França. Drama dos abusos "é particularmente grave" quando é na Igreja

Teóloga Véronique Margron diz à Renascença que o “drama” dos abusos tem especial gravidade na Igreja. Para a presidente da Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses é preciso estar mais atento aos sinais de alarme e valorizar o testemunho das vítimas.

07 fev, 2023 - 18:26 • Stefanie Palma



Ativistas denunciam inação do Governo francês e do sistema judicial em relação aos casos de abusos na Igreja francesa. Ativistas exibem nomes de vítimas de abusos que puseram fim à vida. Foto: Anna Margueritat / Hans Lucas / Reuters
Ativistas denunciam inação do Governo francês e do sistema judicial em relação aos casos de abusos na Igreja francesa. Ativistas exibem nomes de vítimas de abusos que puseram fim à vida. Foto: Anna Margueritat / Hans Lucas / Reuters

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O número chocou França em outubro de 2021: pelo menos 216 mil menores terão sido abusados no país por padres e outros membros da Igreja católica, entre 1950 e 2020. A estimativa da Comissão Independente que estudou o fenómeno, poderá mesmo ultrapassar as 330 mil vítimas, se forem tidos em conta os abusos perpetrados por leigos, como é o caso de catequistas. Os números podem também estar subestimados, visto que muitas vítimas já terão morrido sem terem quebrado o silêncio.

As conclusões são fruto de dois anos e meio de trabalho da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja Católica Francesa (CIASE), uma investigação que foi solicitada pela Conferência de Religiosas e Religiosos Franceses (CORREF), em conjunto com a Conferência Episcopal de França (CEF) e que deixam uma mancha profunda na história da Igreja no país. No fundo, durante 70 anos, terão sido abusadas, em média, mais de 12 crianças por dia. Ao todo, mais de três mil membros do clero e leigos terão abusado de menores entre os 10 e os 13 anos de idade.

Quem acompanha de perto as vítimas diz que uma das causas do silêncio a que se submeteram durante anos tem a ver com o facto de, quando denunciaram pela primeira vez, ninguém ter acreditado nelas. Foi o que explicou, em exclusivo à Renascença, Véronique Margron, presidente da CORREF, que representa vários institutos e congregações católicas.

“Quase uma em duas vítimas tentou denunciar. Por vezes, logo após os crimes terem sido cometidos", refere. No entanto, "quando as vítimas dizem algo tão íntimo e, também terrível, e não acreditam nelas, elas acabam por calar-se durante décadas”. A isso juntou-se ainda o “fenómeno traumático".

A teóloga, de 65 anos, tornou-se nos últimos anos, em França, uma das principais figuras da luta contra os abusos sexuais na Igreja. Ouviu já centenas de vítimas, como, por exemplo, a mulher abusada, quando adolescente, por um pároco de Marselha, Jean Pierre-Ricard, que se viria a tornar cardeal de Bordéus. Pierre-Ricard é uma das mais altas figuras da Igreja francesa a estar envolvida nos escândalos sexuais.

O caso que mais chocou Margron foi, no entanto, o de um menino de "4 ou 5 anos" que se "tornou objeto sexual de um padre" com o "acordo mais do que tácito do pai", que, "de alguma forma, deu este filho a este padre como sacrifício".


Escândalo de Lyon ajudou vítimas a quebrar o silêncio

A chamada “cultura do silêncio” quanto aos abusos na Igreja tem, no entanto, vindo a mudar nos últimos anos. As vítimas têm falado cada vez mais. A presidente da CORREF destaca um evento significativo que serviu de impulso a esse fenómeno. No final de 2015, um grupo de vítimas reuniu-se e criou uma associação. Chama-se "La parole libérée" e nasceu na cidade de Lyon, com o intuito de denunciar os abusos cometidos por um padre, Bernard Preynat, que era capelão dos escuteiros, e que cometeu abusos durante os acampamentos de jovens, entre as décadas de 1970 e 1990.

Os depoimentos de 10 dos 35 jovens que sofreram às mãos do sacerdote provocaram comoção a nível nacional e o pároco, na altura com 74 anos, admitiu os crimes, ainda que, à data, muitos deles já tivessem prescrito. Acabou por ser condenado, em 2020, a cinco anos de prisão efetiva e não foi sozinho. Também o arcebispo de Lyon, o cardeal francês Philippe Barbarin, foi condenado a seis meses de prisão por omissão dos abusos. O escândalo fez, ainda, com que o próprio cardeal tivesse pedido ao Papa Francisco o afastamento da vida eclesiástica.

As décadas de encobrimentos e as revelações em catadupa, nos últimos anos, não livram a Igreja de várias acusações. Uma delas, dura, parte de Jean Marc-Sauvé, presidente da Comissão Independente, que acusou a instituição religiosa de “profunda e cruel indiferença” em relação às vítimas, até ao início dos anos 2000. Marc-Sauvé, que durante cerca de dois anos e meio conduziu um trabalho exaustivo próximo das vítimas, lembrou que muitos abusos, tal como os de Lyon, não foram denunciados por outros membros do clero, que deles tinham conhecimento.


"Creio que é importante que os abusos sejam denunciados publicamente sempre que possível"

Vítimas receberam indemnizações da Igreja Católica

Depois do relatório, publicado no final de 2021, a Igreja Católica Francesa decidiu dar uma indemnização monetária às vítimas de abusos sexuais, que segundo nos confirmou Véronique Margron, pode ir de 5000 a 60.000 euros, dependendo da gravidade das situações. A maioria das vítimas aceitou este valor monetário compensatório.

A partir das recomendações da comissão CIASE, foram ainda constituídos grupos de trabalho sobre temas fulcrais, como a formação dos membros do clero, o acompanhamento das vítimas e dos autores dos abusos. As conclusões deverão ser reveladas em abril deste ano. Mas os escândalos continuam a surgir.

Em novembro de 2022, pelo menos 11 bispos ou antigos bispos foram indiciados pela justiça civil francesa ou pela justiça Canónica (da Igreja), pelo envolvimento em vários casos de abuso sexual.

A informação foi tornada pública por Eric de Moulins-Beaufor, Presidente da Conferência Episcopal de França, em Lourdes, cidade do sudeste do país, onde há um dos principais centros de peregrinação católica. Entre a lista, está, por exemplo, o bispo Monsenhor Michel Santier (título eclesiástico conferido pelo Papa), já sancionado por “abuso espiritual” pelo Vaticano, em 2021.

Todos os acusados, garantiu a conferência episcopal francesa, terão de enfrentar processos judiciais ou disciplinares. Mas as suspeitas que pairam sobre a Igreja são difíceis de dissipar no imediato.

Depois do relatório sobre os abusos, há pouco mais de um ano, o jornal católico La Croix, revelou uma sondagem que mostra que dois terços dos fiéis franceses não confiam na Igreja quanto à capacidade de proteger os menores.

É por isso que Véronique Margron não tem dúvidas de que estas revelações "traíram de forma atroz a confiança" na instituição religiosa. Para a teóloga, a existência de abusos na Igreja "é particularmente grave", exatamente "porque a Igreja é o lugar da confiança." Ainda assim, as revelações têm permitido às vítimas, pelo menos, encontrarem um ambiente mais propício para conseguirem quebrar o silêncio. E “todos os dias", refere, continua a receber denúncias.


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