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Entrevista Renascença

Mega Ferreira pede decisões a Costa. Apesar de tudo, “com Sócrates as coisas avançavam”

11 nov, 2022 - 19:00 • Maria João Costa

“É preciso ter capacidade de decisão, coragem e arriscar”, aconselha Mega Ferreira ao Governo de maioria absoluta. O escritor diz que é “altura de avançar com o TGV” e a localização do novo aeroporto, e mostra-se incomodado com “a falta de cosmopolitismo do país”.

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É um socialista assumido, mas não faz uma avaliação positiva do Governo de António Costa. António Mega Ferreira, que liderou a Expo 98, denuncia a “prudência deste regime de maioria absoluta” que, no seu entender, “tem as cores do medo”.

Em entrevista à Renascença, o escritor considera que “é altura de avançar com o TGV” e a “localização do aeroporto” na região de Lisboa. Ao primeiro-ministro avisa que “é preciso ter capacidade de decisão, coragem e arriscar” e afirma que, apesar de não gostar da personalidade, “com Sócrates as coisas avançavam”.

Assustado com o estado do mundo, diz que hoje combater a extrema-direita “é a grande utopia em que nos temos que empenhar”.

Aos 73 anos, numa altura em que está a lançar o livro “Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas” (ed. Tinta-da-China), diz que não lhe falta fazer mais nada. Embora tenha projetos para mais livros, não sabe se terá força física. No livro que está a lançar reúne um dicionário de palavras em desuso, uma delas “Geringonça”. Nesta “arqueologia da memória” vocabular encontra razões para explicar o empobrecimento que se vive atualmente na língua portuguesa.

Este "Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas" tem mais de 80 entradas para palavras que, muitas delas, foram caindo em desuso. É um livro de viagem às suas memórias, mas também de afetos literários, cinematográficos, musicais. É uma espécie de trabalho de arqueólogo da memória?

É exatamente isso! É isso mesmo! É um livro que nasce da minha paixão pelas palavras. Só uma pessoa que tivesse uma paixão pelas palavras é que lhe passava pela cabeça evocar as suas memórias através das palavras, das que caíram em desuso, das que não caíram em desuso, das que foram muito usadas, etc.

É um pouco uma arqueologia. Aliás, é curioso porque algumas das referências que aqui aparecem, apareceram ao correr da pena. É uma expressão literária, não é real! Ao toque no teclado, à medida que ia escrevendo, chegava a um ponto e dizia: "Ah! Mas isto tem que ver com..." Então vinha uma evocação, uma referência. As referências são dadas meramente como auxiliares ou apoios da evocação, não valem em si mesmo.

"A prudência deste regime de maioria absoluta, para mim, tem as cores do medo"

Mas para quem lê o livro, são portas de entrada para outros universos?

São portas de entrada através de mim, mas uma pessoa que está a ler um livro meu já está a entrar no mundo através de mim, dos meus olhos. É verdade, quando eu falo de determinados livros, filmes, atores, atrizes como a Claúdia Cardinale, por exemplo... têm a ver comigo, com os meus afetos. É porque eu adoro a Claúdia Cardinale, ela aparece aqui. Mas sim, é isso, disse muito bem, é um exercício de arqueologia da minha memória, e até certo ponto, de uma memória de uma certa geração de lisboetas.

Porquê de uma certa geração de lisboetas?

Porque realmente há aqui muitas palavras que são palavras de Lisboa, usadas em Lisboa, mas não se usavam noutros pontos do país; ou até que não existem noutros pontos do país. “Capelista”, por exemplo, é uma coisa que eu só descobrir fazendo a investigação e a pesquisa depois.

Há aqui um trabalho de muita pesquisa?

Sim, todas as entradas têm pesquisa com a minha biblioteca, com os dicionários todos que tenho. Cada vez que começava a escrever sobre uma palavra, praticamente a primeira coisa que fazia era a pesquisa da etimologia da palavra, das diversas declinações da palavra. Achei interessante dar ao mesmo tempo o lado efetivo da minha relação com a palavra, mas dar também o sentido da palavra para que se percebesse.

Quer dar algum exemplo?

