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Caso BES

Ricardo Salgado. O dia em que o "Dono Disto Tudo" deixou cair a pele de leopardo

15 out, 2024 - 22:43 • Diogo Camilo

Ricardo Salgado chegou ao primeiro dia de julgamento em passo lento, agarrado à mulher e sem se lembrar de que estava a ser julgado. A defesa chamou-lhe humilhação, lesados chamaram-lhe encenação. À saída, o ex-banqueiro deixou o tribunal pela garagem como já tinha feito noutras ocasiões.

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Debilitado e em silêncio. A chegada de Salgado ao tribunal no início do julgamento BES
Debilitado e em silêncio. A chegada de Salgado ao tribunal no início do julgamento BES

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“O senhor doutor quer estar aqui?” Foi com um tremido “não sei”, sem demonstrar consciência de onde estava ou que fazia, que Ricardo Salgado, o anterior “Dono Disto Tudo”, respondeu à juíza Helena Suzano, dando por terminada a sua participação no julgamento do caso BES, depois de mais de uma década de espera.

Aquele que prometia ser um capítulo da história judicial sobre a queda de um dos maiores impérios económicos - e que somou até ao momento prejuízos de quase 12 mil milhões de euros ao Estado - não demorou mais que uma hora a tornar-se só mais um teste da inimputabilidade da doença de Alzheimer.

O ex-líder do Grupo Espírito Santo chegou ao Campus da Justiça em passo lento, de sapatos sem atacadores, com uma marca no rosto, dificuldade em subir degraus e amparado pelo braço amigo da mulher, Maria João Bastos Salgado, a segurá-lo enquanto enfrentava perguntas de jornalistas e a ira de lesados do BES sem esboçar emoção. Depois de tortuosos cinco minutos de marcha lenta, e à chegada ao edifício A, um dos lesados gritou: “Encenação!”, tendo sido afastado pela polícia para permitir a entrada do ex-banqueiro no Campus.

Encenação ou não, a verdade é que uma entrada mais discreta em tribunal, pela garagem e sem exposição a jornalistas, já havia sido praticada pelo próprio Ricardo Salgado noutras ocasiões. Desta vez, não foi considerada pela sua defesa. Pelo menos à entrada, porque à saída Salgado já saiu pelas traseiras, acompanhado pela mulher.

“O que é que muda? Muda alguma coisa?”, questionou o advogado Francisco Proença de Carvalho, com segundos de diferença em que falou em “salvar a dignidade” do seu cliente, acusado de 62 crimes dos mais de 300 incluídos no caso.

Dentro do tribunal, a juíza deu início aos trabalhos ao identificar os arguidos com as mesmas perguntas para todos: nome, morada, nome dos pais e, a alguns, a profissão.

A defesa de Salgado pediu para que o seu cliente fosse o primeiro e, depois de dizer o seu nome e profissão, o ex-líder do BES conseguiu dizer a cidade onde vivia mas não a rua e confundiu o apelido da mãe por mais do que uma vez. Foi nessa altura que Helena Susano lhe perguntou: “O senhor doutor quer que este julgamento seja feito na sua presença ou sem estar presente?” Foi depois de ter dito que não sabe que o seu advogado pediu a palavra, para dizer que Salgado não tem condições para responder a mais perguntas.

A passagem do “Dono Disto Tudo” pelo julgamento do caso BES/GES fez ecoar a célebre frase que deixou numa comissão parlamentar em 2015: “O leopardo quando morre deixa a sua pele e um homem quando morre deixa a sua reputação”, a que se seguiu outra, de que sabia que os anos seguintes seriam passados a “lutar pela honra da família”.

O rosto mais visível dos lesados, Jorge Novo, mostrou a sua indignação à chegada de outros nomes fortes do processo, como Amílcar Morais Pires e Francisco Machado da Cruz, e chegou mesmo a exaltar os ânimos: “Eu recebi zero, quero ver o dinheiro”, gritou.

No entanto, e apesar de apontar o dedo ao Banco de Portugal, à CMVM e a Diogo Lacerda Machado, o responsável pelas negociações entre reguladores e lesados, “desculpou” Salgado na hora de atirar culpas, referindo que o banqueiro prometeu a “provisão dos lesados” e que agora era hora dos governantes “resolverem o problema”. Estava certo o advogado de Salgado, quando disse à saída do tribunal que “não era unânime” que o ex-banqueiro fosse culpado.

