24 mai, 2022 - 19:30 • Ângela Roque
Pode demorar, mas não é impossível promover entre russos e ucranianos a aproximação que se conseguiu, há uns anos, entre os guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e as famílias das vítimas da violência armada.
É essa a convicção do padre Albino Brás, que coordena em Portugal as Escolas de Perdão e Reconciliação (ESPERE). O projeto dos Missionários da Consolata nasceu precisamente na Colômbia e foi fundamental para o processo de pacificação naquele país.
Em entrevista à Renascença, o padre Albino Brás admite que as atrocidades que têm sido cometidas na Ucrânia dificultam os caminhos da paz, mas lembra que “a justiça para Deus, ou em Deus, passa sempre pela misericórdia”, e recorda que a grande “novidade do cristianismo” é “amar os inimigos”.
Sobre o trabalho das ESPERE, que Portugal acolheu em 2013, espera poder retomar em breve os cursos que ensinam a perdoar, mas que a pandemia obrigou a interromper.
O perdão pode existir sem a reconciliação, a reconciliação é que não pode existir sem o perdão
Não sabemos quando vai acabar a guerra na Ucrânia, mas mesmo que tudo pare, é possível perdoar?
É possível e desejável perdoar, mas a pergunta que se coloca é mesmo essa: é possível perdoar o imperdoável? Porque olhamos para esta guerra e a impressão que temos é que é muito difícil perdoar, porque é uma guerra sem justificação - se é que existem justificações para as guerras. É uma guerra ilegítima, em que se destrói tudo, até hospitais e escolas, e se matam inocentes, uma guerra em que centenas de crianças já morreram.
A paz não é apenas a ausência da guerra. E não é o oposto da guerra, é a sua superação. E é nesse caminho que a Ucrânia se encontra, resistindo ao agressor, que é a Rússia, que não apresentou uma causa justa ou um propósito justo para esta guerra.
Talvez sejam necessários pelo menos 50 anos para que aconteça a reconciliação, porque está tudo muito fresco… é difícil perdoar, mas é desejável e é possível.
Ainda há dias o responsável pela Caritas Spes da Ucrãnia, num evento público, dizia que mesmo que haja um acordo para pôr fim aos confrontos, a guerra só acaba quando se esquecer tudo o que se viu e viveu. De facto, esta dimensão do sofrimento, que vamos acompanhando à distância, é um grande obstáculo ao perdão? É possível contrariar o sentimento de vingança?
É possível. É um processo, mas lento, por isso é que eu disse que talvez sejam necessários 50 anos para que a reconciliação aconteça. Porém o perdão pode acontecer antes - porque o perdão pode existir sem a reconciliação, a reconciliação é que não pode existir sem o perdão.
São processos de cura que levam o seu tempo. O tempo pode ajudar nessa cura, às vezes também a falta de memória, apesar de o perdão não ser a ausência de memória. O perdão precisa da memória para que a cura aconteça, para poder sarar a ferida. É uma memória que olha para um acontecimento ingrato - no caso, para uma guera absurda, insana - e que procura sarar essa ferida, para bem da própria pessoa, porque sabenos que o perdão é um favor que se faz à vítima, mais do que ao agressor e ofensor.
Mas, a reconciliação é possível?
A reconciliação é possível e desejável, pois é imprescindível para construir e manter a paz entre os diferentes atores envolvidos direta e indiretamente no conflito. Mas, a reconciliação exige pelo menos três ferramentas: o perdão, que já referi, a verdade (é a primeira vítima da guerra, mas não pode haver reconciliação sem a busca da verdade, sem um esclarecimento sobre as condições e circunstâncias em que se deu a agressão) e, finalmente, o reconhecimento do outro, do diferente ou da diferença (a reconciliação passa pela aceitação do outro, das suas diferenças, passa por suprimir a estigmatizacão do outro - por exemplo, deixar de olhar os ucranianos como nazistas ou todo o povo russo como 'putinistas').
Hoje as pessoas, talvez também por causa das tecnologias, encontram-se menos, e quando nos encontramos menos, estranhamo-nos mais
E qual é o papel das religiões na promoção da paz? Temos visto como o patriarca ortodoxo de Moscovo apoia esta ofensiva da Rússia, mas os líderes religiosos não têm responsabilidade acrescida nestes contextos, devendo ser promotores da paz e do perdão, e não instigadores da guerra?
A raíz da Igreja ortodoxa é a mesma da Igreja católica, o Deus é o mesmo. De facto, os líderes religiosos têm o dever moral, e espiritual também, de não se aliarem a políticas de guerra, ou a políticos que promovem as guerras, ainda mais uma guerra como esta, que não tem qualquer justificação. Parece que voltámos ao tempo medieval, as atrocidades que se têm cometido na Ucrânia parecem da Idade Média.
