13 set, 2024 - 07:00 • Cristina Nascimento
“Muitos alunos vão ficar sem aulas.” O cenário pouco animador para este ano letivo que agora começa é traçado por Isabel Flores, especialista em Educação e investigadora do ISCTE.
Esta especialista explica que as medidas pensadas pelo Governo para combater a falta de professores já foram experimentadas noutros países e que tiveram um impacto “residual”.
Nesta entrevista à Renascença, Isabel Flores antevê uma década difícil para a educação, uma fuga de professores do privado para o público e o agravar da desigualdade dentro da escola pública.
O atual governo elaborou várias medidas para combater no imediato a falta de professores nas escolas. Considera que vão ser bem-sucedidas?
Eu acho que vão produzir efeitos muito marginais e residuais neste ano letivo. As medidas que têm mais um carácter de emergência já foram — algumas ou quase todas — experimentadas noutros países e sempre com efeitos muito residuais, muito pequenos e muito incapazes de resolver o problema mesmo no imediato.
Portanto, está em risco de ser cumprida a meta de redução de 90% de alunos sem professores no fim do primeiro período?
A probabilidade disso acontecer é muito baixa. Há dois tipos de falta de professores. Temos a falta de professores porque não há ninguém para ocupar uma vaga permanente no sistema, ou seja, há um professor que se reforma ou que está deslocado por algum motivo e é preciso alguém que, de uma forma permanente, ou pelo menos durante o ano letivo todo ocupe uma vaga e não nos aparece ninguém para ocupar essa vaga. Esse é um tipo de falta que temos já em alguns grupos de recrutamento e em algumas partes do país, mas ainda em números relativamente baixos.
Temos a segunda tipologia de motivos pelos quais os alunos ficam sem aulas, que se prende com faltas temporárias e quase todas por questões de saúde e baixas médicas. Nesta segunda vertente, vamos ter muitas dificuldades efetivamente em cobrir essas pessoas que saem, porque neste momento as reservas de recrutamento são muito, muito, muito escassas. Aliás, as reservas de recrutamento secam em quase todo o país, em quase todos os grupos de recrutamento, no final de setembro, princípio de outubro.
Portanto, qualquer professor que se ausente a partir dessa data muito dificilmente é substituído, com exceção para os professores de educação física, que temos muitíssimos, e o primeiro ciclo e pré-escolar que ainda não estão completamente nestas crises.
Vamos ter muitas dificuldades efetivamente em cobrir essas pessoas que saem, porque neste momento as reservas de recrutamento são muito, muito, muito escassas. Aliás, as reservas de recrutamento secam em quase todo o país, em quase todos os grupos de recrutamento, no final de setembro, princípio de outubro."
Como é que perspetiva o ano letivo que agora começa, então?
Antevejo uma enorme dificuldade em substituir professores que estão doentes e temos 10% de professores com doenças de longa duração, com doenças acima de 30 dias, e como estes 10% faltam, em média, 120 dias por ano, precisam mesmo de ser substituídos. Depois temos outros tantos com faltas ali entre os 10 e os 30 dias e que deveriam ser substituídos também.
Isso significa muitos alunos, sem aulas...
Eu penso que sim, que há muitos alunos que vão continuar sem muitas aulas.
Considerou que um mês sem aulas é muito tempo, mas o Governo definiu como critério de escola carenciada de professores aquelas em que os alunos tenham ficado sem aulas durantes 60 dias, ou seja, dois meses. Parece-lhe bem este critério?
Nós temos que estabelecer critérios, mas eu acho que é um critério muito lasso e é um critério que não contribui para o objetivo dos tais 90% que eles [Ministério da Educação] estabelecem. Percebo que é um critério de priorização e, sim, esses são casos mais graves do que quando os professores só faltam um mês, mas é um critério lasso.
De qualquer forma, as medidas que estão previstas para essas escolas consideradas de risco ou mais problemáticas vão surtir muito pouco efeito, de qualquer maneira. Portanto, o critério aqui deixa de ser pouco relevante.
O que nós sabemos de outros países é que, por exemplo, a questão dos professores que já estão reformados voltarem ao sistema não funciona. Portanto, será muito marginal o número de pessoas que vão voltar ao sistema e temos que pensar que são pessoas que têm 68, 69, 70 anos. São pessoas que já saíram do sistema e com reformas relativamente razoáveis e, portanto, o dinheiro não é um aspeto muito apelativo, até porque temos de ver que o incentivo “dinheiro” não funciona da mesma maneira para todas as pessoas.
O que pode, de facto acontecer, e onde acho que podemos ter alguns ganhos nestas políticas e os professores que se iam reformar ao longo deste ano e podem aguentar até ao fim do ano letivo. Aí eu acho que teremos alguns professores que vão fazer isso, mas não são muitos, serão muito poucos, uma dezena, duas dezenas, se o benefício de dinheiro for apenas para as escolas que foram consideradas escolas de risco.
