Reportagem

Judeus em Belmonte: “Hoje, há mais gente da nossa comunidade em Israel que aqui”

14 fev, 2022 - 07:30 • Fábio Monteiro

Na última década, a Comunidade Judaica de Belmonte diminuiu de forma significativa. De 140 para 45 pessoas. Jovens emigram para Israel e as famílias seguem. Na vila, faltam oportunidades. Lei da nacionalidade dos judeus sefarditas que nos últimos sete anos concedeu cidadania portuguesa a quase 60 mil descendentes não tem impacto na comunidade beirã.

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Sexta-feira, dez da manhã. Em frente à porta principal da sinagoga Beit Eliahu (casa de Elias), situada na rua da Fonte Rosa, três homens conversam. Todos usam quipá.

Um deles é João Diogo, vice-presidente da Comunidade Judaica de Belmonte. Nas mãos, segura as chaves do templo inaugurado em 1996. Ia abri-lo, no momento em que se cruzou com Elias Salas, antigo rabino da sinagoga, e com um ajudante. Os dois homens estão de passagem por terras beirãs, mas, ao despedirem-se, prometem voltar mais tarde. Afinal, o sabat, dia sagrado de descanso no judaísmo, “começa ao entardecer”.

Ainda há pouco mais de três décadas, um episódio trivial como este seria impossível de presenciar em Belmonte. Oficialmente, a comunidade judaica da vila só foi reconhecida por Israel em 1989. Em Portugal, existem mais duas: uma no Porto e outra em Lisboa. Mas as suas raízes em Belmonte são as mais profundas: datam já do século XII.

Quando em 1446, D. Manuel I expulsou os judeus de Portugal, milhares foram obrigados a optar entre o desterro e a conversão - ou serem perseguidos pela Inquisição. Em Belmonte, contudo, a larga maioria dos judeus não arredou pé. Durante quase cinco séculos – com alguma ajuda da população local -, preservaram e continuaram com as suas práticas religiosas em segredo. E até há muito pouco tempo permaneceram assim.

João Diogo abre a porta da sinagoga; uma das alas está em obras, ouve-se um martelar constante. Reformado desde 2010, o homem de 71 anos está habituado a fazer de cicerone: já recebeu, por exemplo, Dom Ximenes Belo, “uma pessoa bastante humana”, ou o Cardeal António Marto, acompanhado por um grupo de 50 párocos. Antes da pandemia, acolhia quatro ou cinco grupos por dia, incluindo visitas de estudo com crianças pejadas de perguntas sobre a história da comunidade.

Para o homem nascido e criado na vila, não é uma narrativa distante. Durante mais de metade da sua vida, viveu ainda como criptojudeu – aqueles que praticam o judaísmo em segredo - em Belmonte. Não podia dizer a ninguém, nem comentar com amigos da escola. Mas sempre se reconheceu como tal: “Nós ainda estamos no ventre da nossa mãe e já estamos mentalizados no sentido de sermos judeus.”

O que não pode ser dito

Para quem nasceu, cresceu ou estudou em Belmonte, a presença de judeus na localidade é o que se pode chamar de um segredo mal guardado. Isto, mesmo antes do reconhecimento internacional. Piadas e comentários menos simpáticos pela altura da Páscoa à parte, “existiu sempre uma convivência muito boa. Não nos podemos queixar de antissemitismos, nem pouco nem mais ou menos”, garante o vice-presidente da comunidade.

Joaquim Costa, de 59 anos, é um pouco mais novo que João Diogo. Em criança, o presidente da empresa municipal responsável pela gestão dos museus de Belmonte recorda-se de ver candeias nas janelas das casas de amigos. “Perguntávamos o porquê, mas eles não diziam nada.” Lembra ainda como era normal, “a partir do momento em que nascia a primeira estrela, à sexta-feira, alguns miúdos serem chamados para casa”.