O patriarca Kirill é um aliado do regime russo, ele abençoou a guerra de Putin, o que já levou a cisões. Na Ucrânia há mais de 12 mil paróquias ligadas à Igreja ortodoxa russa, mas lembro-me de uma entrevista a um padre de Irpin, perto de Kiev, que contou que no momento em que viu Kirill abençoar os tanques e as armas de guerra pensou: ‘eu não quero que a minha paróquia continue a ter este vínculo à Igreja ortodoxa russa’; e rompeu, como a maior parte fez, com a Igreja mãe de Moscovo.
Os missionários da Consolata têm experiência de mediação de conflitos, nomeadamente na Colômbia. Foi através das Escolas de Perdão e Recociliação (ESPERE) que ajudaram a sarar as feridas de décadas de violência. Este projeto pode ajudar no caso da Ucrânia, numa fase pós-guerra?
Não apenas pode, como deve, mas teremos de ver como…
Mas, é possível?
É, porque de facto é um projeto muito bonito que tem trabalhado muito a metodologia e a prática de como se podem fazer estes processos de perdão e reconciliação, e ao longo destes anos tem dado muitos frutos, sobretudo em países de conflito, a começar pela Colômbia, onde surgiram as ESPERE...
Onde conseguiram que muitas vítimas dos guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) perdoassem aos agressores, e estes assumissem a sua culpa e participassem no processo de reconciliação...
E se ‘empoderassem’, porque eles mesmo passaram a ser mediadores. Participei num encontro internacional da rede das Escolas, onde estavam agressores e vítimas das FARC. Estavam os paramilitares e uma senhora a quem eles tinham matado um filho, e no final do encontro esta senhora e o agressor estavam sentados à mesma mesa. Tinham-se aproximado através do projeto e das experiências de encontro e de espiritualidade - e aqui falamos do perdão não apenas como elemento de espiritualidade cristã, mas como elemento de espiritualidade humana, transversal a todas as religiões. Lembro-me que no final deram um abraço prolongado, e algumas lágrimas caíram. Percebeu-se que aquilo foi sincero, os dois reencontraram-se no perdão, como processo de reconciliação.
Em Portugal, que está a acolher mihares de refugiados ucranianos, é uma possibilidade que possam vir a ser chamados para ajudar quem foge da guerra e traz estas feridas da alma?
Curiosamente o último curso que fizemos cá antes da pandemia – tivemos de interromper porque a metodologia dos cursos é necessariamente presencial - foi para voluntários do JRS, o Serviço Jesuíta aos Refugiados, para os ajudar a trabalhar esta dimensão. Porque há tantas feridas abertas, às vezes rancores e ressentimentos entre quem teve de fugir de guerras, de tantas situações adversas, de tanto ódio, e isto ajudou-os.
Nós hoje, na Consolata, estamos a acolher mais de 40 refugiados, mais de 30 no norte.
Ucranianos?
Antes dos ucranianos já tínhamos acolhido 27 refugiados em Águas Santas, num antigo seminário nosso, que vieram de campos de refugiados em Lesbos, oriundos sobretudo do norte de África. Agora temos ucranianos também, cerca de 20 no norte e 21 em Fátima.
Portanto, será natural que estas questões se coloquem e que trabalhem esta dimensão com eles?
Sim, claro.
O perdão é a chave que permite romper e quebrar os círculos viciosos de violência
O projeto das Escolas de Perdão de Reconciliação chegou a Portugal há alguns anos. Quanto cursos é que já fizeram, e quem era o vosso público alvo?
Era diferenciado. Fizemos oito ou nove cursos, uns quatros em âmbito paroquial, a pedido de paróquias - como a paróquia de Santo António da Charneca, a de Palhais ou a de Algueirão. Fizemos outros, diria de 'clínica geral', nos nossos espaços. Anunciámos os cursos e apareceram desde jovens a pessoas mais adultas, incluindo muçulmanos. Foi muito interessante.
Chegámos a ter um projeto para trabalhar em contexto prisional, que depois, com a morte do padre João Gonçalves (antigo coordenador nacional das capelanias prisionais) foi interrompido. Mas estamos a trabalhar essa metodologia e temos a esperança de retomar esse trabalho.
As ESPERE estão em quantos países neste momento?
Cerca de 20, sobretudo da América Latina. Na Europa começámos por Portugal, estamos também em Itália, e Espanha já pediu para iniciar lá.
E por cá, quando é que vão retomar os cursos?