Portanto, a medida das reformas pouco ou nada vai dar a não ser nesta pequena margem das pessoas que teriam condições para se reformar longo do ano e porventura vão ter a bondade de aguentar até junho ou julho, quando acaba o ano letivo.
De resto, todas as outras medidas eu acho que não se vai atrair estudantes de doutoramento, nem investigadores doutorados. Os estudantes de doutoramento estão absolutamente concentrados nas suas bolsas, não têm qualquer experiência de ensino e, na sua grande maioria, não têm vontade de ser professores do ensino básico e secundário, porque senão tinham optado por outra carreira logo mais atrás ou tinham ido fazer um mestrado em educação, em vez de fazer um doutoramento.
Os atuais doutorandos e investigadores, temos um emprego destas pessoas a quase 100%, portanto, as pessoas estão completamente integradas nas universidades ou nas empresas.
Também a medida de atrair professores de outras nacionalidades é uma medida não de curto prazo, porque as qualificações têm de ser reconhecidas e tem que haver profissionalismo na língua, ou seja, até haverá pessoas que podiam ter condições de ensinar, mas não falam português a um nível adequado para estarem no ensino e, portanto, mais uma vez será um número muito marginal.
É tudo medidas muito, muito, muito marginais e que vão ter um impacto de “pesca à linha”, não vão resolver o problema maior que é os professores que estão doentes e que são muitos. Se pensarmos só nas ausências de longa duração, são os tais 10%, estamos a falar de 12 a 13 mil profissionais.
Antevejo uma enorme dificuldade em substituir professores que estão doentes e temos 10% de professores com doenças de longa duração, com doenças acima de 30 dias, e como estes 10% faltam, em média, 120 dias por ano, precisam mesmo de ser substituídos. Depois temos outros tantos com faltas ali entre os 10 e os 30 dias e que deveriam ser substituídos também."
Quando é que diria que o problema da falta de professores começou a atingir as escolas?
Eu diria que o sistema de ensino começou a sentir falta de professores para substituir desde a pandemia, 2019/2020. Em termos da outra parte, da necessidade mais estrutural, penso que é um fenómeno bastante novo... O ano passado um bocadinho, este ano mais e vai crescer bastante mais na próxima década. Em Portugal é um fenómeno recente, nos outros países, na Europa temos este problema há muitos anos, há várias décadas. Em Inglaterra têm este problema desde o final dos anos 80, princípio da década de 90, outros países na Europa vão tendo este problema também há várias décadas.
E quais é que são os impactos de tantos anos de um sistema de ensino a sofrer com falta de professores?
Temos o efeito óbvio das faltas de aprendizagem. Alunos que não têm aulas vão aprender menos e vão aprender menos naquele ano e nos anos subsequentes. Além da aprendizagem, vão perder hábitos de estudo, vão ficar mais indisciplinados. Dentro das próprias escolas em que há professores que faltam e miúdos que andam por ali, sem aulas, o ambiente social e emocional deteriora-se entre os alunos e entre os professores, pois uns que têm que cobrir outros e tudo isto aumenta a frustração e piora o ambiente de trabalho.
Vai também afetar essencialmente as escolas em meios socialmente mais difíceis, porque o que vai acontecer é que, à medida que vão abrindo vagas em escolas socialmente mais fáceis em alunos, com aluno com menos dificuldades e menos problemas, os professores tendem a concorrer para esses lugares que entretanto vão abrir, abandonando os outros lugares que depois não tem ninguém para lá colocar. Isto vai ser um fenómeno gravíssimo.
Temos mesmo que repensar a escola e até temos que pensar a necessidade da quantidade de professores que temos na escola e, porventura, diversificar a população de adultos nas escolas.
Há aqui um trabalho muito grande de reflexão e de desenho de políticas que este ou qualquer outro Governo que venha a seguir vai ter que levar muito a sério. Não é com estas medidas de pensos rápidos mal colados que se vai resolver. Isto é um problema estrutural noutros países há muitos anos e que não se resolve. Quase todas as medidas que têm sido adotadas nos outros países têm tido sucesso muito pouco expressivo, não tem resolvido o problema.
Alunos que não têm aulas vão aprender menos e vão aprender menos naquele ano e nos anos subsequentes. Além da aprendizagem, vão perder hábitos de estudo, vão ficar mais indisciplinados."
Este cenário vai levar a uma fuga maior de alunos para o ensino privado?
Essa comparação entre o privado e o público para Portugal é uma comparação muito difícil. Eu costumo dizer que as primeiras escolas que vão ficar sem professores são os colégios privados, porque, em Portugal, a tabela de pagamento aos professores de colégios privados está abaixo penso que cerca de 20% das tabelas públicas.
Os professores que atualmente lecionam no ensino privado à medida que abrem vagas no ensino público vão transitar para o ensino público, porque pagam mais e têm um tipo de horários e de responsabilidades mais confinados do que no ensino privado.
