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Reportagem

​Do amor de uma vida à “relação tóxica”. Docentes abandonam carreira e agudizam falta de professores nas escolas

10 set, 2024 - 07:00 • Miguel Marques Ribeiro

A Renascença ouviu o testemunho de dois professores que deixaram recentemente de dar aulas. São apenas dois exemplos entre os 14 500 que deixaram a carreira para trás nos últimos seis anos. A sua recuperação para o ensino, argumenta a FENPROF, deve ser o "foco central" das políticas do governo para combater a falta de professores.

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Docentes abandonam carreira e agudizam falta de professores nas escolas
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Luís Miguel Cravo compara o processo a uma metamorfose. “Foi doloroso, como uma crisálida”. Em setembro de 2023, este professor de História a residir no Porto pediu a exoneração para se dedicar em exclusivo ao seu próprio negócio, um gabinete de aulas privadas.

Passavam apenas dois anos depois de ter alcançado o vínculo em Quadro de Zona Pedagógica, um passo há muito desejado para alguém que tinha andado 25 anos a saltar de escola em escola e de contrato em contrato.

“Pedir a exoneração é a mesma coisa que pedir o divórcio ou acabares uma relação com alguém que amas muito, mas sabes que está a ser tóxica para ti e portanto, se és sereno, se és uma pessoa sã e sensata, tem de ser, isto tem que acabar. A minha saúde mental estava acima de tudo”, explica o antigo professor de 53 anos.

Agora trabalha a tempo inteiro num gabinete de aulas privadas com o seu nome, uma atividade que já desenvolvia há vários anos, mas de forma parcial. E o projeto está a correr bem: “Já tenho outro gabinete por minha conta. Tenho outra pessoa a trabalhar para mim, porque de facto a escola paga-te mesmo muito mal”, evidencia.

Concursos que tratam os professores como números

Um pouco mais a norte, também no distrito do Porto, uma outra antiga professora prepara-se para arrancar em breve com uma nova empresa. Rita Fogageiro está a acabar de montar uma loja de roupa na terra onde nasceu e reside: Leça da Palmeira, no concelho de Matosinhos. A boutique onde vai vender vestuário para várias idades e roupa para a casa, deverá inaugurar nas próximas semanas, com o seu nome no letreiro.

No caso de Rita, a professora de Matemática, com 43 anos recusou uma colocação no Algarve a cerca de 500 quilómetros de casa, no concurso deste verão. Sentiu-se traída pela vinculação dinâmica, introduzida no ano passado ainda pelo anterior Governo e que chama de “falsa vinculação”.

Os professores foram chamados a realizar um vínculo extraordinário 2023, mas em troca ficaram à mercê, este ano, de serem colocadas em qualquer ponto do país.

Isto porque os cerca de oito mil professores que entraram nos quadros através da vinculação dinâmica tiveram que concorrer a todo o país.

“Para mim, o que é pior mesmo é fazerem os concursos como se fossemos números”, critica. “Nós somos uma família, temos filhos e os nossos filhos também têm direito a educação com estabilidade familiar”.

Chega de tanta desvalorização, chega de não dar valor, chega de não nos ouvirem. Ao fim de tantos anos a lutar, o 'basta' viu a luz do dia - Rita Fogageiro

No seu caso, ficar próxima do marido e do filho sobrepôs-se a tudo o resto, o que acabou por determinar a saída de uma profissão que tinha escolhido por vocação: “Nunca me passou pela cabeça fazer outra coisa se não dar aulas. E fiz todos os sacrifícios que podia para estar no ensino e a trabalhar numa escola pública. Agora, ao fim de 17 anos, voltar a sentir a dor da saudade? A dor de estar deslocada? Não posso”, conclui.

A criação do próprio negócio, não é algo que a assuste, garante. “Foi um passo interior”, que funcionou ao mesmo tempo como grito de revolta: “Chega de tanta desvalorização, chega de não dar valor, chega de não nos ouvirem. Ao fim de tantos anos a lutar, o 'basta' viu a luz do dia. Chega porque por muito que eu ame dar aulas a educação em Portugal faz-me mal”.

A recuperação dos 14.500 professores que abandonaram a escola deve ser o "foco central"

Francisco Gonçalves, da FENPROF, sublinha que a falta de professores é “um problema sério” para o país e que tenderá a agravar-se nos próximos anos. Isto numa altura em que a federação sindical avançou que se as aulas tivessem começado no início de setembro haveria 120 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina e em que o ministro da Educação admitiu que o próximo ano letivo vai arrancar com milhares de alunos sem aulas.

Para este contexto, tem contribuindo de forma significativa o número de novos professores reformados que este ano “vai ficar muito próximo dos 4 mil ou até acima” desse patamar. Mas Francisco Gonçalves não esquece a relevância dos professores, ainda em idade ativa, que abandonam o sistema educativo.

Nos últimos seis anos, segundo as contas feitas pela Direção Geral da Administração Escolar (DGAE), esse número andará à volta dos 14 500 docentes. Trata-se assim, argumenta o o secretário-geral adjunto da federação sindical dos professores de um problema “estrutural” que tem recebido “respostas conjunturais”.

Só se resolve de uma maneira, oferecendo, digamos, mais do que se tem oferecido - Francisco Gonçalves (FENPROF)

Para Francisco Gonçalves a “recuperação desses 14.500 professores, deve ser o foco central de todas as medidas que o governo pretenda fazer” para combater a falta de professores, problema que motivou a promulgação do pacote "+Aulas +Sucesso".

