Jerónimo, o líder a quem ninguém cobrou derrotas e Raimundo, o camarada que "vai ser capaz de dar conta do recado"

06 nov, 2022 - 15:46 • Susana Madureira Martins

O ainda líder do PCP sai da liderança do partido, abandona o Parlamento, mas fica nos órgãos de direção nacional. Sobre Paulo Raimundo, o novo secretário-geral que será entronizado dentro de uma semana na conferência nacional, Jerónimo de Sousa garante que "está bem sustentado" pelo Comité Central, apesar da escolha não ter sido unânime. Ficam ainda os avisos sobre o "rolo compressor" da maioria absoluta do PS e farpas à ação futura da CGTP a quem exige "o reforço do movimento sindical unitário"

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A pontualidade é marca do PCP e às 11h00 em ponto deste domingo o responsável pelo gabinete de imprensa do partido, João Lopes - dirigente comunista que faz parte do Comité Central - estava a perguntar com insistência aos jornalistas "podemos começar?". Sim, começou o fim de Jerónimo de Sousa como secretário-geral do partido, 18 anos de liderança que o próprio assumiu como "uma vida".

Jerónimo sai da liderança do PCP e sai também do Parlamento, onde é deputado desde a Assembleia Constituinte de 1975. Segundo o próprio, a atividade parlamentar "não se compadece com as ausências" a que seria obrigado para tratar de um estado de saúde que se vem degradando e que foi notório na campanha eleitoral para as legislativas em que se fez substituir por João Ferreira e João Oliveira.

Nenhum destes dois nomes foi o escolhido pela cúpula do partido para suceder a Jerónimo e Paulo Raimundo surge como uma "surpresa" dentro do próprio PCP, é assumido como um "desconhecido do grande público", mas "está bem sustentado" pelo Comité Central, garante Jerónimo.

Em boa verdade, o secretário-geral cessante assumiu na conferência de imprensa na sede do partido, em Lisboa, que a escolha não foi unânime. "Houve uma ampla convergência", sim, diz Jerónimo de Sousa, para acrescentar logo a seguir que "não quero dizer por unanimidade porque o rigor dos números nesta matéria é importante".

Até que ponto a escolha não foi unânime no Comité Central, Jerónimo não quis dizer. Mas há "um sentimento fortíssimo que esta substituição foi normal e natural onde se verificou uma grande unidade e coesão na direção do partido em relação à solução". Assunto delicado despachado.

A proposta começou a ser trabalhada no secretariado do Comité Central, depois na comissão política e depois numa reunião conjunta dos dois órgãos de cúpula do partido, com a escolha a ser aclamada e saudada de pé durante quatro minutos na reunião dos dirigentes nacionais este sábado.

Desconhece-se quem atirou primeiro o nome de Paulo Raimundo para a mesa de trabalho. "Isso era querer saber demais", responde o líder cessante, mas é notório o quanto Jerónimo de Sousa batalhou por que fosse este o sucessor na liderança do partido.

O ainda secretário-geral comunista fala de Raimundo como "um camarada estudioso, que conhece os problemas, tem tido tarefas de reforço de organização do partido, acompanhando grandes regiões e setores, acompanhando uma atividade unitária", para além de ser "homem sensível, compreende as coisas de forma célere, camarada modesto, ouve muito os outros".

E Raimundo "tem uma garantia", segundo Jerónimo. É que "o órgão que o elege não é o Congresso, nem a conferência [nacional], mas o Comité Central". É a garantia de que "está bem sustentado" e que não lhe serão cobradas pessoalmente eventuais derrotas eleitorais no futuro.

O ainda líder do PCP dá o seu próprio exemplo quando questionado se se sente pessoalmente responsável pelos desaires eleitorais mais recentes. "Temos essa vantagem. As derrotas nunca são de um homem só. Nas horas boas e nas horas más encontramos este coletivo partidário". Se corre mal ninguém cobra, se corre bem a vitória é de todos.

