Livro sobre o padre alberto neto

"Era um homem singular, que tive a sorte de conhecer”, diz Peter Stilwell

24 jan, 2023 - 06:00 • Ângela Roque

Nova edição do livro com homílias e cânticos do padre Alberto Neto é apresentado esta terça-feira pelo Centro de Reflexão Cristã. Em entrevista à Renascença, Peter Stilwell, organizador dos textos, fala da capacidade mobilizadora do sacerdote que abriu portas à célebre vigília da Capela do Rato, há 50 anos. Uma “voz corajosa”, que espera seja exemplo para a Igreja de hoje, que não pode “fechar-se como se fosse um museu”, ignorando o que se passa à volta.

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Esgotado desde a primeira edição, que saiu em 1989, o livro com as homílias do padre Alberto Neto na Capela do Rato é apresentado esta terça-feira pelo Centro de Reflexão Cristã. É uma nova edição, revista e aumentada, para dar a conhecer a “vitalidade que a Igreja já teve”, diz à Renascença o padre Peter Stilwell.

Responsável pela seleção dos textos na obra original, explica que a reedição “foi pensada por causa do cinquentenário da célebre vigília na Capela do Rato, organizada por um grupo de católicos contra a guerra colonial, e que foi um dos marcos do 25 de Abril”. Mas, o que se pretende mesmo com o livro é destacar a figura do padre Alberto Neto, que não participou na vigília, mas foi quem abriu caminho a que se realizasse.

“Ele era o responsável pela comunidade. Era assistente da JEC - Juventude Estudantil Católica, e era ali a sede. E foi ele, no fundo, quem deu ânimo e levou quem estava a organizar a vigília, a pensar que aquele seria o sítio apropriado para tornar presente, em Lisboa, o apelo dos Papas: que na Vigília de Ano Novo, se fizesse uma reflexão sobre a paz. Em 72/73, a mensagem era ‘a paz é possível’. E acabou por a Capela do Rato a escolhida”.

Ordenado padre precisamente em 1973, Peter Stilwell teve no padre Alberto um exemplo inspirador. “Era um homem extremamente dinâmico e muito vivo, muito ligado à gente nova, e as pregações dele eram um espetáculo! As pessoas iam para o ouvir e ele preparava-se longa e cuidadosamente para isso, não só na Capela do Rato, como mais tarde, nos outros lugares onde foi pároco”.

Foi na Capela, que se enchia para o escutar, que começou a dar nas vistas, e “começou a ser vigiado pelas autoridades. Ele sabia que havia pessoas a tomarem nota daquilo que ele dizia, e que depois relatavam noutros lados, eventualmente fora de contexto. Por isso passou a gravar as homilias”, conta ainda o padre Peter.

Em 1987 Alberto Neto é assassinado, perto de Setúbal, num caso que nunca se esclareceu. Peter Stilwell era, então, o responsável pela Capela do Rato, e decidiu homenageá-lo editando as homílias “do período em que ele foi capelão”. Estar tudo gravado foi uma boa ajuda.

Em todos os lugares onde foi pároco, as pessoas destacam a atenção que ele tinha para com os pobres que lhe iam bater à porta

Em Portugal “o problema era o das guerras no Ultramar”, mas a questão social também preocupava muito o padre Alberto. ”Em todos os lugares onde foi pároco, as pessoas destacam a atenção que ele tinha para com os pobres que lhe iam bater à porta. A Feliciana, que era quem mantinha a capela limpa, num depoimento no livro, conta como ele chegava sempre cheio de pressa, mas se havia ali pobres para atender, parecia que o tempo parava, e ele tinha toda a disponibilidade para ouvir as pessoas”.

“Era um homem singular, e eu tive a sorte de o conhecer. Era bastante mais velho do que eu, embora tenha morrido aos 56 anos, eu agora aos 76, olho para trás e parece-me um jovem”, sublinha Peter Stilwell, que não esquece a sua capacidade de mobilização.

“Nos anos 80 organizámos um grupo, a que chamámos o Movimento de Libertação dos Padres – era o MLP, um pouco a gozar, porque tinha havido a campanha eleitoral da Maria de Lourdes Pintassilgo (eram as mesmas iniciais). E aí encontrávamos o padre Milícias, o D. Tomás da Silva Nunes, antes de ser bispo, eu próprio e o padre António Janela, éramos vários. Encontrávamo-nos uma vez por mês, discutíamos questões ligadas à vida na Igreja e ficávamos a fazer um retiro em conjunto no seminário de Almada. E aí percebia-se a riqueza da relação humana dele, a força que tinha a sua presença”.

