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Cáritas de Vila Real pode ver-se obrigada a fechar comunidade terapêutica

06 jan, 2023 - 07:12 • Olímpia Mairos

Tecnicamente, esta valência, destinada a dependentes de álcool ou drogas, já devia ter fechado porque dá prejuízo há muito tempo. As comparticipações do Estado não são atualizadas há 14 anos. “É aberrante”, lamenta a instituição que se confronta com um elevado acréscimo de pedidos de ajuda.

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Há cada vez mais pessoas a pedir ajuda à Cáritas de Vila Real e os pedidos de apoio chegam, agora, também de famílias que têm emprego, mas não têm rendimento suficiente para pagar as contas. Nos pedidos de ajuda, que vão batendo à porta, contam-se cada vez mais imigrantes, sobretudo brasileiros.

Em entrevista à Renascença, o vice-presidente da instituição, Carlos Martins, nota que a inflação está a refletir-se, e muito, na vida das famílias, o que tem feito disparar os pedidos de ajuda.

Que reflexos está a ter a inflação na vida da Cáritas de Vila Real, concretamente no que concerne aos pedidos de ajuda por parte das famílias?

A inflação já está aí há algum tempo. Não é de agora. E tem vindo a agravar-se. Há aqui vários, fatores, várias condicionantes, que levaram ao aumento dos pedidos de ajuda da Cáritas. Estamos a falar em relação ao aumento do custo de vida, com o aumento generalizado dos preços dos bens, dos produtos, e, até podemos dizer, do agravamento da situação sócio económica do país.

As nossas famílias estão mais pobres. Todas estas situações levaram a um aumento dos pedidos de ajuda à Cáritas. Contextualizando, a Cáritas acompanha, nas suas diferentes valências e projetos, cerca de 1.200 agregados familiares mensais. Isto dá sensivelmente 2.700 pessoas por mês. Verificamos, com o desenrolar deste ano, mas de forma mais acentuada no segundo semestre, que há um aumento gradual, progressivo dos pedidos de ajuda. E até de famílias que até aqui não era habitual fazerem-no. Falamos de famílias de classe média, classe média-baixa, de famílias com rendimentos, com vencimento, mas que o vencimento já não é suficiente para fazer face às despesas do agregado familiar. E isto é dramático para as famílias e é também para nós.

O que é que as pessoas pedem, concretamente?

O "top" dos pedidos é de ajuda alimentar. Muitos pedidos de ajuda para apoio a medicação e vestuário, roupas quentes. Depois temos, de forma mais pontual, mas também são apoios mais pesados, mais dispendiosos, os apoios de renda da habitação, apoio ao pagamento de faturas em atraso de água, da luz ou de gás. De um modo geral, são estes os pedidos que nos chegam.

Os pedidos aumentaram significativamente?

Neste momento, comparativamente a 2021, os pedidos quase que dobraram. E isto é preocupante. Em 2021, por exemplo, em apoios em géneros a pessoas carenciadas, despendemos cerca de 14.500 euros; em 2022, até novembro, já vamos com 23.500 mil euros. Portanto, estamos próximo dos 28, que é o dobro dos apoios que concedemos no ano anterior. Os pedidos não dobraram, mas está lá muito próximo.

A chamada classe média está a bater à vossa porta, mas, nos últimos tempos, assistimos também à chegada de muitos migrantes a esta região. Eles também batem à vossa porta?

Essa é outra situação aflitiva, porque nós temos dias em que já atendemos mais migrantes estrangeiros do que propriamente nacionais. E também se verificou um acentuar no segundo semestre do ano. No primeiro semestre, nós atendemos 93 agregados estrangeiros; no segundo semestre, em novembro, portanto, ainda falta fechar, já íamos em 141. Portanto, isto dá 234. Destes, 75% são brasileiros.

Como vos chegam essas pessoas?

Praticamente sem nada. E aquilo que nós verificamos é que eles já vêm de outras zonas do país, porque, inicialmente, passaram por cidades maiores, como Porto, Braga ou Lisboa. O custo de vida aí é muito elevado, então eles deslocaram-se para cidades do interior à procura de uma vida mais barata e vêm com a referência da Cáritas. Nas redes sociais, nos grupos que eles têm, em que eles partilham, e chegam a Vila Real com a referência de que podem contar com a ajuda da Cáritas, E mal chegam, tendo necessidades, dirigem-se à Cáritas.

Onde vai a Cáritas buscar recursos para satisfazer tantas necessidades?

Felizmente, em 2022, os nossos donativos, quer de particulares quer das comunidades cristãs das paróquias, também aumentaram. E é aí que nós, para além da resposta e das valências que temos, que são protocoladas, onde depois nós podemos servir também estes beneficiários e estes utentes. Depois, também temos estes fundos da Cáritas, proveniente dos donativos particulares das comunidades cristãs, das empresas que depois nos ajudam e permitem nos que nós ajudemos estas pessoas.