Elisabete Manteigueiro, 43 anos, e Hugo Nabais, 39 anos, guardam memórias semelhantes. Ambos os funcionários no Museu Judaico de Belmonte – inaugurado em 2005 e único no país - tiveram colegas que sabiam ser judeus, que não comiam carne de porco e que, em algumas ocasiões, jejuavam. Mas nada disso era extraordinário. “Só tivemos consciência da importância da comunidade depois de virmos para aqui trabalhar”, repetem os dois.

Conforme atesta a exposição do museu, o judaísmo sobreviveu em Belmonte por via da oralidade: as mulheres assumiram o papel de memorizar as orações e legá-las às gerações seguintes. Porém, do hebraico do século XV pouco restou, “houve tradições que foram perdidas, como a alimentação kosher” (entretanto recuperada), explica Elizabete. De modo a preservar a religião, os descendentes de famílias judias foram-se casando entre si.

Numa vitrine que facilmente poderia passar despercebida, a guia do museu destaca uma pequena caixa de madeira: uma mezzuzza de bolso, uma prova da resiliência da comunidade. Por tradição, do lado direito da porta de casa de judeus é normal encontrar mezzuzzas; no seu interior, guardam a oração Shemá Israel. Ao entrarem, os praticantes do judaísmo costumam tocar na mezzuzza com os dedos e levá-los aos lábios. “É uma forma de relembrar os princípios do judaísmo e também pedir uma bênção”, explica Elisabete.

Ora, durante o período da Inquisição, ter uma mezzuzza à porta de casa era garantia de chamar à atenção. Os judeus de Belmonte foram obrigados, então, a ser criativos, para continuarem “em segredo”. A versão de bolso é um exemplo.

A comunidade viveu na sombra desde a expulsão decretada por D. Manuel até que, no início do século XX, o engenheiro Samuel Schwarz, também ele judeu, passou por Belmonte. Em 1914, o polaco chegou a Portugal para trabalhar nas minas de volfrâmio e estanho beirãs, tendo-se apercebido que existia ali uma comunidade nitidamente judaica - apesar de alguns hábitos religiosos serem diferentes.

A custo, o engenheiro ganhou a confiança da comunidade. Mais tarde, partilhou a boa nova. Em 1925, Schwarz publicou o livro “Os cristãos-novos em Portugal no século XX” e colocou os criptojudeus de Belmonte no radar da comunidade internacional, nota Elisabete Manteigueiro.

A guia fala com óbvio fascínio e respeito. Quando diz que “ainda hoje é possível conversar com pessoas que viveram o período do criptojudaísmo”, nota-se que é um tema que a entusiasma. Contudo, deixa um alerta: de ano para ano, a comunidade está a encolher.

Uma comunidade a minguar

Escondida num recanto esconso de Portugal, a Comunidade Judaica de Belmonte está – como qualquer grupo no século XXI – “à distância de um clique” do resto do mundo. “Não nos sentimos isolados”, garante João Diogo. Todavia, é inegável que o número de judeus está a minguar na vila; de momento, são cerca de 45. Há uma década, eram 140.

Desde 2010, muitos dos mais jovens começaram a emigrar para Israel. E, depois, seguiram-se-lhes, os pais e avós. Partem de Belmonte para “regressar às suas origens”, mas também em busca de uma “perspetiva de futuro”. Ou seja, trabalho. “O poder local não se esforça por criar condições para que os jovens se fixem aqui. E a comunidade vai ficando cada vez mais pequena”, aponta.

Moisés Mourão, 59 anos, partilha das mesmas queixas. Encontramos o proprietário da Casa da Judiaria de Belmonte, sentado numa cadeira de plástico, no fundo da loja; atrás de si há prateleiras com menorás e chanukiás.

Dos três filhos de Moisés, dois vivem em Israel, o que o deixa orgulhoso e, ao mesmo tempo, triste. Triste porque em Belmonte “não há grandes empregos”; um dos filhos tirou o curso de cozinheiro no Fundão. De nada adiantou correr todos os restaurantes da região à procura de quem lhe desse trabalho. Acabou por emigrar e ao final de oito dias tinha um emprego em Israel.