O próximo ciclo eleitoral começa já em setembro de 2023 com as regionais da Madeira e Jerónimo tira pressão ao futuro líder. "Naturalmente, que o meu camarada Raimundo vai participar nas batalhas eleitorais, incluindo na Madeira, por isso mesmo não existem preocupações em relação à sua intervenção pública. Vai ter que se afirmar por si próprio mas sempre com a ajuda dos camaradas".

Ao lado de Jerónimo de Sousa nesta conferência de imprensa estavam os dirigentes nacionais Luís Silva e uma visivelmente emocionada Inês Zuber, que não conseguia esconder o riso perante algumas respostas do líder cessante, que explicou uma e outra vez que não tem mal nenhum Raimundo não ser conhecido.

Ele próprio, conta o ainda secretário-geral, não era conhecido do grande público quando assumiu a liderança e houve alguém que lhe trocou o nome para "Germano" em vez de Jerónimo.

A comunicação social fica com o ónus de dar a conhecer Raimundo, avisa o líder. "Quando os senhores jornalistas querem, puxam para cima ou puxam para baixo e não se pode ser conhecido se naturalmente não aparecer. Quem não aparece, esquece", resume Jerónimo de Sousa.

Raimundo não dará entrevistas esta semana e a Renascença apurou que não irá aparecer antes de ser entronizado pela conferência nacional e pela reunião do Comité Central do próximo fim de semana.

A cúpula comunista protege o futuro líder para já, mantém-no longe dos holofotes, mas quer muito que se saiba que pelas "suas característica", Raimundo "é uma solução segura, corresponde às necessidades do partido neste momento, vai ser capaz de dar conta do recado", resume Jerónimo.

A estratégia do consulado Raimundo, segundo Jerónimo: um PS colado à direita e o toque a rebate do movimento sindical

E qual é a estratégia do partido para o futuro? Primeiro, colar o PS a toda a direita parlamentar. Jerónimo de Sousa fala do "rolo compressor" da maioria absoluta e que os socialistas estão "a conseguir aquilo que sempre desejaram", assumindo que politicamente as relações com António Costa "já não são as mesmas". Mais um prego no caixão da geringonça, ou como o PCP gosta de lhe chamar, da "solução de governo" que vigorou de 2015 a 2019.

Em segundo lugar, o PCP não esconde a preocupação com o futuro do movimento sindical, numa altura em que o Parlamento deixou de ter centralidade com a maioria absoluta e que o partido ficou reduzido a seis deputados.

Jerónimo de Sousa é especialmente sibilino com o "Solidariedade", o sindicato lançado e apoiado pelo Chega, referindo que "é preocupante essa ideia peregrina de criar uma federação sem sindicatos ou uma federação sem trabalhadores. Por lei não pode ser".

A conclusão do líder comunista é que o Governo PS não ajuda a esquerda com a atual política: "a direita fala disso porquê? Porque naturalmente quer conquistar a rua, quer capitalizar o descontentamento profundo que esta política de direita permite, é permissiva".

Mais curioso ainda é o recado implícito que Jerónimo de Sousa deixa à direção da CGTP: "o reforço do movimento sindical unitário consubstanciado na CGTP-Intersindical nacional é um elemento de grande importância para os trabalhadores portugueses e esta vai ser a vantagem".

O recado do secretário geral do PCP a Isabel Camarinha e aos dirigentes comunistas que integram a Intersindical continua e parece ser deixado para memória futura. "O que vai ser o futuro? Como é que se sindicaliza um trabalhador que hoje está num serviço de administração pública e amanhã numa grande superfície? Com todas as dificuldades de organização, de sindicalização é um desafio que a CGTP tem de responder".

Ora, Jerónimo conta com "a inteligência dos trabalhadores portugueses" que "é suficientemente forte para considerar que isto não é sindicalismo". O que o recentemente criado "Solidariedade" quer "é outra coisa", diz o ainda líder comunista.

Fica assim o aviso reiterado à Intersindical: é preciso "trabalho sindical, unidade sindical com a CGTP, com as organizações e associações de classe dos trabalhadores". Desafios da central sindical "num quadro muito exigente, muito difícil".

Avisos que, no fundo, servem não só para a CGTP liderada por Isabel Camarinha, mas para a própria cúpula comunista, que a partir do próximo fim de semana terá Paulo Raimundo como líder.

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