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​A pandemia e as suas lições - a visão da Igreja portuguesa

Bispo de Aveiro. "Ordenados baixos são também uma forma de desigualdade e de injustiça”

27 mai, 2021 - 06:30 • Henrique Cunha

D. António Moiteiro não tem dúvidas de que "a pandemia fez com que as desigualdades sociais aumentassem", afetando mais aqueles que estavam "em fragilidade". O bispo adverte que não é possível "construir uma sociedade sem inclusão" e mostra esperança de que esta crise possa "ajudar-nos a ser melhores como sociedade e como Igreja”.

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"Aquilo que estamos a ver hoje em Odemira e noutros lugares também se passa a outros níveis em muitas outras situações no nosso país." Foto: Diocese de Aveiro
"Aquilo que estamos a ver hoje em Odemira e noutros lugares também se passa a outros níveis em muitas outras situações no nosso país." Foto: Diocese de Aveiro
"Aquilo que estamos a ver hoje em Odemira e noutros lugares também se passa a outros níveis em muitas outras situações no nosso país." Foto: Diocese de Aveiro
"Aquilo que estamos a ver hoje em Odemira e noutros lugares também se passa a outros níveis em muitas outras situações no nosso país." Foto: Diocese de Aveiro

O bispo de Aveiro diz que os ordenados baixos "de muitas fábricas e de muitos trabalhos são também uma forma de desigualdade e de injustiça”.

“Aquilo que estamos a ver no campo laboral, no campo da justiça social, no campo dos direitos humanos, aquilo que estamos a ver hoje em Odemira e noutros lugares também se passa a outros níveis em muitas outras situações no nosso país”, completa D. António Moiteiro em entrevista à Renascença.

Para prelado, "é evidente" que "à Igreja não compete dar soluções", mas D. António sublinha que "a Doutrina Social da Igreja dá princípios e esses princípios, nas mais variadas circunstâncias, devem ser aplicados”.

Nessa perspetiva, D. António Moiteiro considera que “devemos denunciar" as injustiças e procurar "encontrar soluções para uma maior justiça social, uma maior fraternidade e uma maior atenção aos mais pobres”, no fundo “fazer aquilo que o Papa Francisco nos diz na 'Fratelli Tutti', para cuidarmos da casa comum, da criação”.

"Tudo isso diz respeito à Igreja, mas diz respeito também à sociedade”, preconiza.

"Esta crise pode ajudar-nos a ser melhores: melhores como sociedade e melhores como Igreja”

Lição n.º 1: “Pandemia acentuou desigualdades”

Um dos problemas que o bispo de Aveiro identifica na sociedade em consequência da pandemia é o do aumento das desigualdades sociais.

"Num olhar alargado, podemos dizer que a pandemia fez com que as desigualdades sociais aumentassem”, aponta, lembrando "dados oficiais conhecidos” reveladores de que "a classe média não sido muito afetada”.

"A pobreza aumentou junto dos mais pobres, junto daqueles que já estavam numa fase de fragilidade”, sentencia. "Foram mais afetadas as pessoas que já tinham empregos com rendimentos baixos e, por vezes, o próprio trabalho era precário. Nesses, essa fragilidade, essa precaridade acentuou-se."

Quanto à situação das instituições da Igreja diocesana, o bispo de Aveiro adianta que “elas responderam e estão a responder aos desafios que lhe estão a ser colocados, sejam eles ligados à infância ou às pessoas portadoras de deficiência ou relacionados com a terceira idade”.

Ainda assim, D. António alerta para um “dado que importa realçar” e que está relacionado com o facto de a “comunidade cristã ter menos rendimentos, o que se reflete também na diminuição dos donativos a essas instituições”.

O facto de a comparticipação do Estado também "não ter aumentado em proporção com o aumento dos ordenados e com os gastos extraordinários que estas instituições têm de fazer”, coloca muitas instituições "numa situação difícil”.

"Ouço muitos responsáveis dessas instituições aflitos porque começam a ter dificuldade de chegar ao fim do mês”, indica.