Na medida em que um pai consegue, Moisés incentivou os filhos a casar com pessoas “de sangues diferentes”, isto é, de fora de Belmonte. Durante quase cinco séculos, para a comunidade sobreviver (e manter-se em segredo), houve vários casos de casamentos dentro da família. Os pais de Moisés, por exemplo, eram primos direitos. E o comerciante é também primo segundo da sua esposa. “Para que isso não acontecesse com os meus filhos, tentei que fossem para Israel e casassem lá”, explica.

A única filha de Moisés casou em Israel e regressou a Belmonte. Mas o pai não tem argumentos para incentivar os seus dois outros filhos a regressar. Não há casas para arrendar na vila – “a rende mínima é quase de 500 euros” e o trabalho escasseia. O futuro está lá fora. “Hoje, há mais gente de Belmonte em Israel que aqui”, resume.

Uma emoção ancestral

Jayme Fucs Barr é uma das poucas exceções à regra. Nascido no Brasil, descendente de polacos e portugueses (vindos de Foz Côa e Vila Flor), o empresário turístico de 64 anos é dos poucos judeus que entrou, nos últimos anos, para a comunidade de Belmonte.

Em 2016, Fucs veio a Portugal em busca das raízes da avó Cecília, que o criou e que tinha hábitos de criptojudia. “Na casa dela tinha uns costumes muito estranhos, que só depois passei a compreender. Ia à missa, mas à sexta-feira tinha um altar dela, pegava numa candeia, acendia e fazia umas rezas. Sempre que lhe perguntava o que era, respondia que era uma herança da nossa família, coisas dos antigos”, recorda.

Através das redes sociais, o empresário encontrou uns primos portugueses. Veio então ao país para conversar com eles, trocar fotografias. E, conhecendo a história de Belmonte, decidiu visitar a vila.

Enquanto cirandava pelas ruas, encontrou uma casa em escombros, com a marca de uma antiga mezzuzza no umbral da porta. “Deu-me uma emoção tão grande ter descoberto aquilo. Algo espiritualmente levou-me”, conta. O empresário olhou para cima e viu uma placa em que se lia: “vende-se”. Ligou logo ao agente imobiliário e perguntou quanto custava. “Comprei aquela marca por 22 mil euros, isso é o que me levou a Belmonte”, relata, entre risos.

Desde 2018, Jayme passou a ter poiso em Belmonte; neste momento, tem já várias casas recuperadas e disponíveis para aluguer na vila, todas batizadas com nomes de vítimas da Inquisição. E mais: organiza excursões de Israel para Portugal. (Sem surpresas, por causa da pandemia, a procura caiu.)

Belmonte é um caso singular no mundo, garante Jayme Fucs. O judeu, que tem familiares vítimas do Holocausto, emociona-se – fica de voz embargada – só de contar uma peripécia que ocorreu na vila, durante o período da Segunda Guerra Mundial. Alguns oficiais nazis passaram pela localidade e procuraram “mapear judeus”. “Mal as pessoas da aldeia perceberam qual era a intenção, expulsaram-nos à paulada”, conta.

O bilionário russo e a lei

Por via da lei da Nacionalidade, entre 1 de março de 2015 e 31 de dezembro de 2021, Portugal concedeu a cidadania portuguesa a 56.685 descendentes de judeus sefarditas expulsos da Península Ibérica no século XV, segundo dados do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) e do Ministério da Justiça. Ao todo, no mesmo período, deram entrada nos serviços do IRN 137.087 pedidos: apenas 300 foram indeferidos e 80.102 pedidos estão ainda pendentes.

A correção histórica, em todo o caso, não se reflete na comunidade beirã. Não são precisos os dedos de uma mão para contar os judeus que, nos últimos anos, se mudaram para a vila.

Jayme Fucs está no processo de pedir residência em Portugal, devido aos negócios que tem, mas não submeteu nenhum pedido de nacionalidade; já tem a brasileira e a israelita e não pode acumular mais nenhuma.