Há coisas engraçadas, a palavra despautério, por exemplo. É extraordinário, não sabia. Foi a pesquisa que revelou que a palavra vem de um senhor chamado [Jean] Despautère ou despautérios. Ficou como sinónimo de um grande disparate, porque o senhor escreveu uma gramática latina no século XVI completamente disparatada. É extraordinário que essa palavra venha do nome de um gramático flamengo e entra, e hoje em dia, é corrente. Aliás, esta palavra despautério não caiu completamente em desuso ainda é usada hoje. Mas muitas dessas palavras ainda são usadas hoje com sentido irónico.

Vitualhas. A gente diz: "Vamos fazer um piquenique, tu levas isto e tu encarregues das vitualhas". Isto é, uma vez mais, um lado afetivo, porque é uma palavra que nos evoca outras coisas, mais antigas, mas é também uma piscadela de olho, porque as pessoas sabem o que são vitualhas! Embora não usem na conversa corrente as vitualhas. A utilização destas palavras mantém-se quase como um sublinhado.

Escreve na entrada da palavra “vocação” que é um "prisioneiro das palavras" e que fora delas: "não reconheço o mundo nem sei que cor que lhe deva atribuir". Acha que hoje usamos cada vez um número menor de palavras? Há um empobrecimento da Língua Portuguesa?

Não há um empobrecimento da língua, porque a língua existe e as palavras existem na língua. Mas há um empobrecimento no uso da Língua Portuguesa. Aí isso, sem dúvida nenhuma. Basta ver o tipo de linguagem que se usa na comunicação das redes sociais. E que ainda por cima é muito comum!

Podia dizer-se que é meia dúzia de jovens que usa, mas não. Hoje em dia está largamente disseminado. Mas é extraordinário, porque na realidade, o uso da língua foi-se tornando raro. Ou seja, o número de palavras que usamos hoje é muito menor do que o que era há 50 anos.

Que consequências é que tem esse empobrecimento do número de palavras que usamos?

Tem algumas! A primeira é que diminui a capacidade de expressão. De quanto mais palavras nós dispusermos, mais rigorosa pode ser a expressão do nosso pensamento. E não estou a falar apenas na escrita. Estou a falar verbalmente. Estamos aqui a conversar muito bem, neste momento, porque ambos usamos muitas palavras. Se usássemos o número limitado de palavras do Twitter, não era possível ter esta conversa. Era muito reduzida, acabava ao fim de três minutos. Estava tudo dito.

A redução da capacidade de expressão traz consigo uma redução da intensidade da comunicação. Ou seja, as pessoas comunicam menos, e comunicam pior. E depois daí vem tudo, os mal-entendidos, os equívocos, todos os disparates provêm do mau uso da língua [risos]. Enfim, isto é um bocado exagerado. Mas grande parte dos disparates provém do mau uso da língua ou do empobrecimento da língua que vai existindo até a um ponto em que eu já cá não estarei, portanto, não sei! Eu não sou, catastrofista, como sabe, mas é assustador.

É assustador, porquê?

É assustador o empobrecimento da língua, como é assustador o estado do mundo! Como é assustador tudo, tudo neste momento é assustador! A guerra, pobreza, a miséria, as migrações, as pandemias, tudo é assustador.

Como é que olha para a atual situação económica e social? Estamos com o nível de vida a subir, os salários a não corresponderem a isso. Poderemos piorar abruptamente nos próximos meses. Como é que vê a situação económica e social?

Alguma coisa terá de ser feita para inverter isto. Desgraçadamente, hoje em dia, em economias e sociedades interdependentes, isso não depende só de nós. Podíamos ter o melhor governo do mundo, e não é com certeza o melhor do mundo, mas poderíamos ter o melhor governo do mundo sozinho, e não conseguia fazer nada! Todos os dias leio sobretudo a imprensa internacional, porque a nacional, infelizmente já não dá grande coisa, mas na imprensa internacional eu leio os apelos.

O que acontece é que o BCE demorou dez meses até tomar medidas contra a inflação! Não é possível! Isto lembra-me sempre uma história que eu adoro repeti-la. É uma história da História conhecida.

