a Igreja, que é isso que verdadeiramente se deve pedir a Igreja.

"As poucas vezes em que nós ouvimos falar das vítimas, por parte desta perspetiva da Igreja, é para pôr em causa a veracidade dos seus próprios testemunhos."

Ora, até aqui, o que aconteceu foi exatamente o contrário, o afastamento das vítimas.

Ainda pode ser alterada essa situação?

Eu julgo que sim. Se houver uma determinação clara, forte e inequívoca de que isso deva acontecer. Há um aspeto que, aliás, também não tem sido, a meu ver, tratado devidamente, que tem que ver com o pedido de perdão durante a Jornada Mundial da Juventude.

Aquilo que foi dito na reunião matinal do dia 3 de Março, com a Conferência Episcopal, foi que as notícias que chegam até nós dizem que os encarregados de organizar a Jornada Mundial da Juventude vão criar uma "Praça do Perdão", onde serão instalados cerca de 100 confessionários e onde os fiéis irão confessar-se e reclamar o perdão, que lhe pode ser dado, após a penitência, para serem absolvidos dos seus pecados.

Ora, havendo uma "Praça do Perdão", com esta designação, não faz sentido nenhum que não haja um placar, visível, em que a Igreja peça ela própria perdão pelos abusos sexuais às vítimas. Não tem outro efeito que não seja um efeito simbólico, mas tem um efeito simbólico duplo.

Tem por um lado o efeito junto das vítimas, que não deixarão de gostar, de reconhecer que a Igreja reconheceu – passo a redundância - aquilo que, no fundo, foi, para usar a mesma expressão, os pecados que foram cometidos por ela, mas tem outro aspeto que é muito importante, que é a Igreja, a entidade que concede o perdão, compreender e aceitar publicamente demonstrar que tem a humildade suficiente para ser ela a pedir o perdão quando a questão se inverte e já não é a Igreja que concede o perdão, mas é ela que deve, publicamente, pedir o perdão.

"Havendo uma 'Praça do Perdão', com esta designação, não faz sentido nenhum que não haja um placar, visível, em que a Igreja peça ela própria perdão pelos abusos sexuais às vítimas."

Agora, constituir uma "Praça do Perdão", em que quem pede perdão são os fiéis e a Igreja se esconde atrás daquilo que eventualmente tenha acontecido no seu seio e não assume publicamente o dever de pedir esse perdão, é mais do que simbólico, julgo eu.

Os abusos sexuais de menores não acontecem apenas na Igreja, como se sabe. Há abertura do Governo, nos contactos que já estabeleceram com alguns ministros, para fazer um estudo semelhante ao que foi pedido pela Igreja a uma escala muito maior e transversal? Uma “via verde”, como já se ouviu dizer, por exemplo no SNS, para atender e eventualmente acompanhar essas vítimas?

Sim, nós encontrámos uma abertura grande por parte da ministra da Justiça e da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social no sentido de, por um lado, continuarem aquilo que era um trabalho que vinha sendo já desenvolvido e agora, na perspetiva da posição da Comissão, a pugnar por uma alteração que não é aos prazos da prescrição do procedimento, mas uma alteração ao tempo do direito de denúncia, do direito de queixa por parte da vítima - que até aqui, como se sabe, uma criança que tenha sido submetida a um abuso sexual pode suspender o prazo da prescrição até perfazer 23 anos.

Portanto, ela pode queixar-se até aos 23 anos. Nós propomos até aos 30. Há outros países que estão a pensar em ir um pouco mais além. Nós não nos fixamos nos 30, é uma idade possível, mas temos completa abertura, como é evidente, a que seja outra.

E isto já está, julgo eu, a decorrer no seio do Parlamento. Portanto, julgamos que este caminho é importante, não para alterar os prazos da prescrição, mas para alterar este direito de queixa que suspende o prazo da prescrição.

"Estamos em contacto com o Ministério da Saúde para que haja resposta, sobretudo, no domínio da saúde psiquiátrica e psicológica. Justamente para obter uma resposta externa e não uma resposta interior, que venha de dentro da própria Igreja."

Por outro lado, também é própria das recomendações que nós fizemos, que deva ser constituída uma comissão, ou encontrada uma estrutura, que venha fazer um levantamento sobre os abusos sexuais de crianças na sociedade portuguesa em geral. Na família, nas várias organizações, sobretudo nas instituições totais, mas em outras ver qual é o estado da situação dos abusos sexuais da criança em Portugal.

Também encontramos disponibilidade por parte das duas ministras nesse sentido.

Estamos também em contacto com o Ministério da Saúde para que haja disponibilidade no sentido de haver uma resposta, sobretudo no domínio da saúde psiquiátrica e psicológica a este nível. Justamente para obter uma resposta externa e não uma resposta interior, que venha de dentro da própria Igreja.

Portanto, está bem encaminhada?

Nós julgamos que sim. Agora é muito importante que a Igreja seja, de facto, uma parceira ativa nisto. Isso é que é fundamental. Não colocar-se numa posição de recusa, em que verdadeiramente fica no ar a ideia de que foi encontrada aqui uma forma muito administrativamente fundamentada para manter uma ocultação que já vinha de trás e que, aparentemente, se pretende continuar daqui para a frente. E isto é inaceitável.

Gostaria muito que, a partir da modéstia das minhas explicações, a partir de toda a intervenção que tem acontecido na sociedade portuguesa, haja aqui uma renovação de pensamento relativamente a isto.

Hoje, verdadeiramente, nós temos duas posições no seio da Igreja, temos uma posição ultraconservadora, que se fecha sobre si própria, que não é minimamente sensível ao sofrimento das vítimas, que não integra as vítimas verdadeiramente naquilo que são os seus propósitos de mudança, e uma outra Igreja diferente, aberta, uma igreja do Evangelho, uma igreja do Papa Francisco, que é uma igreja onde as vítimas têm que encontrar o seu espaço, têm que se sentir representadas e com a qual têm de gerar uma relação de confiança que permita ultrapassar tudo isto.

"Hoje, verdadeiramente, nós temos duas posições no seio da Igreja, temos uma posição ultraconservadora (...) e uma outra Igreja diferente, aberta, do Evangelho, uma igreja do Papa Francisco, onde as vítimas têm que encontrar o seu espaço, têm que se sentir representadas."

O que está aqui em causa, portanto, não é um ataque à Igreja. Pelo contrário, grande parte da Igreja tem estado na rua a bater-se por isso, e é essa igreja que tem que se afirmar verdadeiramente. Oxalá que sim. A Igreja Católica Portuguesa tem, no verão que vem, a possibilidade, através da Jornada Mundial da Juventude, ser um grande exemplo para o mundo inteiro.

Neste momento, não é, mas ainda tem tempo de se poder organizar de forma a vir a ser. Esse é verdadeiramente o meu desejo, sobretudo como cidadão.

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