Para o empresário, a lei de reparação é “maravilhosa”, mas não foi “muito bem pensada”. “De certa forma, está a ser usada para distribuir passaportes portugueses. Em Israel, virou um grande comércio. Tem firmas enormes a fazer propaganda em tudo o que é sítio”, conta.

A contestação à lei tem vindo a aumentar, em Portugal, nos últimos meses. Para isso contribuiu a notícia que Roman Abramovich, bilionário russo dono do Chelsea e figura próxima de Vladimir Putin, conseguiu, por via desse mecanismo, a nacionalidade portuguesa, em abril do ano passado. Em janeiro, a Procuradoria Geral da República (PGR) abriu um inquérito a este processo.

Ainda que apenas as comunidades do Porto e de Lisboa possam atestar raízes sefarditas nos processos de candidatura à nacionalidade, João Diogo, vice-presidente da Comunidade de Belmonte, vê com bons olhos esta lei. “Acho benéfico que as pessoas venham e que contribuam para o desenvolvimento do nosso país”, diz.

Quanto à polémica que envolve o bilionário russo, diz apenas que esta não deverá prejudicar a comunidade judaica. “Até porque se houve alguma ilegalidade, que a demonstrem e que seja feita justiça.” Aliás: “Com certeza que essas situações irão continuar a acontecer enquanto o decreto estiver em vigor e não vai prejudicar em nada. Será mais uma averiguação a fazer.”

Também Moisés Mourão, dono da Casa da Judiaria de Belmonte, considera que a “lei está mal feita”. Enquanto judeu, que para conseguir a nacionalidade israelita teve de morar no país durante um ano, entende que a mesma obrigação devia aplicar-se a quem procure a nacionalidade portuguesa. “Se não vivesse lá um ano, tiravam-me logo”, diz.

Em todo o caso, não descarta a hipótese de o bilionário russo ter mesmo raízes portuguesas. A título de exemplo, conta a história do senhorio do cunhado em Israel. Em conversa, descobriu que os “antepassados dele tinham vindo de Belmonte, emigrado para Turquia e depois foram viver para Israel. O mundo é pequeno. É uma bolinha que a gente diz que é muito grande, mas não é nada disso.”

Um segredo bem guardado

Há cerca de 100 anos, quando Samuel Schwarz descobriu com a comunidade de Belmonte, “não foi logo acolhido”. Para ser reconhecido, acabou por ser levado à presença de uma anciã que lhe pediu que provasse que era judeu. O polaco lembrou-se então de rezar a oração Shemá Israel – em hebraico. Na época, as orações dentro da comunidade eram passadas em português, salvo uma palavra: Adonai, Deus em hebraico. Essa palavra foi a chave para lhes ganhar a confiança.

Passados quase cem anos, a comunidade continua “muito, muito fechada”, diz Jayme Fucs. Isso acontece, acima de tudo, por causa da “herança” do tempo que viveu em isolamento. As rezas que Samuel Schwarz ouviu também o empresário brasileiro as presenciou. Mas foi-lhe pedido para não as gravar – mesmo que fosse para levar para um museu em Israel.

A comunidade de Belmonte preza a privacidade. E tem motivos para tal: foi assim sobreviveu oculta por quase 500 anos, numa pequena localidade, no interior de Portugal.

Em 2017, o Museu Judaico de Belmonte foi renovado e numa das paredes foram gravados os nomes de quase todas as pessoas da comunidade; algumas pediram para não ser incluídas, contou Elisabete Manteigueiro. “Ainda queriam salvaguardar a sua identidade mais um bocadinho.”

Comentários
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  • pedro
    05 set, 2022 Benguela (Angola) 14:45
    gostaria de saber mais sobre a cultura judaica o que e necessário?
  • José Titosse
    21 fev, 2022 Tocha 10:50
    Por favor retificar a data :"Quando em 1446, D. Manuel I expulsou os judeus de Portugal, milhares foram obrigados a optar entre o desterro e a conversão...". A data correta é 1496.

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