14 out, 2024 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves
Está tudo meticulosamente organizado. Cada fileira de sacos na prateleira corresponde a uma especiaria vinda diretamente do Médio Oriente. Algumas delas estão à venda por mera sorte. “Vêm do Líbano e chegaram já depois dos ataques das últimas semanas, mas os nossos fornecedores ainda conseguiram enviar", conta Hindi Mesleh.
Basta-nos cruzar a porta desta mercearia no mercado de Arroios, em Lisboa, para percebermos onde estamos: na parede à direita da entrada, está uma bandeira da Palestina; na estante à esquerda, um dos muitos móveis de madeira que mobila a loja, vê-se um autocolante a pedir o reconhecimento do estado palestiniano.
São cerca de trinta metros quadrados recheados de objetos, fotografias e cheiros que levam Hindi de volta à terra onde nasceu, mas que teve de largar há mais de dez anos.
“Levam-me à comida da minha mãe, à minha família... Mas também aos supermercados, às mercearias de lá... Com estas especiarias, penso mesmo nas cidades que agora estão sob ataque."
A história de um casal de palestinianos transferid(...)
As prateleiras estão praticamente cheias com todo o tipo de produtos, que vão desde caixas de um litro do tradicional “tahini” (uma pasta de sementes de sésamo) até frascos de “zataar”, uma mistura de tomilho com outras ervas aromáticas para temperar saladas.
Hindi explica cada um com muito detalhe, como se tivesse uma câmara na mão e fosse fazendo zoom em cada embalagem - são “ossos do ofício”.
“Antes de sair da Palestina, estava a fazer documentários sobre os colonatos e o muro. Queria mostrar a situação que, para mim, era um apartheid. No início, também não havia muitos jornalistas”, recorda.
Hindi Mesleh estudava cinema documental em Ramallah, na Cisjordânia, quando decidiu deixar a Palestina. Foi uma decisão “difícil”, mas não inédita.
Aos 18 anos, Hindi saiu da casa dos pais na aldeia de Ni’lin para estudar arqueologia. Fez as malas e rumou a Jerusalém, mas a entrada na faculdade coincidiu com a construção de mais um muro e este palestiniano acabou por desistir do curso. "Não conseguia passar nos postos de controlo, imagina o que era ficares horas à espera só para ires de Lisboa a Cascais.”
O tempo foi passando, mas Hindi sentia-se “cada vez mais preso”. Por isso, um dia pegou em todo o dinheiro que tinha, fez as malas e apanhou um voo para Bruxelas. Mas também aí a aterragem não foi suave.
“Cheguei lá em maio de 2013 e fiquei três anos e meio. Mas não me consegui integrar. Era muito difícil conseguir os documentos, também o francês era muito difícil. Depois, o tempo... Está sempre frio e escuro. Olha, como o dia de hoje”, comenta, entre risos, enquanto as gotas da chuva descem as janelas desta mercearia, ao largo do mercado de Arroios.
A história da abertura da loja conta-se numa frase: queria organizar um jantar com amigos, não encontrava os ingredientes necessários aos pratos típicos da Palestina e decidiu avançar para uma mercearia por conta própria.
Aqui é muito pesado. Mas quando estás na Palestina, acho que ficas habituado. Estás com a família e amigos e estás menos preocupado
Nos cinco anos que se seguiram, a vida de Hindi girava em torno do negócio: comprou o estabelecimento do lado, juntou um restaurante à mercearia e, em 2022, abriu uma segunda loja, em Cascais. Já estava em velocidade cruzeiro quando foi travado a fundo pelos ataques do Hamas a Israel.
“Estava a dormir quando recebi as primeiras mensagens, a perguntar se estava a ver. Tive de abandonar o trabalho durante uns tempos e a minha sócia tomou conta do negócio. Eu dormia pouco, comia pouco. Só via notícias o dia inteiro, a noite inteira”, recorda.
Um ano depois, Hindi admite que “arranjou problemas em casa, no trabalho e com amigos”, porque a guerra o deixou “sem paciência e mais irritado”. É o pior de quem vê um conflito à distância - e está constantemente preocupado.
“No Instagram, as coisas ainda têm filtro, mas no Telegram não, por exemplo. Aqui é muito pesado. Mas quando estás lá [na Palestina], acho que ficas habituado. Estás com a família e amigos, mas estás menos preocupado”, acredita.
Guerra Hamas - Israel
Os ataques do Hamas em Israel a 7 de outubro fizer(...)
Hindi não perdeu nenhum familiar ou amigo na guerra, mas admite que a guerra o afastou de muitos conhecidos que “não reconheceram o sofrimento da Palestina”, incluindo alguns israelitas que eram clientes da mercearia. Mas este palestiniano prefere desvalorizar esses casos.
“A solidariedade connosco está muito forte, nunca senti tanto apoio. Nunca houve tantas notícias. (...) A comunidade internacional não está a agir (...), mas acho que as pessoas estão a fazer com que não se crie mais um muro à volta da Palestina”, assinala.
A conversa com a Renascença vai acompanhada de um café com cardamomo, servido por um dos empregados da loja de Hindi - alguns deles, originários do Líbano e do Irão e também “muito assustados” com as últimas semanas.
Hindi partilha estas dores e ansiedades, até porque teme que o conflito passe a integrar outras forças.
Tive de abandonar o trabalho durante uns tempos. Dormia pouco, comia pouco - só via notícias todo o dia inteiro e toda a noite
“Agora com o Irão, e se os Estados Unidos entram na guerra, quem nos garante que a Rússia e a China também não vêm? Estou preocupado pelo mundo inteiro”, confessa, enquanto vai entrelaçando os dedos, num misto de ansiedade e tristeza.
Quando lhe perguntamos se preferia que os ataques de 7 de outubro não tivessem acontecido, Hindi prefere “não julgar ninguém, porque já não vivo lá”, mas ressalva que “havia sinais para não ficarmos surpreendidos”. Não há responsáveis, então? "Claro” que há - a comunidade internacional.
“Se a comunidade internacional tivesse sido justa com a Palestina, não tínhamos chegado a este ponto. Criou espaço para este sofrimento, para o que me parece ser um genocídio”, lamenta.
A olhar para o céu completamente tapado, Hindi também vê com dificuldade que o sol volte a raiar em breve na Palestina. Parece-lhe “cada vez mais improvável” que seja possível avançar com a solução dos dois Estados e admite preferir a criação de um só Estado, com direitos e deveres iguais para todos - “tal como fizeram na África do Sul”.
É um futuro indecifrável para Hindi que, por agora, só consegue garantir que, mesmo que pudesse, não queria voltar à Palestina. Em abril do ano passado, poucos meses antes da guerra, voltou a casa por três semanas e saiu desiludido – “havia ainda mais postos de controlo, não consegui ver muitos dos meus amigos e a minha namorada teve de visitar muitos sítios sozinha, porque eu não podia passar”.
Os planos agora passam por “viver um dia de cada vez” – apenas com a certeza de que o vai fazer em Portugal.
“Vou para onde? E vou começar do zero outra vez? É cansativo. Tenho duas gatas cá, tenho uma namorada, tenho uma casa, tenho a família da minha companheira. Tenho quase tudo. O resto? Se calhar, tenho de trabalhar menos para aproveitar mais”.
E nem de propósito - é meio-dia e estão a chegar os primeiros clientes para o almoço. É a nossa deixa.