“A Igreja não se pode fechar como se fosse um museu. Tem de iluminar o caminho”

No atual contexto de crise, a tantos níveis, Peter Stilwell diz que pode ser inspirador ler, ou reler, os textos do padre Alberto Neto, pela frontalidade e pela coragem, que hoje fazem falta na Igreja.

“Ele situava-se numa fronteira que é vital para a Igreja - anunciada e enunciada pelo Concílio Vaticano II, mas que nem sempre a Igreja, nas décadas seguintes, tem sido capaz de tratar -, que é a fronteira entre a Igreja, internamente, e o mundo e a sociedade que a rodeia. Portanto, essa fronteira que a Ação Católica foi trabalhando, o padre Alberto é um exemplo desse tipo de diálogo”.

“Percebe-se que as questões que preocupam a sociedade passam por ele, pela sua reflexão, à luz da sua fé e dos textos bíblicos, à luz da tradição da Igreja. Esse diálogo constante, difícil, crítico, é necessário para os nossos dias. Aliás, não é por acaso que o Papa Francisco lançou o processo sinodal, que tem exatamente essa mesma vertente: é retomar do Concílio esta preocupação de que o mundo avança, evolui”.

Para Peter Stilwell “a Igreja não pode fechar-se como se fosse um museu, para ser visitada como curiosidades do passado, mas tem de iluminar o caminho e as pessoas de boa vontade, que querem compreender como responder aos desafios do seu tempo e manter a coragem, quando esses caminhos parecem barrados pelos poderes do mundo, quer os económicos quer os políticos, que vão travando as mudanças que poderiam eventualmente levar a que a humanidade fosse mais família do que povos concorrentes”.

É nesse desafio da grande política que a Igreja deve envolver-se, e a Igreja Católica tem uma longa tradição de Doutrina Social, que tem princípios e propostas muito concretas sobre como responder aos desafios

Antigo reitor da Universidade de São José, em Macau, e atualmente responsável pelo Departamento de Relações Ecuménicas e Diálogo Inter-religioso do Patriarcado de Lisboa, o padre Peter lembra a responsabilidade que os cristãos em geral, clero incluído, devem ter na política.

“Não é a política partidária, mas a política num sentido nobre, que é a preocupação com a pólis, ou seja, com a cidade: a atenção aos desequilíbrios que existem em termos sociais e económicos, a atenção às pessoas que estão mais fragilizadas, fazer da cidade um lugar que seja um lugar de acolhimento e não de concorrência desenfreada”.

“É nesse desafio da grande política que a Igreja deve envolver-se, e a Igreja Católica tem uma longa tradição de Doutrina Social, que tem princípios e propostas muito concretas sobre como responder aos desafios”, sublinha.

Alberto Neto era também um poeta e um músico, e a nova edição do livro – que foi revista e aumentada – para além de testemunhos de quem com ele conviveu, inclui também cânticos do autor. “”Foi possível acrescentar os hinos que ele foi escrevendo ao longo do tempo para as Liturgias na Capela do Rato e noutros lugares”, explica o padre Peter, que ajudou os jornalistas António Marujo e Jorge Wemans (amigo do padre Alberto) a escolher o que devia entrar.

Reeditado pela Paulinas Editora, o livro também mudou de título. Na primeira edição era ‘Padre alberto, uma voz incómoda’, agora intitula-se ‘Terra da Alegria e da justiça – A voz do padre Alberto Neto’.

“Pensámos que o título anterior era mais localizado no tempo e mais genérico”, explica Peter Stilwell, que deixa um convite final à sua leitura. “Vale a pena ficar para a memória daqueles que conheceram o padre Alberto, e para os que nã o conheceram, mas gostariam de saber qual era a vitalidade da Igreja naquela altura”.

A apresentação do livro está marcada para as 18h30 desta terça-feira, na biblioteca da Igreja de São Tomás de Aquino, em Lisboa, numa iniciativa do Centro de Reflexão Cristã.

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