Portanto, será isso a que vamos assistir, a não ser que os colégios privados realmente aumentem as bases salariais que estão a pagar aos seus professores. A consequência disso é aumentar propinas e, a consequência disso, é se calhar perderem alunos ou haver uma classe média em Portugal que até têm os filhos na privada e que deixam de poder ter.
Então, na escola pública, considera que vai haver escolas de primeira e de segunda?
Sim, vai agravar-se essa tendência. Nós passamos de uma situação de excesso de professores para uma situação de falta de professores, numa década. Até há relativamente pouco tempo tínhamos 50, 60, 70 mil professores em reservas de recrutamento que não eram colocados e que estavam sempre à espera de ser colocados. Ninguém entrava porque os quadros estavam cheios, pois houve uma explosão de contratação de professores entre a década de 1980 e meados da década de 1990. Agora estas pessoas estão a começar a reformar-se e, portanto, nós passamos de uma situação de grande excesso de professores ou de pessoas formadas para ser professores para uma falta de professores. Antes, as pessoas concorriam e onde ficavam colocadas iam aulas e não interessava se a escola era num meio mais favorecido, se era uma escola com melhor ambiente. Agora estão a abrir vagas para as quais os professores podem candidatar-se e concorrem a sítios que eles preferem e, portanto, vai haver, penso eu, um abandono progressivo das escolas onde as pessoas gostam menos de estar.
Há pouco falava sobre a necessidade de repensar os professores que temos na escola e diversificar a população de adultos nas escolas. O que é que defende?
A minha visão sobre essa matéria é a seguinte: os professores, principalmente, no terceiro ciclo e secundário, são profissionais altamente competentes e com uma formação científica sólida numa área específica, por exemplo, história ou biologia, que depois dão as suas aulas sobre biologia. Mas além disto, estes mesmos professores, especializados num conteúdo temático, fazem o curso de formação cívica ou projetos transversais que não estão diretamente ligados à componente científica ou são diretores de turma ou têm outras funções dentro das escolas. Temos que começar a racionalizar a utilização destas pessoas e ter pessoas com outros perfis para apoiar os alunos a crescer em áreas que não são científicas.
Isto é uma ideia, há outras ideias que nós podemos mobilizar. Por exemplo, porque é que não contratamos técnicos especializados em comportamento, dinamizadores sociais ou culturais para fazer para fazer esse tipo de trabalho?
Desta forma, esses professores ficam com mais horas para lecionar mais aulas, aliviaria alguma coisa aos professores que podem dedicar-se aquilo onde eles realmente têm uma vantagem competitiva e onde são realmente imprescindíveis.
Aproxima-se uma década difícil nas escolas?
Sim, antevejo que vai ser uma década muito difícil nas escolas, se quer que lhe diga honestamente. Não vai haver milagres, não vai haver, de repente, um “boom” de pessoas a irem estudar para serem professores.
Aqui há 10, 20 ou 30 anos uma pessoa ia estudar matemática e muito provavelmente ia ser professor de matemática. Hoje em dia as pessoas estudam matemática e não pensam sequer em ser professores de matemática, porque as ofertas para esse tipo de competências são imensas. Quem diz matemática, diz outras competências, incluindo a história, a filosofia e as línguas.
Portanto, não vai haver milagres se não houver políticas muito sérias e que enfrentem este problema de uma forma muito séria, porque, de facto, no virar da década, nós passamos a ter zero professores para substituir reformas, exceção dos de educação física, que temos muitos.
Então, pode-se dizer que o problema da falta de professores está mais relacionado com o mercado laboral do que propriamente a desvalorização social ou salarial dos professores?
Tem essencialmente a ver com a própria evolução do mercado de trabalho. Este problema põe-se em países que não desvalorizam nada a profissão. A Finlândia está com o mesmo problema. A Finlândia, a Suécia, esses países que idolatramos na educação, têm exatamente o mesmo problema. Isto tem a ver com um jovem que vai escolher um caminho de vida entre todos aqueles que estão disponíveis nesse momento e há muita competição nos mercados de trabalho.
Nós também exageramos um bocadinho na questão da desvalorização da profissão. Ela está muito desvalorizada entre os próprios professores e a própria estrutura educativa. Quando analisamos os dados que vêm da população, a população aprecia os professores. Eles [os professores] é que não se apreciam a si próprios. Temos dados muito interessantes sobre isso no PISA.
E a questão salarial?
Em Portugal todos ganhamos pouco para o atual custo de vida e tivemos todos uma desvalorização do nosso salário real muito grande nos últimos 10 a 20 anos. Os professores não foram exceção, todos estamos nesse barco da desvalorização salarial. Mas, em termos comparativos com as restantes profissões para tipos de qualificação igual, os professores não ganham mal, até ganham, em termos de administração pública, acima do resto dos técnicos superiores, que precisam de uma qualificação igual. E mesmo quando olhamos em comparação com a maior parte dos salários médios dos privados, os professores não ganham mal. Ao princípio, ganham um bocadinho acima, mas com o progredir da carreira ganham muitíssimo melhor.