Dos 15 arguidos a título pessoal, notaram-se três ausências no início do julgamento: Isabel Almeida, antiga diretora financeira do banco, e dois elementos da sua equipa, Cláudia Faria e António Soares. No entanto, para a sessão da tarde, apenas cinco desta dúzia resistiram. Além destes, quatro dos arguidos pediram dispensa para o resto das sessões, tal como Salgado, e outros dois - os suíços Creton e Cadosch - pediram para assistir a sessões à distância.

O autocrata, o bombeiro e mais de uma centena de lesados mortos

Num breve resumo do caso, o Ministério Público defendeu a tese de que Ricardo Salgado exerceu o poder no GES como um autocrata e enumerou apenas alguns dos factos na acusação de mais de 4.000 páginas e com oito terabytes de informação, para referir que, “pelo menos desde 2008, houve um constante financiamento do BES não financeiro à custa dos clientes” e que, com isso, o GES se tornou “imune” às crises financeiras ao mesmo tempo que outros grupos - como a Espírito Santo International - estavam insolventes.

Com isto, como explicou Ricardo Sá Fernandes, as pessoas foram levadas a investir naquilo que “pensavam valer ouro, quando afinal valiam nem carvão”. O advogado representava apenas um lesado e as suas sociedades, mas Nuno Silva Vieira chegou para colocar em perspetiva quão longos dez anos de espera por um julgamento podem ser.

Dos 1.300 lesados que representa, 104 morreram nos últimos anos, sem nunca terem visto recuperado o que era deles. Defendeu, por isso, que o foco principal deve ser, não a recuperação de bens para o Estado, mas a reparação das pessoas. Usou de um pouco de filosofia, citando Hannah Arendt, e conclui que “uma justiça que demora 10 anos não é justa”.

Foram várias as situações relatadas pelas defesas de assistentes e lesados, de casais, emigrantes, idosos que foram enganados a investir em títulos do Grupo Espírito Santo sem sequer conhecerem as condições dos produtos que estavam a subscrever. Miguel Matias, que representa uma petrolífera venezuelana lesada em 300 milhões de euros na falência do BES, sentenciou mesmo que “não vale a pena criar falsas ilusões” de que o dinheiro perdido será recuperado.

Do lado dos arguidos, as holdings do GES agora insolventes dizem-se manipuladas por terceiros, o BES em liquidação diz que “em todos os momentos tomou-se a decisão errada” e todos agiram com a informação que tinham.

Uma menção à condição de Ricardo Salgado a meio destas intervenções levou a uma situação caricata: a da defesa de um lesado a pedir a suspensão do processo por Salgado estar incapacitado para compreender o julgamento.

A resposta da defesa do ex-banqueiro chegou na voz de Adriano Squilacce, que insistiu para que seja realizada uma perícia de maneira a avaliar a condição de Alzheimer de Ricardo Salgado, afirmando que o arguido “já não é o Ricardo Salgado do BES” e que o ex-presidente do banco “perdeu capacidade de realizar a sua higiene”.

Para o fim deste primeiro dia ficou o "salvador" do BES - se o tivessem deixado. Ou pelo menos é assim que entende o seu advogado. Para Raúl Soares da Veiga, o nº2 de Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires não só “não foi o incendiário” do Grupo Espírito Santo, não só “não teve nada a ver com a queda do BES”, como "foi mesmo o bombeiro".

“Cumpridora, respeitadora, uma pessoa que não foi posta a soldo”, foram alguns dos elogios da sua defesa em dia de julgamento - além de ter sido “o único a ser condenado a pagar coimas em processos contra-ordenacionais”, ficando ao critério se isso é uma qualidade ou um defeito.

Outro dos argumentos trazidos para a mesa pelo seu advogado, de que Amílcar Morais Pires é inocente dos 25 crimes de que é acusado, é o de que o BES era a sua “galinha dos ovos de ouro” graças a fartos prémios que recebeu ao longo dos anos e que, por isso, seria “absurdo” matá-la.

O primeiro dia do julgamento da maior queda de um banco em Portugal acaba com pelo menos um terço dos arguidos de fora do resto das sessões, uma contagem de 104 pessoas lesadas do BES que morreram nos últimos 10 anos e um pedido de perícia médica para tornar o caso nulo. Já a pele de leopardo do Grupo Espírito Santo caiu em 2014.

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