Ainda no plano do trabalho social desenvolvido na diocese, D. António Moiteiro destaca também “o papel da Cáritas e das conferências vicentinas e de outros grupos paroquiais”, que também tiveram “um aumento muito significativo dos pedidos de ajuda”.

"São pedidos de auxílio para pagar a luz, para pagar a água e, em alguns casos, para a própria alimentação. E também houve pedidos para pagamentos de rendas”, sublinha.

Lição n.º 2: “Aproveitar para construir relações laborais mais justas”

Além da componente social, o bispo de Aveiro faz também uma análise mais ampla às consequências da pandemia em toda a sociedade e “sem ofensa para ninguém”, D. António lembra que “tudo aquilo que é aparelho do Estado passou por esta crise de uma forma muito mais leve do que aqueles que têm o seu pequeno negócio ou estão num trabalho dependente”.

"Não podemos construir uma sociedade sem inclusão”

Nestas circunstâncias, o bispo entende que se esta crise não for aproveitada "para construir relações laborais mais justas e mais fraternas, uma sociedade onde os mais pobres sejam privilegiados, no sentido, mesmo, do Evangelho, não estaremos a aprender com a pandemia”.

“Esta crise pode ajudar-nos a ser melhores: melhores como sociedade e melhores como Igreja”, reforça D. António ao mesmo tempo que refere que “isto também implica da nossa parte a necessidade de ultrapassarmos muitas inércias, muitos preconceitos e até muitos comodismos”.

"Nós não podemos construir uma sociedade sem inclusão”, argumenta, sublinhando que “uma crise, seja ela qual for, tem de ser sempre um exame de consciência para nos ajudar a refletir sobre a situação em que estamos para melhor projetar o futuro".

D. António dá o exemplo “das comunidades cristãs de Aveiro” onde “havia várias pessoas que já estavam numa margem dessa mesma comunidade, ou seja, vinham de vez em quando, participavam ocasionalmente. Essas pessoas foram as primeiras a abandonar e, agora, será difícil que regressem”.

"Há outros casos de pessoas com medo, mas este projetar futuro tem de ser para construirmos uma sociedade mais justa e fraterna e uma Igreja mais inclusiva e também uma igreja mais dialogante e mais sinodal."

"Aquilo que digo da Igreja digo também da sociedade. Nós não podemos construir uma sociedade sem inclusão”, reforça.

Lição n.º 3: “Mais atenção para ouvir quem nos procura”

No primeiro confinamento, a diocese de Aveiro criou a linha telefónica «CoVive» para o acompanhamento da população. A ideia teve como objetivo garantir atendimento por parte dos sacerdotes da Casa Episcopal a todos os que necessitassem de apoio. Para o efeito, foram disponibilizadas duas linhas telefónicas que as pessoas podiam usar e “vários sacerdotes disponibilizaram os seus números para que os paroquianos os pudessem contactar”.

A linha esteve disponível durante o primeiro confinamento e, de acordo com D. António Moiteiro, “as pessoas foram contactando, sobretudo, por questões de solidão e isolamento".

O bispo relata que muitas pessoas "sentiam-se perdidas", uma vez que, "mais do que problemas económicos e dificuldades do dia a dia, as pessoas demonstravam necessidade de desabafar, de falar, de expressar a sua dificuldade com o facto de estarem a viver sozinhas”.

"Tudo isso fez com que os nossos padres estejam agora a disponibilizar mais o seu tempo, de forma presencial, para escutar e para ouvir as pessoas. Presencialmente é muito mais humano e permite mais ajudar as pessoas porque é face a face que podemos contactar com elas”.

"Uma crise, seja ela qual for, tem de ser sempre um exame de consciência”

D. António Moiteiro não tem dúvidas de que este “foi um dos ganhos desta pandemia, o de dar mais atenção para ouvir e para escutar aqueles que nos procuram”.

Lição n.º 4: Combater impotência de ajudar “perante o sofrimento”

O bispo de Aveiro afirma que nesta pandemia “o mais difícil foram as relações com as pessoas” e recorda que, “no primeiro confinamento, tivemos no Lar da Santa Casa da Misericórdia um problema muito grave de infeção, de pandemia entre os utentes da instituição, que resultou em diversas mortes”.

