Entrevista a Peter Stilwell

Guerra na Ucrânia. "O que se está a semear em termos de memória e feridas será difícil contabilizar"

26 mar, 2022 - 08:30 • Ana Catarina André

"Quem está na frente da batalha dispara? O que faz ao adversário que ficou ferido? Trata-o como um trapo? Há muito de humanidade que se joga nessa experiência", considera o padre Peter Stilwell, que sublinha o papel que as diferentes religiões podem ter no acompanhamento das vítimas, permitindo também que “as feridas não se transmitam às gerações futuras”.

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O Papa Francisco só se deslocará a Kiev, capital da Ucrânia, se tiver “alguma convicção” de que isso levará a um cessar-fogo, afirma o padre Peter Stilwell, diretor do Departamento das Relações Ecuménicas e do Diálogo Inter-Religioso no Patriarcado de Lisboa.

Em entrevista à Renascença, o antigo reitor da Universidade de São José, em Macau, a única católica na China continental, sublinha que, do lado do invasor russo, “há gente que está a fazer aquilo por razões que nos escapam” e lembra que “há milhares de jovens que não têm mais do que 18 a 25 anos, que estão na frente de batalha” a fazer a experiência de matar e arriscar a própria morte.

A guerra na Ucrânia começou faz há um mês. O Papa Francisco tem apelado inúmeras vezes à paz. Que papel pode a Igreja ter no conflito?

Em conflitos passados, a Santa Sé procurou manter-se um pouco distanciada da polémica em torno da guerra. Para conseguir mediar entre as partes, precisa que nenhuma das partes a sinta como estando do lado oposto. Este conflito é particularmente difícil desse ponto de vista, na medida em que houve claramente uma agressão.

O Papa nunca mencionou o nome de Putin, nem mencionou quem era o agressor, mas tem condenado as mortes e o massacre que se está a viver e tem apelado a que se deixe a solução das armas e se procure a solução das negociações.

Acontece que o mundo russo é predominantemente ortodoxo e, portanto, do lado russo, a ligação da Santa Sé com a Igreja Ortodoxa Russa é ténue. Há vários anos que o Papa tem procurado estabelecer pontes com essa Igreja Ortodoxa, esse Patriarcado. Mas o Patriarca Kirill encontrou-se com ele em Cuba. Foi uma lança em África, por assim dizer. Os papas anteriores não tinham conseguido chegar a esse ponto.

Esta relação ténue com a Igreja Ortodoxa pode inviabilizar de alguma maneira um papel mais preponderante na mediação do conflito?

A Santa Sé tem uma rede diplomática e uma série de redes de contacto na Rússia, na Ucrânia, e noutros países vizinhos, que lhe permite fazer circular informação. Mas é difícil saber exatamente o que é que a Santa Sé pode ou não pode fazer.

Acredita que o Papa Francisco possa ir a Kiev?

Kiev pediu, mas com o Papa Francisco é sempre imprevisível. Duvido que as pessoas em torno do Papa quisessem que corresse esse risco. Teria que ter alguma convicção de que isso teria repercussão, que do lado russo haveria, pelo menos, um cessar-fogo. Caso contrário, as coisas poderiam escalar. O Papa representa mil milhões de cristãos – é muita gente e muita opinião pública a nível mundial. Se fosse abatido no meio de um conflito, seria uma coisa que poderia provocar mais estragos do que a presença dele podia resolver.

Quem está na frente da batalha dispara? O que faz ao adversário que ficou ferido? Trata-o simplesmente como um trapo? Há muito de humanidade que se joga nessa experiência.

O Papa Francisco diz que “qualquer guerra é uma derrota da humanidade”. Em que é que falhámos?

A guerra é sempre um horror. Aparece como um dos quatro cavaleiros do Apocalipse. Desde tempos imemoriais, desde Caim e Abel, na tradição bíblica, que há esta zona obscura da nossa humanidade. Somos capazes de cegar em relação ao próximo, de não reconhecer nele ou nela um irmão ou irmã. Somos capazes da violência. E esse horror por que desperta?

