15 nov, 2024 - 20:48 • Fábio Monteiro
Ricardo Leão, autarca de Loures, criou uma tempestade política ao defender o despejo "sem dó nem piedade" de inquilinos de habitações municipais que tenham participado nos distúrbios que ocorreram na Área Metropolitana de Lisboa, após a morte de Odair Moniz.
Foi um "momento menos feliz", a que Pedro Nuno Santos fechou os olhos. Mas que António Costa não deixou passar em falso: “Quando um dirigente socialista ofende gravemente os valores, a identidade e a cultura do PS, não há calculismo taticista que o possa desvalorizar.”
Tratou-se, porém, de uma tempestade vazia de sentido, tendo em conta especialistas ouvidos pela Renascença.
A lei portuguesa não contempla a possibilidade de despejar inquilinos e familiares, devido à prática de qualquer crime – salvo se o imóvel tiver sido utilizado para perpetrar o delito.
Mónica Martins, especialista em direito imobiliário da Quor Advogados, diz que é “praticamente impossível” despejar alguém em Portugal, a não ser nos cenários e acautelados no Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU).
Na sua experiência profissional, a larga maioria de casos de despejo com que se cruzou estão relacionados com “rendas em atraso”. “Temos de perceber que as rendas estão extremamente elevadas em Portugal, não acompanham o salário médio. E, portanto, as pessoas acabam por não conseguir pagar”, nota.
Como as pessoas “não vão deixar de se alimentar”, deixar de pagar a renda acaba por ser a primeira escolha.
De acordo com o NRAU, um senhorio – Estado, empresa ou particular, é indiferente - pode acionar o “procedimento especial de despejo” em três cenários: 1) caso exista acordo para a cessação do contrato, mas o arrendatário não entregue o imóvel; 2) caso o senhorio, ou o arrendatário, se oponham à renovação do contrato ou decidam terminá-lo, mas o inquilino não abandone o imóvel; 3) caso exista atraso no pagamento das rendas.
No cenário particular de atraso no pagamento de rendas, o senhorio pode cessar o contrato se 1) existir um atraso igual ou superior a três meses ou 2) se, no período de um ano, houver, por mais de quatro vezes, um atraso superior a 8 dias no saldar da renda.
A recomendação dos comunistas foi rejeitada com os(...)
Se nenhuma das infrações acauteladas pelo NRAU ocorrer, os senhorios podem sempre avançar com uma “ação de despejo” – o que implica, na prática, ir para tribunal. Pode acontecer, então, um inquilino ser despejado se tiver utilizado a habitação para perpetrar um delito (“utilização do prédio contrária à lei”) ou por “violação das regras” do condomínio.
Ânia Marques Florença, advogada de contencioso da CCA Law Firm, explica à Renascença que uma ação de despejo se aplica a “situações que podem levantar mais dúvidas sobre o término da relação de arrendamento”. Por comparação, o “procedimento especial de despejo” tem “uma natureza urgente” e só pode ser acionado em caso de infração comprovada.
Numa “ação de despejo”, “a lei não prevê automaticamente que este termo [do contrato] ocorra, só porque esta situação se está a verificar. Exige no fundo que ela seja apreciada pelo tribunal, para que então o contrato se considere terminado e o desfecho se possa efetivar”, explica.
Publicamente, Ricardo Leão, autarca de Loures, escudou a sua posição quanto aos despejos no regulamento da habitação municipal de 2022.
O documento contempla, efetivamente, a possibilidade de despejo, “manter o arrendamento”, se algum elemento do agregado familiar tenha sido alvo de uma “sentença judicial transitada em julgado”.
Todavia, o Novo Regime do Arrendamento Apoiado para Habitação (NRAAH), que define os limites dos regulamentos municipais para a habitação, não refere tal medida.
O NRAAH “deixa muita pouca liberdade aos senhorios deste tipo de arrendamento às matérias que podem regular a nível municipal. Faz com que tudo aquilo que o município procure regular, que vá para além daquilo que foi o poder conferido do legislador, acabe por não ter qualquer aplicabilidade prática”, aponta Ânia Marques Florença.
Com um contrato em vigor, “não é possível a um senhorio, única e exclusivamente porque o seu arrendatário esteve de alguma forma envolvido, ou até mesmo tenha sido condenado com transito em julgado, na prática de um determinado crime, despejá-lo”.
De acordo com a advogada, a única situação próxima disso é quando “o arrendatário tem uma conduta em que coloca em perigo o imóvel que é objeto do contrato de arrendamento, ou os outros habitantes do prédio”.
O Balcão do Arrendatário e do Senhorio (BAS), que, desde fevereiro deste ano, tomou o lugar do Balcão Nacional de Arrendamento (BNA) e do Sistema de Injunção em Matéria do Arrendamento (SIMA), recebeu 2672 pedidos de “procedimento especial de despejo” em 2023, um aumento de 17% relativamente ao ano anterior.
Dos 2672 pedidos analisados pelo BAS, foram emitidos 1072 títulos de desocupação do locado em 2023. A maioria estava relacionado com o incumprimento no pagamento de rendas, mas também havia casos de revogação do contrato de arrendamento, ou denúncia pelo senhorio ou arrendatário.
Conforme a Renascença avançou no início de outubro, Loures tem em curso um plano de regularização de rendas. A autarquia previa, então, despejar 550 famílias de casas de habitação social por falta de pagamento de rendas - que começam nos 4,5€.
Mónica Martins lembra que há muito contratos de arrendamento antigos no país, “onde não se aplica às vezes nem o NRAU nem o RAU dos anos 90”. E que um cidadão que tenha mais de 65 anos ou um grau de deficiência superior a 60% não pode ser nunca despejado – mesmo que entre esteja em incumprimento com o contrato.
“Um inquilino que paga 20 euros de renda dificilmente incumpre tal contrato, mas também não permite que o senhorio consiga melhorar o imóvel e consiga obter um rendimento que seja considerado razoável”, nota.
A Renascença solicitou ao BAS dados relativos a 2024, mas, até ao momento, não obteve resposta.