“Foi como que uma impotência”, pois, “na altura, não havia testes, não havia meios para ajudar aquela gente que faleceu num número muito grande entre os utentes do lar”.

O bispo recorda que “como esta situação, houve mais algumas em que nós sentimos de certo modo uma impotência perante o sofrimento dos outros”.

Situação similar verificou-se com "o sofrimento das famílias com os seus defuntos", porque, "quando o bispo tem de dizer aos seus padres que um funeral de um paroquiano, de um cristão tem de ser limitado a duas ou três pessoas, é muito difícil", porque "não pode haver a relação humana, esta relação cristã com aqueles que sofrem".

"Para mim, foram os momentos mais difíceis”, acrescenta.

Ao olhar pelo retrovisor, D. António Moiteiro não deixa de mostrar surpresa pela duração do tempo de confinamento. O bispo confidencia que “quando, em março de 2020, deixamos de ter eucaristias com assembleia, nunca imaginamos que a Páscoa desse ano seria como foi, com as portas fechadas. Depois, ao iniciar o desconfinamento, pensamos que fosse mais fácil do que tem sido até agora”.

D. António sublinha que “têm sido momentos difíceis de viver, mas que, por outro lado, têm sido também momentos para uma excelente reflexão”. De certa forma, adianta o prelado, “aquele parar das atividades normais do dia a dia ajudou-nos a repensar e a situarmo-nos de novo naquilo que é fundamental na vida cristã, que é a nossa relação profunda com Deus que, depois, se manifesta também na relação com o próximo”.

O bispo diz ainda que “a formação catequética foi muita afetada pela pandemia”. D. António não deixa de dar “uma palavra muito positiva a todos os agentes de pastoral - quer dos sacerdotes quer aos catequistas", mas também aponta alguns problemas: "Tenho andado pelas paróquias e tenho-me encontrado com os que estão a preparar-se para o crisma e é interessante ver que a formação foi sendo sempre feita, através do online, através do zoom. Mas é evidente que nós temos um grupo grande de catequistas que está desligado destas novas redes sociais de comunicação e isso acarreta problemas muito sérios, quer à catequese em si quer à formação dos seus agentes."

"Um dos ganhos desta pandemia foi o de dar mais atenção para ouvir e para escutar aqueles que nos procuram”

O bispo de Aveiro não encontra nesta dificuldade um fechar definito de portas, pois encontra “uma janela de esperança” nesta dificuldade. Para o bispo de Aveiro, “isso também nos tem ensinado que a formação também pode ter outros caminhos".

"Por exemplo, pode potenciar a experiência do presencial que é experiência comunitária da fé, com o online: isso também nos foi ensinado pela pandemia."

D. António Moiteiro sublinha, por outro lado, que “muitos dos catequistas da nossa diocese foram heróis ao longo deste tempo” e diz-se confiante em relação ao futuro próximo, tanto mais que “nas paróquias, muitos grupos de catequese que quase morreram, começam agora a reativar-se, fruto da “formação presencial e da formação online".

Lição n.º 5: “Crise pode ser tempo de crescimento e de ajuda”

Nesta entrevista, o bispo de Aveiro deixa uma palavra de esperança, lembrando que, “a esperança cristã é viver o hoje, mas com os olhos no amanhã, ou, se quisermos, a esperança cristã é já construir hoje o amanhã que queremos melhor”

"Tem de ser este o grande sinal do cristão: ser um homem de esperança para construir um mundo melhor, para construir o hoje da história, sabendo que o amanhã é o nosso encontro definitivo com Deus”.

O bispo entende que “a crise - seja ela qual for - pode ser um momento de morte ou de fraqueza, mas também pode ser um tempo de crescimento e de ajuda mútua” e, nessa perspetiva, “este momento é um momento positivo”;, pois “vivemos o sofrimento, vivemos a morte de tantas pessoas, mas sabemos como em Jesus a morte não foi a última palavra, mas a morte foi vencida na manhã de Páscoa”.

"Eu acredito que o ser humano tem dentro de si capacidades, energias e fé para vencermos as dificuldades. Por isso ,eu acredito que é possível um mundo novo", remata.

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