Em 1577, o rei D. Sebastião foi encontrar-se com o tio Filipe II de Espanha, em Guadalupe. Queria convencer o tio a mandar as tropas castelhanas, na altura espanholas já, para Marrocos com as pobres tropas portuguesas para dar guerra ao rei de Marrocos, que é o delírio africano do D. Sebastião, que todo ele era um delírio! Estiveram três dias, e não conseguiu convencê-lo, nem com o célebre banquete do pescado, que um banquete extraordinário, só com espécies do mar, vindas no próprio dia de Lisboa por mudas de cavalos.

Não conseguiu convencê-lo. Furioso, o rapaz, o rei Sebastião, ao sair da sala, voltou-se para trás e dirigiu-se ao ministro do rei, o Duque de Alba, mas é óbvio que a mensagem era para o tio. E pergunta ao Duque de Alba: "Senhor Duque de cor é o medo? e o Duque de Alba responde: "Senhor, o medo é da cor da prudência". Eu gosto imenso de repetir esta história extraordinária!

Na realidade, nós chegámos a um ponto da vida do mundo em que os políticos são tão prudentes, tão prudentes que se vê que estão cheios de medo. Portanto, vão cedendo terreno. Quando damos por isso, já estamos no charco. Esta história da inflação e do BCE é uma coisa extraordinária! É que o BCE tem os instrumentos todos para perceber que vai haver um surto inflacionista, mal começa a guerra.

Ainda por cima, a Ucrânia é o celeiro da Rússia, e em parte o do Ocidente. O gás natural vem da Rússia. Estava-se mesmo a ver que um estado de guerra entre aqueles dois países ia provocar imediatamente uma inflação! Demoraram dez meses para subir as taxas de juro para atacar a inflação de frente.


"A grande utopia é destruir a extrema-direita"

Tarde demais?

Absolutamente, tarde demais! Compreendo que tivessem de esperar dois meses para ver como é que evoluía a situação. Aliás, fomos todos surpreendidos com esta guerra. Foi esse também o efeito surpresa com que Putin chegou. Mas fomos surpreendidos pelo efeito desta guerra.

Com a aceleração do processo histórico, as instituições internacionais têm que adequar o seu ritmo de resposta ao ritmo do desafio. Não podem antecipar, claro, mas é depois, mas é depois o mais depressa possível. Isto é tarde demais. Dez meses é uma eternidade na História do mundo!

Escreve na entrada da palavra "Utopia" que "o último sobressalto utópico foi o Maio de 1968". Faltam-nos utopias hoje em dia, ou já não precisamos delas?

Acho que precisamos sempre das utopias, quanto mais não seja como um horizonte de expectativa, projetar para qualquer outra coisa que ainda não existe e que nós acreditamos que pode existir.

Nesse sentido, faltam-nos utopias. Agora é óbvio que a ideia da Utopia, como uma grande narrativa, morreu, na Europa Ocidental, com o Maio de 1968.

Mas hoje, com o ressurgimento da extrema-direita nos parlamentos por toda a Europa, essa utopia pode estar ameaçada? Pode não ser possível de sonhar?

Pode! Pode ser que sejamos obrigados a considerar que a grande utopia é destruir a extrema-direita. É uma grande utopia, mas temos que nos empenhar nisso! O que se está a passar na Europa e na América, em toda a parte, é uma coisa perfeitamente, para mim, assustadora, completamente assustadora!

Quem já viveu uma vida inteira de mais de 70 anos e agora se vê confrontado com esta coisa impensável, que é o Bolsonaro, depois de quatro anos de disparates e de gangsterismo, vai a eleições e tem 58 milhões de votos. Quase que ganha! Como é que é possível?! Como provavelmente será possível o Trump voltar em 2024!

Agora, como é que se chegou aqui? Talvez por causa da ruína das utopias. As utopias foram desaparecendo, arruinadas. As democracias deram imensos tiros nos pés! A democracia é um equilíbrio frágil, porque tem portas abertas e tem que as ter abertas, porque se não as estiver abertas, deixa de ser menos democracia. Na realidade, essas portas abertas permitiram que entrassem.

Há um livro muito interessante que li agora, de um jornalista inglês, que é sobre os líderes das democracias musculadas, das ditaduras atuais. Há uma coisa interessantíssima. É que dantes os ditadores vinham de fora, davam golpes de Estado, chegavam ao poder e instalavam uma ditadura. Hoje em dia já não é preciso. Vem por dentro do sistema. Da democracia. Ganham eleições e realmente, nós ficamos de calças na mão!