As pessoas organizam-se em sociedade por várias motivações e criam identidades à volta de ideias, ideologias, bandeiras, que são coisas abstratas. Por vezes, mobilizamos essas identidades para fins que perderam de vista a pessoa em concreto. Por exemplo, Putin neste momento parece sonhar com uma grande Rússia e com isso perde de vista as pessoas.

Mas se virmos, se tivermos olhos para ver, vemos que no meio deste conflito há este enorme movimento de solidariedade, uma coisa impressionante, por exemplo, na Polónia, que acolheu grande parte destes refugiados. [Recentemente], o presidente polaco dizia numa entrevista à BBC: "Acolhemos um milhão e quinhentos mil refugiados e ainda não abrimos um campo de refugiados". Os polacos abriram as suas casas a esta gente.


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Esta resposta das sociedades europeias, nomeadamente da Polónia e também de Portugal, onde houve um movimento grande de acolhimento, evidencia que, ao contrário daquilo que se podia pensar, os valores cristãos continuam enraizados nas nossas sociedades europeias?

Julgo que sim. São valores profundos e importantes pelos quais vale a pena bater-se no bom sentido, de os atualizar e de os pôr em prática. É preciso também ver outras coisas: na Bielorrússia, os trabalhadores do caminho-de-ferro vandalizaram o caminho-de-ferro para que os russos não pudessem passar para a Ucrânia.

São pequenos gestos, uma solidariedade de outro tipo. Quem está na frente da batalha dispara? O que faz ao adversário que ficou ferido? Trata-o simplesmente como um trapo? Há muito de humanidade que se joga nessa experiência. Olhando para o que se passou nos Estados Unidos e nos países que tiveram guerras prolongadas no Afeganistão, no Iraque, etc., e para as pessoas que andaram na frente e regressaram depois para a sociedade civil, vemos a dificuldade de muitas voltarem a integrar-se. Matar fere profundamente a consciência pessoal.

Está nos 10 Mandamentos, mas está inscrito em nós primeiro. Viver essa dureza de coração de matar ou arriscar deixar-se matar toca muito profundamente o ser humano. E é preciso lembrar que há milhares de jovens que não têm mais do que 18 a 25 anos, que estão na frente de batalha a fazer essa experiência. O que é que isso representa em termos de futuro para as suas vidas, para as suas famílias, para as suas terras? Há o mal que se perpetua.

Muitas pessoas não têm possibilidades de deixar o seu coração mover-se, porque a história que lhes é dada é uma história falsa.

Como é que se lida com o sofrimento?

O sofrimento pode ser um momento de redenção, um momento de refazer a sua própria identidade e a sua relação com os outros, ou pode ser um momento de destruição interior em que a pessoa depois não é capaz de voltar a estabelecer relações com os outros. Estas feridas são profundas. Se olharmos um pouco para trás, vimos a Jugoslávia, que durante uns tempos era um país aqui na Europa e se desfez. E isso porquê? Porque havia ali feridas de lutas, algumas com centenas de anos. Tirando a tampa do regime do Tito, saltaram à superfície essas feridas e essas violências.

Aconteceu o mesmo no Ruanda e no Burundi. Pessoas que frequentavam as mesmas igrejas, de repente, porque se acendeu um rastilho, mataram-se umas às outras, porque uma pertencia a uma tribo e outra pertencia a outra tribo. O que se está a semear em termos de memória e feridas será difícil contabilizar. Seria bom que a Igreja [Católica] e as outras religiões possam ajudar as pessoas a situarem dentro de si e na sua relação com os outros o que é que é essa experiência de sofrer violência ou de praticar violência, de maneira que as feridas não se transmitam às gerações futuras. Isso é um trabalho imenso a fazer.

Que impacto tem a guerra na vivência da espiritualidade, na relação de cada um com Deus, tanto para quem a experiência no terreno?

Quando rezo pelas vítimas e me lembro do que o Senhor nos deixa nos Evangelhos – "Amai os vossos inimigos", "Fazei bem àqueles que vos perseguem" –, isso leva-me a saltar da reação espontânea de me colocar do lado das vítimas e a desejar o mal do outro lado, tomando consciência de que, do outro lado, há gente que está a fazer aquilo por razões que nos escapam e que está a violar a sua própria dignidade humana. Se há oração a fazer, também há oração a fazer por eles, para que ganhem consciência do que está a acontecer.