Há várias Cáritas no país que estão, por assim dizer, com a corda na garganta...

Nós passamos por dificuldades. Estamos a falar neste aumento dos pedidos de ajuda que não tem comparação, relativamente a 2021; estamos a falar no aumento dos custos de gestão da instituição: recursos humanos, energia, combustíveis e alimentação. Tudo isto sofreu um aumento brutal durante 2022. E, depois, estamos a falar da atualização em baixa das comparticipações por parte do Estado e da não atualização de algumas comparticipações.

O que está previsto no Acordo de Cooperação para o Setor Social e Solidário para 2023 é uma atualização de algumas comparticipações em 5%. Precisávamos do dobro e a não atualização. Por exemplo, a Cáritas Diocesana de Vila Real tem uma comunidade terapêutica, as comparticipações para as comunidades terapêuticas não são atualizadas desde 2008. Há 14 anos que o valor das comparticipações se mantém; o valor do dia por utente são 24 euros, que se mantêm desde 2008.

Isto é aberrante. Se fizermos uma comparação entre o ordenado mínimo de 2008 com o ordenado mínimo estipulado para 2023, em 2008 eram 426 euros e agora serão 760. Portanto, isto gera-nos aqui um sufoco muito grande. Vou fazer uma afirmação um bocado bruta, mas nós primamos por prestar um serviço digno e um serviço de qualidade, quando nós somos, nalgumas comparticipações, indignamente financiadas pelo Estado.

A Comunidade Terapêutica - Projeto Homem - pode correr o risco de fechar portas?

Nós temos vários exemplos a nível nacional e conhecimento de várias situações, de várias comunidades terapêuticas que já fecharam portas, desde o início da pandemia até agora, devido a este aumento das dificuldades. E essa possibilidade está em cima da mesa. E tecnicamente, nós já deveríamos ter fechado a valência porque ela está a dar prejuízo há muito tempo. A Cáritas, devido a esta questão dos donativos dos particulares, das paróquias e até donativos de géneros que nos chegam de empresas e também de particulares, conseguimos, até ao momento, suportar, estes encargos todos da comunidade terapêutica. Mas o que é proveniente das comparticipações não é minimamente suficiente para suportar todas as despesas.

Quantos utentes estão nesta residência destinada a dependentes de álcool ou drogas? Caso a Cáritas tenha que fechar a porta, para onde vão?

A média na nossa comunidade terapêutica são sempre 22, 23 até 25 pessoas. Se tivermos que fechar portas, eu não sei o que será destas pessoas. Terá que se encontrar comunidades próximas que tenham capacidade para as acolher, mas não será fácil, porque as dificuldades que nós passamos também são as dificuldades que passam todas as comunidades terapêuticas a nível nacional.

Além desta resposta social, há outras que correm risco?

Esta é a mais preocupante, neste momento. Há também um programa alimentar às pessoas mais carenciadas, que é protocolado com a Segurança Social, e que não é suficiente para abarcar todas as situações de carência. Aquilo que está protocolado, os números que estão protocolados não são suficientes. No último mês, nós tínhamos neste programa 237 agregados familiares, 575 pessoas, mas não é suficiente para todas as situações de carência que nos chegam. E mais uma vez, tem que ser a Cáritas, depois, com os seus próprios recursos, mais uma vez, com os donativos que nos chegam das comunidades, das pessoas, para completarmos esta ajuda que é feita pelo Estado. O Estado, se tivesse que fazer isto, gastaria muito mais dinheiro. Portanto, entregar a alguém a baixo custo é muito mais fácil.

Urge rever essas comparticipações e o mais rápido possível?

As participações, mais até da Segurança Social, foram revistas ultimamente e, portanto, para este ano já está previsto este aumento de 5% nas comparticipações e, agora, em dezembro recebemos um apoio extraordinário. Foi aquilo que foi acordado no acordo de cooperação. Não é suficiente. O padre Lino Maia dizia, no momento em que se estabeleceu o acordo, que foi o possível, não era o desejável, mas foi o possível. E tem sido sempre assim. Há vários anos que as comparticipações estão subfinanciadas e continuam subfinanciada e, depois, as instituições têm que acarretar com o resto dos custos.

E essas comparticipações são pagas a tempo e horas?

Sim, nisso não nos podemos queixar. Os protocolos que temos, neste momento, são pagos atempadamente.

Quais são as expetativas para 2023?

Nós, infelizmente, prevemos que esta aflição e que estes números continuem a aumentar. É isso que nós temos previsto. E também temos que estar preparados para darmos resposta, na medida das nossas possibilidades, a toda a gestão, às solicitações. Temos que racionar os nossos recursos, ser muito criteriosos na atribuição dos apoios sociais. Nalgumas situações gostaríamos de apoiar mais, mas também não nos é possível, porque os nossos recursos são limitados.

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