12 set, 2024 - 22:36 • Salomé Esteves
A grande proporção de mulheres jovens no Ministério Público, especialmente abaixo dos 30 anos, resulta em “agravamento de constrangimentos” nos trabalhos da instituição, disse a Procuradora-geral da República, em audiência no Parlamento, esta quarta-feira.
Para Lucília Gago, esta questão está ao lado de outros "constrangimento” de igual gravidade, como a insuficiência de magistrados e a falta de funcionários judiciais.
O problema, então, é que há demasiadas mulheres no Ministério Público? E mulheres que podem engravidar? A Renascença fez as contas e olhou para os dados, para outras estatísticas, e para os direitos das mães e grávidas trabalhadoras.
Segundo as últimas listas de antiguidade do Ministério Público, de 31 de dezembro de 2023, há 28 mulheres a trabalhar no Ministério Público com menos de 30 anos, em comparação com os quatro homens da mesma faixa etária. Esta informação está em linha com a afirmação de Lucília Gago, que apontou que cerca de 90% dos funcionários abaixo dos 30 seriam mulheres.
Para a procuradora, estas 28 mulheres e as “situações de gravidez, de gravidez de risco, de baixa para assistência a filhos menores, gozo de licença parental, ausência para efeitos de amamentação” são “objetivamente” razões para que os processos do Ministério Público se atrasem, mesmo considerando que elas representam 1,6% do universo de 1.721 funcionários.
Mas apenas sete trabalham no mesmo local – o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, onde as jovens funcionárias integram um universo de 38 trabalhadores. Todas as restantes estão espalhadas pelo país e têm postos de trabalho distintos.
Que dados podem ajudar a completar a imagem destas 28 jovens trabalhadoras do Ministério Público, da sua propensão para engravidar na mesma faixa etária, da vida das mães trabalhadoras em Portugal, ou da lei e apoios sociais à maternidade e parentalidade? Comecemos pelo mais simples.
De acordo com dados no Instituto Nacional de Estatística (INE), a idade média para uma mulher ter filhos tem aumentado nos últimos anos. De facto, em 2023, a idade média de uma mãe ao primeiro filho fixou-se nos 30,2, enquanto a idade média da mesma mãe ao nascimento de qualquer um dos seus filhos (primeiro ou subsequentes) sobe para os 32 anos.
Dados do INE de 2020 revelam que 93,4% das mulheres com menos de 29 anos não tinham filhos. O Inquérito à Fecundidade concluiu também que, em 2019, mais de 40% das portuguesas em idade fértil não tinham filhos.
É importante, então, considerar quantas mulheres no Ministério Público estão em idade fértil e podem, de acordo com a procuradora-geral da República, causar constrangimentos ao seu normal funcionamento. Segundo o mesmo inquérito do INE, há uma tendência em adiar a decisão sobre ter filhos pelo menos cinco anos.
Das 1.721 pessoas na lista de antiguidade do Ministério Público de dezembro de 2023, 663 são mulheres em idade fértil, que foi delimitada nos 49 anos de idade pela Organização Mundial de Saúde. E destas, 233 têm menos de 40 anos.
No espetro sobre decisões sobre maternidade e constituição de família, podemos ainda ter em conta que algumas destas 663 mulheres podem nunca ter sido mães ou sequer ter a intenção de ter filhos. O Inquérito à Fecundidade de 2020 aponta que serão cerca de 10% as mulheres abaixo dos 49 anos que encaixam neste padrão.
Dos homens empregados pelo Ministério Público, todos estão em idade fértil — a fertilidade dos homens também tende a diminuir com a idade. Se se contabilizar a idade da andropausa aos 45 anos, de acordo com a Urology Care Foundation, há 131 homens no Ministério Público que podem ser pais.
Mesmo que estes funcionários possam não enfrentar gravidezes de risco ou necessitar de tempo de amamentação, também têm direito a gozar licenças parentais ou baixas de acompanhamento a filhos, entre outro tipo de direitos.
Fora da idade fértil estão as mulheres que assumem os cargos mais altos do Ministério Público. Todas as magistradas na lista de antiguidade – e também a procuradora-geral da República e a procuradora-geral regional de Lisboa — têm mais de 53 anos.
