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Ana Gomes não acredita num "PS a governar à esquerda”

06 fev, 2022 - 08:00 • João Carlos Malta

Em entrevista à Renascença, a ex-candidata a Belém alerta para os riscos da maioria absoluta e os cuidados que os socialistas têm de manter nos próximos quatro anos para chegarem “fortes” a 2026. Fala ainda da ascensão do Chega e do papel de Marcelo Rebelo de Sousa.

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A socialista e ex-candidata à Presidência da República, Ana Gomes, não crê ser provável que o PS faça uma governação com políticas de esquerda, apesar de os resultados das legislativas demonstrarem que foram os eleitores ganhos ao Bloco de Esquerda e ao PCP que deram a expressão de maioria absoluta à vitória de António Costa.

“Espero estar errada. Mas apesar desta maioria absoluta ter sido dada pela esquerda, os sinais que posso antever não me levam crer que venhamos a ser governados mais à esquerda”, lamenta.

Concretizando os sinais que lhe fazem perder essa esperança, a ex-eurodeputada aponta “a notícia de que se deixa cair o englobamento das mais-valias no IRS para o escalão dos cidadãos mais ricos”.

“É indicativo de que não se vai governar à esquerda”, concretiza.

E dá ainda o exemplo da “bonomia de certos setores”, que Ana Gomes personifica em José Luis Arnaut, que estão “tão satisfeitos com o que esta maioria pode trazer”. “São indicadores que me deixam inquieta”, concretiza.

A forma como pessoas que não são do espectro socialista − como José Miguel Júdice e Marques Mendes − olharam para a maioria absoluta do PS, leva Ana Gomes a enumerar alguns riscos num cenário político que abre muitas possibilidades aos socialistas.

“Eles sabem que as maiorias absolutas, dependentes de um poder absoluto podem ser extraordinariamente aproveitadas pelos interesses que representam”, alerta.

Por isso, Ana Gomes apela às “tremendas capacidades” de António Costa, que espera “que tenha o discernimento, a força e a coragem para decidir o que mais convém ao país e que tenha capacidade de resistir aos interesses”.

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"Apesar desta maioria absoluta ter sido dada pela esquerda, os sinais que posso antever não me levam crer que venhamos a ser governados mais à esquerda".

Ainda assim, diz saber que, em muitas situações, esta é uma realidade que “está para além da vontade dele” e “dos outros membros do Governo que ele venha a fazer”.

Há formas insidiosas de captura das instituições, e dos mecanismos, num momento em que o país tem uma conjugação extraordinária: há tempo, há estabilidade, há um horizonte de quatro anos”, enumera.

Sem desculpas

Ana Gomes alerta que desta vez o PS não terá espaço para encontrar subterfúgios. “Há oportunidade de fazer reformas de fundo que não foram feitas, porque havia todas as justificações, e agora não há desculpas para que essas reformas não sejam feitas”.

Entre as reformas prioritárias, Ana Gomes aponta a da justiça e a fiscalidade.

“É preciso alguém na pasta que tenha força política, que lhe é dada pelo primeiro-ministro. Se não houver reforma da justiça e ela não tiver os meios de que necessita para se tornar eficaz, nos crimes económicos e fiscais, isso pode voltar-se contra as próprias instituições políticas e o governo”, defende.

Em relação aos próximos quatro nos, e às expetativas sobre a maioria absoluta, Ana Gomes não tem dúvidas de que desta vez “o primeiro-ministro fará o que quiser”.

Pensa que é positivo que Costa tenha dito que “a maioria absoluta não é poder absoluto”, e que queria reconciliar os eleitores com a maioria absoluta − reconhecendo que ela evoca más memórias em Portugal.

Mas a verdade é que António Costa “tem a faca e o queijo na mão”, e num país “que tem instituições de fiscalização fracas” há perigos. “São riscos que obviamente espero que o primeiro-ministro tenha em conta e que o PS tenha em conta, porque tem de haver um PS naturalmente forte depois de 2026”, sublinha.

Há dinheiro

Ana Gomes faz uma comparação do resultado obtido por António Costa com a maioria de Cavaco Silva: há fundos.

“Não há a desculpa de que não há dinheiro. Desta vez vai haver dinheiro. E esse é um dos fatores que me preocupa, porque é aí que temos revelado grande debilidade na fiscalização”, advoga.

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"Eles sabem que as maiorias absolutas, dependentes de um poder absoluto podem ser extraordinariamente aproveitadas pelos interesses que representam".

Por isso, a ex-eurodeputada pede “que haja da parte do primeiro-ministro grande discernimento de fazer acionar a máxima transparência, e facilitar ao máximo o escrutínio que tem de ser feito pelas instituições políticas, mas também pelos media e pelos cidadãos organizados na sociedade civil”.

E o Chega?

Uma outra marca forte das eleições de há uma semana, foi o crescimento meteórico do Chega. A ex-candidata presidencial que defrontou André Ventura nas últimas eleições para Belém, não faz previsões sobre qual será a evolução daquele partido, mas dá a receita em forma de antídoto.

“Estamos perante uma força sem consistência ideológica, oportunista, populista com uma agenda de ódio, e cheia de dissensões e não me admiraria que no Parlamento se vissem essas dissensões”, começa por analisar.

Ana Gomes não tem dúvida de que “o crescimento [do Chega] é proporcional à possibilidades de uma boa governação”.

Por fim, em relação ao Presidente da República, a ex-candidata a Belém diz que o papel de Marcelo “pode ser sempre muito importante”. “Há um poder que ele não perde e que devia administrar judiciosamente, o poder da palavra”, indica.

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"O crescimento [do Chega] é proporcional à possibilidades de uma boa governação"

Ana Gomes diz que o Presidente não vai poder interferir “como eventualmente poderia se o resultado tivesse conduzido a uma solução de bloco central − que era claramente que ele patrocinava”.

No entanto, o que espera é que Marcelo Rebelo de Sousa “pela sua natureza e pela natureza da relação que tem com o primeiro-ministro António Costa” não terá “nenhum interesse em criar tensões”.

“Pode aqui e ali chamar à atenção, usar a palavra, e até pelas conversas com o próprio primeiro-ministro e os recados que manda cá para fora −matéria em que é exímio− mas não antevejo uma relação de acrimonia. Não é isso que os portugueses desejariam, e o Presidente e o primeiro-ministro sabem disso”, remata.

Comentários
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  • Anónimo
    06 fev, 2022 Lisboa 16:56
    Uma mulher politicamente incorreta, sem receio de dizer as verdades. Era a presidente que precisávamos.

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