28 out, 2024 - 07:00 • Fábio Monteiro
Odair Moniz. 43 anos, morreu na madrugada de segunda-feira, no Hospital São Francisco Xavier, após ser baleado por um agente da PSP: até ao momento, esta é a única certeza relativamente ao sucedido no bairro da Cova da Moura, Amadora, há poucos dias.
O resto que se sabe é um relato unilateral - da PSP – e defesas de carácter como forma de contraditório – da família, amigos e conhecidos da vítima.
Em comunicado, na segunda-feira, a PSP avançou a sua versão dos factos: Odair foi intercetado, ao volante de um carro, às 5h43 da manhã, e tentou fugir. Despistou-se, “abalroando viaturas estacionadas”, resistiu à detenção, e tentou agredir os agentes “com recurso a arma branca”.
Então, esgotados “meios e esforços,” um dos agentes (entretanto já constituído arguido, indiciado por homicídio) recorreu ao uso da arma de fogo.
Foi isto que aconteceu? A investigação aberta pelo Ministério Público dirá. Mas uma coisa é certa: este caso teria outros contornos se os agentes tivessem – como já está acautelado na lei, e como a Polícia Marítima começou na semana passada a usar - Câmaras Portáteis de Uso Individual (CPUI), vulgarmente conhecidas por “bodycams”.
No decreto-lei que define a utilização das câmaras portáteis de uso individual pelos agentes policiais, datado já de 2 de janeiro de 2023, lê-se: "A captação e gravação de imagens é obrigatória quando ocorra o uso da força pública sobre qualquer cidadão ou o recurso a quaisquer meios coercivos.”
O processo de implementação das CPUI está, contudo, muito atrasado. Ao ponto de Armando Ferreira, presidente do Sindicato Nacional da Polícia (SINAPOL), dizer que está a “prejudicar” investigações.
“Está a prejudicar exatamente o que se está a passar. Não conseguimos ter um mecanismo que devíamos ter para podermos, de alguma forma, garantir que foi aquilo factualmente que aconteceu. Não temos. Neste momento, temos de nos salvaguardar nos testemunhos e nos relatos dos incidentes que possam acontecer”, afirma.
Ouvido pela Renascença, o presidente do SINAPOL escusou-se a tecer comentários sobre a morte de Odair Moniz, mas aceitou falar sobre o tema das "bodycams".
Por sua vez, a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP) não se quis pronunciar. No entanto, num comunicado emitido na quarta-feira, a mesma associação sublinhou: As "bodycams” “terminariam definitivamente com a especulação generalizada que se verifica acerca do que ocorreu”.
Por esta altura, em Portugal, já deviam estar distribuídas e em uso cinco mil "bodycams" (de 10 mil até 2026), não apenas 112 da Polícia Marítima.
O Governo de António Costa lançou, em abril do ano passado, um concurso público, no valor de 1,48 milhões de euros, para compra da Plataforma Unificada de Segurança de Sistemas de Vídeo, para gerir, entre outros aspetos, a informação recolhida pelas “bodycams”, e avançou com a compra de uma primeira leva de CPUI.
Entretanto, o concurso acabou por ser impugnado duas vezes e está atualmente suspenso. Além disso, o Governo de Luís Montenegro optou por “rever” a quantidade de CPUI a adquirir, não havendo quantidades anunciadas.
À Renascença, José Manuel Anes, ex-responsável do Observatório de Segurança e Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), defende que “é lamentável que a Administração Interna não tenha resolvido este problema há vários anos”.
“A bodycam é realmente um testemunho privilegiada daquilo que acontece numa ação policial. E, nesse sentido também, defende a polícia”, nota.
Na opinião do especialista, vai demorar “muito tempo” até que o imbróglio das bodycams esteja resolvido. “Talvez daqui a cinco anos.”
As "bodycams", admite, seriam úteis para dissipar dúvidas quanto ao aconteceu com Odair Moniz. “Era extremamente fácil ver o que se passou.”
Armando Ferreira, presidente do SINAPOL, tem o mesmo entendimento. As bodycams “são extremamente importantes para se poder fazer uma linha do tempo entre o início de uma situação e o seu fim” e, ao mesmo tempo, “um instrumento precioso para a salvaguarda dos direitos dos cidadãos, mas também dos direitos dos polícias”.
“As bodycams podem esclarecer aquilo que às vezes é impossível de esclarecer, porque elas gravam imagem e gravam som, e ouve-se tudo o que é dito. Ou seja, funcionam como uma pequena caixa negra de um acidente ou de um incidente, neste caso tático-policial”, afirma.
Há mais de uma década que diferentes sindicatos da PSP e GNR defendem o uso de “bodycams”, à imagem do que acontece com outras forças policiais pelo mundo, em particular no Reino Unido e nos Estados Unidos.
O presidente do SINAPOL não vê desvantagem “nenhuma” no uso de bodycams, apesar de assumir que existe alguma “resistência por parte de alguns elementos policiais e de algumas forças vivas da sociedade que entendem que as bodycams violam os princípios de privacidade, e do direito de imagem, e da proteção de dados”.
“Em situações críticas, [as bodycams] vêm esclarecer situações em que muitas vezes ninguém sabe o que aconteceu, e que depois seguem um pouco conforme a convicção de quem está a julgar o caso ou de quem está a analisar o processo. Quando tivermos uma bodycam não há convicção, é aquilo ou não é”, afirma.