Ao contrário das funcionárias, que compõem a maioria das pessoas empregadas pelo Ministério Público, estas mulheres que assumem cargos de responsabilidade estão em minoria em comparação com os seus pares: há 10 mulheres em 23 magistrados.
Lucília Gago foi amplamente criticada nas redes sociais. O Movimento Democrático das Mulheres, por exemplo, também se pronunciou sobre as suas declarações, sublinhando o caráter “sexista” e “idadista”.
Sandra Benfica, representante do movimento, lembrou, na Antena 1, que “há direitos conquistados e é tempo de reconhecer o trabalho das mulheres”.
Ainda que seja pouco provável que todas as funcionárias com menos de 30 anos que trabalham no Ministério Público engravidassem e tivessem gravidezes completas no espaço de um ano, cada uma delas estaria a exercer um direito fundamental.
Neste campo, a legislação portuguesa é muito clara: os direitos da trabalhadora grávida estão contemplados na lei. Além das licenças de maternidade e parentalidade (Portugal é um dos raros casos em que os pais podem partilhar o tempo), uma mulher que esteja grávida ou que tenha dado à luz há pouco tempo tem benefícios adicionais que se adequam à sua condição, como a dispensa de trabalho noturno ou de horas extraordinárias, entre outros. A lei também contempla licenças caso a mulher grávida perca o bebé ou se trate de uma adoção.
Os dados revelam que as mães portuguesas continuam a trabalhar. Na verdade, informação da OCDE de 2021 revela que Portugal é o segundo país do grupo com uma taxa de emprego materno mais elevada. Cerca de 85% das trabalhadoras portuguesas com um ou mais filhos abaixo dos 14 anos estão empregadas e perto de 80% tem um trabalho a tempo inteiro.
As percentagens mantêm-se caso a trabalhadora seja mãe solteira (80,4%) ou ambos os membros do casal estejam empregados (86,5%). Todos estes valores estão acima da média da União Europeia e da OCDE.
Na verdade, a percentagem de mães trabalhadoras tem crescido nos últimos anos. Entre 2014, quando a percentagem voltou a crescer após a crise financeira internacional, e 2021 a proporção de mãos empregadas com filhos menores de 14 anos passou de 75,7% para 85,5%.
Esta percentagem é mais acentuada quanto mais alta for a formação da mãe. Mais de 94% das trabalhadoras que tenham, ao mesmo tempo, uma criança com menos de 14 anos e um curso superior estão, também, empregadas.
Em Portugal é tecnicamente, mas não absolutamente, ilegal despedir uma mulher grávida. Isto só pode acontecer depois de um parecer favorável da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) ou por decisão de um tribunal.
Caso o parecer seja positivo, tanto para mulheres grávidas, puérperas ou lactantes, como para homens que estejam a gozar a licença parental, a pessoa pode ser dispensada. Segundo a lei laboral, o despedimento de uma pessoa em qualquer destes casos é ilegal se for provado como discriminatório.
De acordo com a última informação disponível, de 2022, citada pelo Jornal de Notícias, nesse ano, 1400 mulheres grávidas ou a amamentar foram dispensadas por não-renovação do seu contrato de trabalho e oito homens foram dispensados durante a licença de parentalidade.
Mesmo no melhor cenário, em que a mãe trabalhadora permaneça no seu local de trabalho e usufrua dos benefícios sociais associados à gravidez e à maternidade, há ainda uma questão adicional.
“Temos de ser mães como se não fossemos profissionais e temos que ser profissionais como se não fossemos mães”
As mulheres que se tornem mães em Portugal não têm alterações significativas nos rendimentos, enquanto os pais podem ter um aumento de 15% do salário após a parentalidade. As conclusões são de uma investigação do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP).
O estudo também concluiu que tanto as mulheres inquiridas (63%) como homens (73%) tiveram algum tipo de despromoção ou descida de nível depois de ter um filho.
Mas os desafios não terminam por aqui. Os resultados do estudo MERIT – MothER Income InequaliTy demonstram que as mulheres portuguesas assumem a grande parte das responsabilidades familiares e que, por isso, a sua progressão na carreira é condicionada.
Uma das inquiridas refletiu sobre a sua experiência: “Temos de ser mães como se não fossemos profissionais e temos que ser profissionais como se não fossemos mães”.