Há um outro problema que ainda não abordamos: a questão da mentira. Na guerra, a verdade vai porta fora. Muitas pessoas não têm possibilidades de deixar o seu coração mover-se, porque a história que lhes é dada é uma história falsa. Isso é terrível. Até há quem diga que Putin vive numa bolha e que as pessoas só lhe dão a informação que acham que ele quer ouvir, porque têm medo que reaja duramente, que os despeça ou que tome decisões mais drásticas e violentas. O que se passa na cabeça dessas pessoas, nas decisões que estão a tomar? Voltamos à questão da espiritualidade, pedindo ao Senhor que lhes abra os olhos e os ajude a ver aquilo que está a acontecer por causa das suas decisões.

As pessoas deixam-se tocar por esta invocação da Senhora de Fátima, que apareceu aos pastorinhos num tempo de guerra, falando-lhes da possibilidade da paz.

Esta atitude de se pôr no lugar do outro pode ser menos compreendida pelos mais jovens que não viveram uma guerra e têm mais dificuldade em perceber o que é que se está a passar e, no fundo, a entender verdadeiramente o que está a acontecer?

A guerra é uma bola de neve. Como se costuma dizer, os planos de guerra vão janela fora, depois de se disparar o primeiro tiro. No início da guerra, as coisas parecem claras. Depois, uma pessoa é ferida porque a sua família foi afetada, outra porque viu qualquer coisa na televisão. E gradualmente vai crescendo em termos de motivações. O desafio complicado é desmontar esse novelo, que mais tarde ou mais cedo vai ter que ser desmontado. Mesmo deixando a terra quase arrasada, a vida não pode ser uma guerra permanente.

Como é que se desmonta esse novelo?

Julgo que a dimensão da espiritualidade é fundamental, a atitude de conversão, de mudança de vida. Às vezes, tem de ser o povo ou um grupo de pessoas a ver que é preciso uma mudança e que quem lidera eventualmente já não está em condições de liderar. O poder é muito subtil e complexo. Como é que surge? Como é que se exerce? Porque é que de repente se esvai? Uma pessoa parecia tão poderosa e de repente descobre que não tem nada.

É essa questão-chave?

A questão do poder, a da verdade. Mas qual verdade? A verdade das pessoas que sofrem. É para aí que o Evangelho nos aponta. A verdade humana começa com as crianças, com os indefesos, com os mais pequenos. Isso é que é a verdade deste conflito. Estas pessoas estão a ser mortas. Há inocentes a sofrer.

A imagem de Nossa Senhora de Fátima foi recentemente para a Ucrânia. Como é que olha para esta ida e o impacto que está a ter?

As pessoas deixam-se tocar por esta invocação da Senhora de Fátima, que apareceu aos pastorinhos num tempo de guerra, falando-lhes da possibilidade da paz. Para [haver] paz, era preciso oração, conversão e penitência. É essa a dinâmica: querer o bem mesmo das pessoas que estão a praticar o mal. O desafio é rezar, e rezar, para quem crê, é uma força importante para o próprio e para a comunidade. Quem não crê pode ver, pelo menos, que isso é um trabalho que se faz com insistência e persistência no coração, para que o coração esteja aberto a novas soluções que integrem os outros e os reconheçam como irmãos.

É difícil dissociar na cabeça dos dirigentes políticos aquilo que acontece na Europa Ocidental, [no que diz respeito à] separação Igreja / Estado.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana separou-se da Igreja Ortodoxa Russa em 2019, na sequência da anexação da Crimeia e da crise que se viveu ali. Esta cisão entre as duas igrejas foi uma antevisão do conflito?

Sim. A Igreja Ortodoxa Russa entende-se como sucedânea do Patriarcado de Constantinopla que, por sua vez, era o que restava do velho Império Bizantino, o Império Romano do Oriente. O Império Romano do Oriente olhava para o Oriente e via-se como bastião da defesa da cristandade frente aos povos islâmicos, aos tártaros, etc., que vinham do Oriente. Quando o Império Otomano controlou toda aquela zona da Turquia e finalmente tomou Constantinopla, a Rússia assumiu-se como sucedâneo disso, e, portanto, os reis da Rússia assumiram o título de czares e os bispos de Moscovo ou arcebispos de Moscovo assumiram o título de patriarca. Entendiam-se como controlando os povos do centro da Europa para leste. A ligação da Igreja e do poder político, do trono e do altar, era muito profunda. É difícil dissociar na cabeça dos dirigentes políticos aquilo que acontece na Europa Ocidental, [no que diz respeito à] separação Igreja / Estado.