A eleição é a base, a coluna dorsal da democracia. Se eles ganham eleições, o que é que a gente faz a seguir? Luta por se reorganizar para ganhar as próximas! Mas é um jogo muito arriscado. É praticamente inevitável, o recrudescimento da extrema-direita por toda a Europa e por todo o mundo.

Na Índia, por exemplo, já para não falar da China que sempre foi uma ditadura de partido. A Índia era uma grande democracia, e, neste momento, tendem a desaparecer os traços democráticos do regime. E isso é uma coisa de facto terrível!

Outra das entradas deste livro é a palavra "geringonça", uma palavra que voltou a ser usada no léxico português. Explica porque é que essa geringonça funcionou. Hoje estamos perante um Governo de maioria absoluta. Que avaliação faz de um PS a governar sozinho?

A avaliação que se pode fazer, neste momento, são uns seis, sete meses, não é muito positiva, na minha ótica. Eu sou um eleitor do PS convicto, e um "compagnon de route" do Partido Socialista. Não é [positiva], porque a prudência deste regime de maioria absoluta, para mim tem as cores do medo.

Mas medo de quê?! O Governo tem maioria absoluta, é a altura de avançar com o TGV, é altura de avançar com a localização do aeroporto. O senhor Montenegro não quer, vá para o Montenegro! Não podemos fazer outra coisa. Agora, não me venham dizer que a linha Lisboa-Porto-Vigo é uma alternativa à linha do TGV que nos liga a Espanha e à Europa, não é!

Estamos a falar de outra coisa. Estamos a deitar poeira para os olhos. Porque o TGV, o comboio de alta velocidade, não foi inventado para tirar um quarto de hora em percursos de 300 quilómetros! Foi inventado para tirar horas em percursos de muitas horas, quiçá mesmo de dias. O Sud Expresso demorava 25 horas quando eu fui a Paris em 1970. Demorava 25 horas a chegar a Paris! Hoje em dia o TGV faz em 8, 9 horas. É para isso!

A mim faz-me confusão, a procrastinação. Em que, aliás, é do PS e da oposição! Porque repare, assim que o ministro Pedro Nuno Santos anunciou que íamos localizar o aeroporto, num sítio qualquer. É uma decisão como outra qualquer. Eu não tenho meios técnicos, nem nenhum cidadão tem, para saber se deve ser ali ou noutro lugar.

Façam o aeroporto, caramba! Avancem com o aeroporto pelo menos decidam a localização! Há 50 anos que estamos para decidir a localização. Isto é uma coisa impensável, absolutamente impensável. Mas repare que a primeira reação à declaração do ministro Pedro Nuno Santos, bem a primeira foi a do primeiro-ministro, a desautorizando, mas tudo bem, isso é um aspeto do processo interno. Mas o líder da oposição veio dizer que não, eram precisos mais estudos. Mas mais estudos de quê? Se ele perdesse um bocado de tempo a ler os estudos que já existem, percebia que não é preciso mais estudos nenhuns! Agora o que há é decidir!

Mas não acha que este Governo, com maioria absoluta, não tem esse poder para decidir? O que é que então faz este "comboio", este TGV andar a parar de 15 em 15 minutos?

Eu tenho de dizer uma coisa. É uma pessoa que eu não gosto muito, mas com Sócrates isto não era assim! Há que reconhecê-lo. Com Sócrates as coisas avançavam. O próprio TGV já estava avançado. É preciso decidir. É preciso ter capacidade de decisão, coragem e arriscar.

Acha que António Costa não tem tido esse sentido de risco, e poder de decisão porque está a ter prudência, porque quer outros cargos europeus, por exemplo?

Eu sempre duvidei um bocado que ele quisesse cargos europeus. Hoje em dia, não sei. Essa é uma hipótese. Não estou a dizer que seja, nem que me incline para isso. Conheço-o bem, e não me parece que seja. Mas realmente, se não é isso, então o que é? Porquê? Porque é que não se avança com as coisas? Tem maioria absoluta durante quatro anos. Eram quase cinco quando começaram.

