O número chocou França em outubro de 2021: pelo menos 216 mil menores terão sido abusados no país por padres e outros membros da Igreja católica, entre 1950 e 2020. A estimativa da Comissão Independente que estudou o fenómeno, poderá mesmo ultrapassar as 330 mil vítimas, se forem tidos em conta os abusos perpetrados por leigos, como é o caso de catequistas. Os números podem também estar subestimados, visto que muitas vítimas já terão morrido sem terem quebrado o silêncio.
As conclusões são fruto de dois anos e meio de trabalho da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja Católica Francesa (CIASE), uma investigação que foi solicitada pela Conferência de Religiosas e Religiosos Franceses (CORREF), em conjunto com a Conferência Episcopal de França (CEF) e que deixam uma mancha profunda na história da Igreja no país. No fundo, durante 70 anos, terão sido abusadas, em média, mais de 12 crianças por dia. Ao todo, mais de três mil membros do clero e leigos terão abusado de menores entre os 10 e os 13 anos de idade.
Quem acompanha de perto as vítimas diz que uma das causas do silêncio a que se submeteram durante anos tem a ver com o facto de, quando denunciaram pela primeira vez, ninguém ter acreditado nelas. Foi o que explicou, em exclusivo à Renascença, Véronique Margron, presidente da CORREF, que representa vários institutos e congregações católicas.
“Quase uma em duas vítimas tentou denunciar. Por vezes, logo após os crimes terem sido cometidos", refere. No entanto, "quando as vítimas dizem algo tão íntimo e, também terrível, e não acreditam nelas, elas acabam por calar-se durante décadas”. A isso juntou-se ainda o “fenómeno traumático".
A teóloga, de 65 anos, tornou-se nos últimos anos, em França, uma das principais figuras da luta contra os abusos sexuais na Igreja. Ouviu já centenas de vítimas, como, por exemplo, a mulher abusada, quando adolescente, por um pároco de Marselha, Jean Pierre-Ricard, que se viria a tornar cardeal de Bordéus. Pierre-Ricard é uma das mais altas figuras da Igreja francesa a estar envolvida nos escândalos sexuais.
O caso que mais chocou Margron foi, no entanto, o de um menino de "4 ou 5 anos" que se "tornou objeto sexual de um padre" com o "acordo mais do que tácito do pai", que, "de alguma forma, deu este filho a este padre como sacrifício".