Nem no tempo do comunismo.

No tempo do comunismo, Estaline, a certa altura, para fortalecer a sua relação com o povo, acabou por trazer de volta a Igreja Ortodoxa Russa. A Igreja Ortodoxa Russa, mesmo no tempo do comunismo, esteve associada ao poder. Portanto, a Ucrânia era abrangida esta grande capa, por assim dizer, do mundo ortodoxo. A parte ocidental mais influenciada pela Polónia, acabou por unir-se a Roma, mantendo o rito oriental. É a chamada Igreja Greco-Católica ucraniana. A outra Igreja Ortodoxa, mais na zona leste, acabou por se dividir entre grupos ligados à identidade nacional ucraniana e grupos próximos do Patriarcado de Moscovo. Mais recentemente, a Igreja Ortodoxa Ucraniana, mais unida a Constantinopla, e a Igreja Ortodoxa Ucraniana ligada à Rússia, acabaram por se dissociar do Patriarcado de Moscovo, precisamente por causa desta atitude agressiva que era assumida quer por Putin, quer pelo Patriarca Kirill, que lhe dava apoio religioso.

E se por um lado a Igreja Ortodoxa Russa está próxima de Putin, por outro lado, na própria Ucrânia, o conflito está a unir os diferentes líderes religiosos. Que papel pode ter o diálogo ecuménico e inter-religioso na resolução do conflito?

Ainda há dias, vi um documentário sobre as grandes manifestações que houve em Kiev contra o regime que estava muito encostado a Moscovo. E nessas manifestações, o que ouvi e o que me surpreendeu, foi ver celebrações ou momentos em que os líderes religiosos ortodoxos, muçulmano, católico, etc. se juntaram para apoiar este movimento, que era um movimento não-violento, às vezes tratado com grande violência pela polícia.

Em Portugal vive-se uma relação privilegiada de entendimento entre as várias confissões religiosas.

Esta guerra não tem entre as suas principais motivações questões religiosas.

Para mim, é claro que não são motivações religiosas. Isso não quero dizer que não se manipule as religiões ou a religião. Sinto que isso acontece mais do lado russo. Como sempre, quando os políticos precisam do reforço do seu poder, a religião é vista como um aliado importante. Não é por acaso que o presidente da Ucrânia utiliza a farda da tropa ucraniana e usa uma cruz ao peito. A religião é importante para animar as pessoas em tempos de conflito, ajudá-las a digerir o que é isso da violência e eventualmente superar essas violências e encontrar outros patamares de resolução do conflito, como vimos com Gandhi, como vimos com Luther King, etc. Temos tantos exemplos em que a religião ajudou a superar os confrontos radicais e a criar plataformas em que era possível haver um encontro entre as partes. Mas também temos, ao longo da história, muitos exemplos, de religião a servir para transformar os outros em demónios ou aqueles com quem não se pode falar.

Falando agora sobre o trabalho que desenvolve no Patriarcado de Lisboa, no âmbito das relações ecuménica e também do diálogo inter-religioso, como é que olha para a relação entre as diferentes comunidades e religiões em Portugal?

Digo isto baseado não só na minha observação, mas naquilo que é o feedback que as próprias comunidades e outras comunidades religiosas que não a católica me dão: em Portugal vive-se uma relação privilegiada de entendimento entre as várias confissões religiosas. Não é por acaso que, ainda recentemente, soube que o Kaiciid [Centro Internacional Rei Abdullah Bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural], que é uma organização fundada pela Arábia Saudita com apoios de vários governos, transferiu agora a sua sede de Viena de Áustria para Lisboa. Este movimento ou associação forma líderes para o diálogo inter-religioso nos seus países e tem como observador a Santa Sé.

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