São quase cinco anos, caramba! Para decidir a localização do aeroporto, é mais do que tempo. Até para pôr as obras no terreno, para tornar irreversível a coisa. Porque aqui, a questão fundamental é esta.

A razão por que ele quer, em relação ao aeroporto e ao TGV, o acordo com a oposição, é para ter a certeza que quando terminar este ciclo, em que naturalmente o PS vai sair do poder, e quem vai entrar é o PSD, ele quer ter a certeza que as coisas não andam para trás outra vez, como já andaram com o Passos Coelho, essa grande figura que agora andam a procurar reabilitar, embora o homem diga que não! Da parte dele é legítimo, tem a vida dele, que queira ser político, o Presidente da República, não tenho nada contra. Eu não votei nele, mas não tenho nada contra, e acho absolutamente legítimo.

Agora, na realidade, eu acho que se tem de criar pontos de irreversibilidade, deforma a que um Governo de outra cor que venha, não diga: "Herdámos isto! Mas tem que ser!". O Passos Coelho interrompeu o processo do TGV e provocou milhões de euros de prejuízos, em estudos que estavam a avançar. Isto não pode ser. O país não pode estar constantemente adiado!

Esteve envolvido em grandes projetos como a Expo'98. Sucedeu depois na presidência da Parque Expo. Esse tipo de desígnios, de grandes projetos, inclusivamente o que está aqui a falar como o aeroporto e o TGV são necessários para o país também avançar. 24 anos depois da Expo'98, o sonho daquilo que era Portugal nessa altura concretizou-se?

Não, não, não concretizou! O país melhorou muito. Não é isso que está em causa. O país com certeza melhorou muito, numa pequena parte, aliás, por influência direta da Expo'98, a modernização das cidades, etc. Foi porque as pessoas vieram, viram e disseram: Ah! isto pode-se fazer cá, vamos fazer!

Modernizaram-se as cidades. Vamos a cidades de média dimensão, graças a projetos como, por exemplo, o Pólis, lá vamos bater outra vez na mesma coisa... A verdade é que as cidades se modernizaram e, portanto, o país é melhor hoje.

Contudo...

Não é aquilo que se sonhava na altura, nem poderia ser. E, sobretudo, há uma coisa que a mim me incomoda muito, que é a falta de cosmopolitismo do país. O país não percebe que tem de se ligar por TGV à Europa. É crucial! Porque senão, qualquer dia, acontece uma coisa que andamos a bramar há 300 anos, que é a Espanha toma conta de nós, e não toma militarmente porque hoje em dia já não é assim!

Toma economicamente.

No dia em que a Espanha disser: "Nós fazemos o TGV de Lisboa até Badajoz", que é o que nós temos que fazer, porque eles já chegam a Badajoz, nós ficamos nas mãos de Espanha para ter acesso à Europa.

Será que a Espanha vai usar isso agressivamente? Não, provavelmente não vai, mas vai utilizar no seu interesse, como é normal. E a gente passa a vida a queixar-se, mas a realidade é que queixamo-nos, mas não fazemos! Isso acontece a todos os níveis na nossa sociedade.

Quando fala desse cosmopolitismo, Lisboa sobretudo, mas também o Porto foram cidades que mudaram bastante nos últimos tempos...

Criaram as condições para, naturalmente, se integrarem numa rede cosmopolita.

Mas?

Mas, faltaram os transportes, por exemplo.

Acha que são cidade feitas para quem as habita?

Isso é outra história. Cada um de nós só tem uma vida para viver e, portanto, tendemos a achar que é a primeira vez que isto acontece. Não é! É cíclico. Os países vão se descaracterizando, as cidades vão perdendo as suas características próprias.

É verdade que Lisboa, e o Porto - que eu conheço mal hoje - é verdade que se está a descaracterizar totalmente, em grande parte. É o que hoje se chama, aliás, uma apropriação incorreta do termo "gentrification", que se chama gentrificação. Hoje em dia, entende-se a gentrificação como a substituição dos habitantes de origem de uma zona de uma cidade, pelos adventícios, pelos que chegam, partem e vão.

