Papa no Canadá

Nas escolas que levaram Francisco ao Canadá morreram mais de 4 mil crianças. Número real "poderá nunca ser conhecido"

29 jul, 2022 - 14:30 • Joana Azevedo Viana

Até finais do século XX, 150 mil crianças indígenas passaram pelo sistema de escolas residenciais, numa operação que "pode ser descrita como genocídio cultural". Muitas nunca voltaram a casa. Em Maskwacis, Papa prometeu total cooperação nas investigações. Desde o início da "peregrinação penitencial" de Francisco, linhas de apoio à saúde mental viram número médio de chamadas duplicar.

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Foto: Ciro Fusco/EPA
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Quando aterrou no Canadá, no domingo passado, para a sua "peregrinação de penitência", o Papa levava consigo dois pares de mocassins de criança, que devolveu a Marie-Anne Day Walker-Pelletier na primeira paragem da histórica visita.

Os pequenos pares de sapatos tinham sido deixados com Francisco no Vaticano em março pela chefe da Primeira Nação Okanese, uma das tribos indígenas do Canadá, como uma espécie de recordação das milhares de crianças das tribos originais do país que foram mandadas para as escolas residenciais, um sistema de orfanato promovido pelo Governo canadiano para a “assimilação” cultural daquelas populações, entre finais do século XIX e o séc. XX. Mais de 60% destas escolas foram administradas pela Igreja Católica.

Chegado ao Canadá, em vez das habituais reuniões com as autoridades civis e diplomatas, Francisco encontrou-se com mais de dois mil sobreviventes do sistema de ensino residencial para crianças indígenas.

"Perdão", disse a escassos metros da Escola Residencial de Ermineskin, em Maskwacis, uma das maiores em território canadiano, confiada a missionários católicos desde a sua fundação em 1895.

"Peço perdão, em particular, pelas formas como tantos membros da Igreja e das comunidades religiosas cooperaram, ainda para mais através da sua indiferença, em projetos de destruição cultural e assimilação forçada promovida pelos governos de então, que culminaram neste sistema de escolas residenciais."

Durante 150 anos, até finais do século XX, passaram pelo sistema de 139 escolas residenciais cerca de 150 mil crianças removidas à força das suas famílias. Muitas nunca voltaram a casa.

Estatísticas oficiais indicam que 4.120 morreram ao cuidado do sistema, na sua maioria vítimas de doenças endémicas à data, como a tuberculose. O número real, contudo, será bem superior.

"Isto não seria tolerado em nenhum outro sistema de ensino"

Num relatório publicado em 2015, a Comissão de Reconciliação e Verdade, criada para avaliar a dimensão do que aconteceu nas escolas residenciais, concluiu que milhares de crianças indígenas "foram vítimas de abuso, físico e sexual, e morreram nas escolas em números que não seriam tolerados em qualquer outro sistema de ensino deste país".

As escolas, apurou a Comissão, foram criadas "não para educar" as crianças indígenas, "mas para, acima de tudo, cortar os laços com a sua cultura e identidade", numa operação que "pode ser descrita como "genocídio cultural".

"Reconciliação". Jovem indígena faz pedido ao Papa durante visita ao Canadá
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O real balanço de vítimas, era adiantado no relatório, "provavelmente nunca será conhecido". Já no ano passado, foram encontrados os corpos de 215 crianças em sepulturas sem inscrições num terreno em tempos ocupado pela Escola Residencial Indígena de Kamloops -- que, na década de 1950, chegou a ser a maior do Canadá, com um total de 500 alunos inscritos.

Reparações e reconciliação

No início deste ano, o Papa já tinha expressado "vergonha e pesar" pelo papel que a Igreja Católica também teve nos abusos e pela "falta de respeito" demonstrada para com a cultura indígena e os seus valores, uma ideia que voltou a repetir ao longo desta semana.

“Quero iniciar daqui, deste lugar tristemente evocativo, o que tenho em mente fazer: uma peregrinação penitencial. Chego às vossas terras nativas para vos exprimir, pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação, manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós”, declarou Francisco, perante milhares de participantes no encontro.

"O primeiro passo desta peregrinação penitencial no meio de vós é o de renovar o meu pedido de perdão e dizer, com todo o coração, que sinto pesar: peço perdão pelas formas em que muitos cristãos infelizmente apoiaram a mentalidade colonizadora das potências que oprimiram os povos indígenas."

Até hoje, o Estado canadiano já pagou às comunidades indígenas milhares de milhões de dólares em acordos de compensação com cerca de 90 mil sobreviventes do sistema de escolas residenciais. Da Igreja do Canadá, as tribos já receberam 50 milhões de dólares, através das várias dioceses e ordens religiosas, antecipando-se que venham a receber mais 30 milhões nos próximos anos.

"Peregrinação penitencial" ao Canadá. Papa reza em silêncio em cemitério indígena
"Peregrinação penitencial" ao Canadá. Papa reza em silêncio em cemitério indígena

Citada pela rádio norte-americana NPR, Carol McBride, presidente da Associação de Mulheres Nativas do Canadá, diz esperar que o pedido de desculpas do Papa marque o início de um diálogo entre a Igreja e as Primeiras Nações, que leve à divulgação dos registos do sistema de escolas residenciais e à devolução de artefactos indígenas até hoje na posse do Vaticano.

No final do encontro em Maskwacis, Francisco prometeu total cooperação da Igreja nas investigações ao que aconteceu nas escolas residenciais.

Esta sexta-feira, no último dia da sua visita, foi revelado que os Serviços Indígenas e a linha federal de apoio à saúde mental viram o número de contactos duplicar em relação à média desde a chegada de Francisco ao Canadá.

"As linhas de crise estão a receber chamadas de todos os pontos do país", revelou Kyle Fournier, porta-voz dos Serviços Indígenas, citado pelo Global News.

"Quem liga tem expressado uma série de emoções diferentes. Para alguns, a visita do Papa e o seu pedido de desculpas foram um alívio, mas para outros podem até ter funcionado como catalisador. As discussões do legado danoso das escolas residenciais são importantes e são também difíceis para muitos."

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