Vamos ver se ainda dá para fazer algum antes do verão. Se não der, faremos seguramente depois das férias, em setembro. Porque o contexto em que estamos também exige que se retome o projeto.
Os últimos anos têm sido marcados pela ameaça terrorista, por diversos conflitos regionais e pelo crescimento da extrema direita - e do que a ela se associa, como o racismo e a xenofobia. Não se devia apostar mais na educação para a paz?
Claramente. Esta guerra na Ucrânia prova que ainda andamos a alimentar muito ressentimentos e rancores. Parece que foi uma barragem de ódio e ressentimento que se rompeu e se espalhou de uma forma insana, absurda.
Temos de trabalhar muito isso, porque ainda por cima hoje as pessoas, talvez também por causa das tecnologias, encontram-se menos, e quando nos encontramos menos, estranhamo-nos mais. Ultimamente tenho pensado muito nisto. Hoje achamos que por termos as redes sociais isso já é contacto, mas não é encontro. O encontro fisico é muito importante. Vejo pela aldeia onde nasci, já não há lojas de bairro, quase não se vê ninguém na rua, as pessoas passam meses e anos sem se verem. Quando se voltam a ver, parece que há uma desconfiança básica. É muito importante voltar a promover o encontro.
As restrições da pandemia foram negativas, nesse sentido?
Sim, favoreceram o afastamento e o isolamento. O Papa fala muito desta questão do encontro, dentro da própria Igreja, que ele diz que deve sair da sacristia e ir para a rua. A Igreja tem um papel fundamental nisto. É certo que os padres hoje em dia - mas, a Igreja não são só os padres - têm menos tempo para falar e conversar, saem de uma missa a correr para outra, que fica a não sei quantos quilómetros, têm muitas paróquias. Mas, a Igreja tem o dever de trabalhar isto, porque isto é que é ser Igreja, é favorecer o encontro, a comunidade, a comunhão, a relação, o estar e trabalhar em rede.
O nosso caminho é o da fraternidade, porque quanto mais nos estranhamos, mais começamos a odiar-nos. Esse passo não é direto, mas é o que leva à desconfiança, e a tudo o resto. E a grande novidade do cristianismo não é sequer amar os amigos, é amar o inimigo.
Amar e perdoar.
E perdoar. É a grande novidade do cristianismo.
“Os ucranianos protegeram a Europa da maior ameaça(...)
Portanto, a Igreja tem uma responsabilidade muito grande na transmissão destes valores?
Uma responsabilidade enorme. E volto ao exemplo da minha aldeia natal, no concelho de Alvaiázere, que tem pouco mais de 100 habitantes, e onde já não há missa dominical, passou-se para o sábado, e só de 15 em 15 dias. Percebi que se perdeu tecido social com isto, porque ao não haver já lojas de bairro, nem sequer café, e agora quase não há missa, perdeu-se tecido social.
Há muitas pessoas idosas que vivem uma solidão tremenda, nas suas casas. A Igreja tem um papel muito importante como espaço que convoca para a reunião.
E no transmitir do valor do perdão, estará a fazer o seu papel? Porque a imagem que ainda se passa muitas vezes ainda é a do Deus castigador. Até nas redes sociais o discurso dos cristãos, e entre cristãos, é muitas vezes de condenação do outro, de não tolerância nem perdão.
O perdão hoje, infelizmente, ainda está muito refém do Sacramento da Reconciliação, e a Igreja precisa de o tirar para a pastoral, não o deixar apenas no Sacramento, ser uma coisa quase mecânica e ritualizada. A Igreja tem de ajudar a fazer esse processo, mostrar que o perdão é, de facto, um dom que abre para a relação baseada no amor e na fraternidade, que abre janelas para o futuro. Não é só em situações de guerra, é nas situações dos nossos conflitos quotidianos.
O perdão é a chave que permite romper e quebrar os círculos viciosos de violência. Se não fôr através do perdão, não saímos daí. E o perdão como elemento de espiritualidade humana, não apenas cristã.
Um dos objetivos do fundador das ESPERE, o padre Leonel Narvaez - que tive oportunidade de entrevistar há uns anos - era conseguir que o perdão fosse reconhecido como "direito humano". Ainda estamos muito longe disso?
Estamos ainda longe disso, mas temos de trabalhar por isso.
Não podemos alimentar o ódio, temos de procurar a paz, mas é um caminho difícil. A paz pede justiça, mas - é sempre bom repeti-lo - a justiça para Deus, ou em Deus, passa sempre pela misericórdia. Não é apenas a justiça punitiva, das prisões, é uma justiça que passa sempre pela misericórdia. É nessa justiça em que eu acredito e pela qual me bato.