Isso está a acontecer em Lisboa, claramente! Olha, aqui no meu bairro, é terrível. Isto era a rua mais calma que havia por toda a parte. Agora, às duas, três da manhã, é miúdos bêbados, os Erasmus com os copos. Isso é gentrificação. No meu caso, já não sairei daqui dada a idade que tenho. Mas é natural que pessoas com 30, 40 anos haja um momento em que dizem "isto não é suportável!"

Faz sentido esse cosmopolitismo das cidades ou há uma falta de equilíbrio nas cidades?

Há uma falta de equilíbrio em todas as cidades que passam por esse processo. Barcelona, por exemplo. Aliás, isso levou a uma muito interventiva Ada Colau a meter posturas municipais para proibir. Mas tem de se recorrer a algumas dessas medidas administrativas, sem dúvida nenhuma. A medida de parar as licenças para alojamento local é uma medida positiva, porque isto é um disparate.

No meu prédio, só num momento já havia três apartamentos em alojamento local. Era gente a entrar e a sair dia e noite, que é normal, é próprio do alojamento local. A gente quando vai para um local no estrangeiro também faz a mesma coisa, portanto, é normal. Provavelmente é o preço que tem que se pagar por essa deriva cosmopolita. Mas penso que pode se equilibrar. É evidente que sim.

Deixe-me voltar ao livro "Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas". É necessária ou deveria haver uma política da língua mais rigorosa? Um maior incentivo, por exemplo, à leitura para que a língua não estivesse a sentir este empobrecimento.

Há décadas que ouço falar de políticas da língua. Nunca percebi o que é política da língua. A política de língua é ensinar bom português, desde o básico.

Uma política da língua seria, por exemplo, não ter abolido a memorização das escolas. Só consegue entrar dentro de uma língua se memorizar as palavras. A memória foi praticamente abolida das escolas portuguesas. Aliás, como o latim. Azar! No meu tempo, o latim não se dava na escola primária, claro. Só se dava nos anos finais do curso complementar dos liceus, que era o sexto e sétimo ano da época. Bom, mas dava-se alguma coisa. Ou seja, quando se entrava na faculdade tinha-se tido dois anos de latim.

Decorava-se coisas em latim. É importante. A memória é extraordinária. Conto muitas vezes a história da "Divina Comédia" de Dante. Porque é que a "Divina Comédia" é um poema nacional em Itália? Porque eles sabem-na de cor. Começam a aprendê-la na escola primária, mas não aprendendo os significados, aprendem a memorizar, aprendem a cantilena da língua. Isso é fundamental. Resultado, quando [Roberto] Benigni faz as sessões de declamação da "Divina Comédia" em pleno verão, nas cidades italianas, tem praças cheias e há estâncias em que ele diz o primeiro verso, e a malta, em coro, diz o resto.

Poderiam ser os nossos Lusíadas?

Camões, “Os Lusíadas”, um poema nacional?! Não, não é! Eu sou um herói. Sei as quatro primeiras estrofes dos "Lusíadas" de cor. Não sei mais! Sei as quatro primeiras estrofes, o que já é bonito e já dá para brilhar. A memorização é uma coisa importantíssima.

A quebra do latim foi outra muito importante. O esvaziamento das disciplinas humanísticas, da filosofia, da História, etc. É uma coisa terrível, porque a língua perpassa por tudo isso, e, nós vamos melhorando o uso da língua à medida que vamos sabendo mais coisas, através da nossa língua.

Com ou sem acordo ortográfico?

Com o Acordo Ortográfico! Não vale a pena, por amor de Deus! O Acordo Ortográfico foi votado unanimemente duas vezes pelo Parlamento português há 30 anos. Caraças! Nem sequer estamos a falar de uma coisa de há 6 meses! Ninguém era contra o Acordo Ortográfico. Quando se pôs a hipótese, de em 2008, 2009, entrar em vigor porque estava no acordo que tinha que entrar em vigor, "Ai! Aqui-del-rei! Não pode ser!".

O próprio acordo é, se calhar, demasiado permissivo. Permite que as pessoas escrevam como querem, na realidade. Nos documentos oficiais, não. Mas um escritor pode escrever, com ou sem acordo ortográfico. Quem quiser mantém-se agarrado à ortografia antiga. Eu aderi logo a ortografia moderna. Porquê? Porque é melhor, não. Porque se é a ortografia moderna que é usada no total de Portugal, Brasil, e esperamos no futuro também, em todos os PALOP, nesse caso, porque é que eu hei de usar a grafia antiga. Para dizer que sou velho? Toda a gente sabe que sou e eu também tenho consciência disso!

Com o Acordo Ortográfico, obviamente! Existe, tem 30 anos, esqueçam. O Brasil tem a sua grafia, agora também não é aplicada por toda a gente. Não vejo grande problema nisso. A história dos Acordo Ortográfico, vem sempre com os argumentos económicos. Quando me falam no valor económico da língua, fica doente! O maior valor económico da língua é ser a nossa língua! É o único património que temos. Medir em dólares quanto vale falar português? Não sejamos ridículos!

O seu currículo diz que é jornalista, escritor e gestor. O que é que é para si, a profissão de coração?

Escritor, obviamente! Já não sou gestor. Reformei-me aos 70 anos e não voltarei a ser, como é óbvio. Há muitos anos que não sou jornalista. Portanto, o que eu sou é escritor. E é assim que eu gosto de ser reconhecido pelas pessoas.

Curiosamente, uma coisa interessante, e eu sempre tive esta esperança, hoje em dia sou mais reconhecido como escritor, do que como aquele que fez a coisa da Expo e tal. As pessoas mais velhas não, as de hoje, gente mais nova ou me conhece como escritor ou não me conhece, nem me reconhece e não faz mal nenhum. A gente vive para ser conhecido. Reconhecido, sim! às vezes só pelos seus pares.

Eu acho que hoje em dia eu sou mais reconhecido como escritor, e como intelectual, digamos assim, no sentido mais vasto do termo do que pelas obras físicas em que estive envolvido, designadamente a Expo'98, que é a maior obra profissional da minha vida. Nunca houve nada antes assim, nem haverá depois na minha vida. Mas como escritor, claramente! Desde miúdo que eu queria ser escritor.

O que lhe falta fazer?

[silêncio] Não me falta fazer nada, já. Não me falta fazer nada, nem me apetece já fazer mais nada. Apetece-me escrever, quando me apetece. Agora estou de pousio. Mas escrever sim, isso apetece-me. Tenho diversos projetos que não sei se farei, já. Não sei se farei porque estive muito doente este ano, com um internamento hospitalar muito longo e, portanto, não sei se tenho forças. Como vê tenho ânimo!

Acho eu que ainda tenho ânimo e não estou mal de todo da cabeça, ou pelo menos não estou pior do que já era (risos). Mas, não há nada tenha como projeto que me apeteça fazer. Já fiz a vida. A vida está cumprida. A vida profissional, a vida literária.

Tenho 41 ou 42 livros publicados. Tenho aqui mais uns projetos abertos no computador. Mas não sei se tenho força. Já é uma questão de ter força, força física inclusivamente, mais do que força mental. Porque escrever livros é fisicamente exigente. As pessoas que não escrevem, não sabem. Isto é fisicamente, muito exigente. Este livro, entreguei-o à editora no dia 12 de abril deste ano, e fui internado no hospital a 10 de maio. Quando o acabei, já estava com uma anemia profunda.

Se ficar por aqui, fico bem. Fiz o essencial que tinha que fazer. Depois, obviamente, há sempre ideias e ideias de outros livros. Já não conseguiria estar dois ou três anos a escrever uma biografia. Nem tenho nenhuma personagem que eu gostasse de biografar

Nem a si próprio?

Não! Sobretudo isso, não! "Ai, escreve as tuas memórias". Não. Quem quiser ler a minha obra toda, tem lá as minhas memórias, porque está semeado. Eu sou um escritor que faz muita autorreferência. Refiro muito coisas da minha vida, da minha história, sobretudo da minha infância. E este livro, é isso.

Não tenho assim nada de muito mais extraordinário para escrever. Pode ser que saia qualquer coisa. Tenho que me recompor mais. Ainda estou na ressaca da doença que foi grave, bastante grave mesmo. Lá me consegui erguer, estive 35 dias no hospital, depois vim para casa, em hospitalização domiciliar e estou assim como vê, mas pronto, vou andando e enquanto cá estiver logo se verá.

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