Nesse documento, não há uma referência clara a medidas direcionadas para este público-alvo. Em resposta por escrito à Renascença, o ministério da Educação esclarece que o decreto-lei aprovado no final de Agosto "só inclui as matérias que dependiam de enquadramento legal. Neste caso, a criação de incentivos à mobilidade, a criação de um mecanismo de mobilidade intercarreiras, a recuperação do tempo de serviço, a desburocratização da profissão e, naturalmente, a revisão do estatuto da carreira docente serão os incentivos para este regresso de docentes profissionalizados".

Serão estas medidas suficiente? Francisco Gonçalves defende que “isso só se resolve de uma maneira, oferecendo, digamos, mais do que se tem oferecido”. Ou seja, a fórmula passa por “melhorar as condições da carreira”, começando por combater a precariedade.

A escola “perdeu quase todas as suas características” nos últimos 20 anos

Não há dedos que cheguem a Luís Miguel Cravo para contar o número de escolas em que já deu aulas. Foram “mais de trinta”, certamente, assegura. Foram muitos anos dedicados a uma profissão que escolhida por “vocação”. “Esse foi o drama da minha vida”, recorda, porque o amor pela escola “não foi correspondido”.

De tal forma que os cinco dedos de uma mão talvez não sejam suficientes para enunciar todas as críticas que tem a fazer à forma como o sistema educativo está a ser gerido em Portugal.

O desencanto começou a partir do momento em que notou “que aquilo que eu estava a fazer não interessava a ninguém, a não ser aos alunos”.

A escola deixou de ser elevador social porque não passa conhecimento - Luís Miguel Cravo

A escola “perdeu quase todas as suas características” nos últimos 20 anos e tornou-se “um centro de atividades lúdicas”. “A cultura humanista morreu na escola”, aponta, porque o “papel do conhecimento foi preterido e foi desprezado”.

Como professor, “eu estou na escola, para formar cidadãos e torná- los seres críticos, inconformistas e interventivos”, argumenta, concluindo que “a escola deixou de ser elevador social porque não passa conhecimento”.

“Nas escolas públicas é flagrante. O que interessa não é dar aulas, é fazer cada vez mais joguinhos na sala de aula e atividades lúdicas”, refere o antigo professor de História.

Uma situação que, garante, piorou drasticamente, desde a pandemia de Covid-19, com a “transição digital”.

Escolas paralelas ocupam o espaço da escola pública

Assim, o “tremendo” excesso de burocracia, a pressão que sentiu de pais e de colegas para baixar os níveis de exigência, a juntar à desvalorização da escola e do papel do professor, bem como aquilo que ele chama a “infantilização dos alunos”, foram as principais razões para o afastamento da profissão, mas o fator financeiro também contou.

Com cerca de 30 alunos no seu gabinete, Luís Miguel Cravo chega a faturar mensalmente cinco vezes mais do que receberia na escola, como professor.

Até porque a escola pública, diz com convicção, ao não ser capaz de cumprir o papel que lhe está destinado, permitiu que começasse a florescer cada vez mais o negócio das aulas privadas. Há “filas de pais abastados a pedir às escolas paralelas para receberem os filhos porque acham que a escola não está a oferecer o que devia”, garante.

Há um sabor agridoce entre a paz (...) e a tristeza - Rita Fogageiro

Este antigo professor de História admite, no entanto, que a decisão de deixar a sala de aula lhe “custou” e que um eventual regresso não está totalmente excluído.

Uma mistura de sentimentos também sentida por Rita Fogageiro. “É um misto. É a tranquilidade de ficar em casa, mas a frustração de não poder fazer aquilo que realmente amo e com que me identifico que é dar aulas. E, portanto, há um sabor agridoce entre a paz de não sair mais de ao pé dos meus e a tristeza de nunca mais entrar numa sala de aula, que era o que me preenchia”, resume a antiga professora de matemática.

[Notícia atualizada às 15h01 com respostas do ministério da Educação a perguntas da Renascença]

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  • Ana
    14 set, 2024 Portimão 17:28
    Muitos dos professores que dizem dar aulas por vocação, conseguem destacamentos no PNA e em outros organismos para não dar aulas e apesar da lei que referia que esses professores voltariam este ano às escolas, tal não se verificou... Outro grave problema são as «doenças imaginárias» que, na realidade, são apenas uma forma de ludibriar o estado e agravar a falta de professores. Os pais e explicadores(colegas da mesma escola) não ajudam minimamente, pressionam os professores, porque a única coisa que interessa é a classificação. Não consigo entender como pais com ordenados baixos colocam os filhos em várias explicações e rejeitam os apoios que a escola oferece. Anda muita gente a fugir ao fisco! Quem abandonou a profissão, nem a ganhar o dobro voltaria....Terá que ser a tecnologia a «substituir» professores, porque os mais jovens preferem emigrar a ter que aturar alunos, pais e colegas.
  • Cristina Nunes
    10 set, 2024 Mem Martins 21:43
    Venham as auditorias às escolas para saberem onde andam os professores que fazem de tudo para não darem aulas e estão nas escolas. Autonomia dos diretores levam a que estes decidam e decidem mal. Alegam certos prof. os que dão suporte a que a diretora Fátima Morais e seus adjuntos se mantenham no poder, tal como o Carlos Garcia e presidente do conselho geral que não dá aulas, dizendo haver projetos mas não saem do digital e do papel. É assim Portugal. Um exemplo é a matemática lá na escola Mestre domingos saraiva onde a prof Filomena Correio, Vitor Silva, Paulo Portela e Alice fazem a gestão do insucesso desta disciplina para perpetuar o projetos Mestre 7 a envolver estes prof e não terem turmas com testes para ver e preparar os alunos para exame. Havendo sucesso já nâo se justificaria o projeto. Numa turma de MAC, matemática aplicada às ciências sociais só um aluno da turma teve 13 valores no exame nacional. Justifica-se o ordenado do pro. Paulo Portela que foi para o Qualifica (ensino dos adultos) e dá montes de aplicação em casa. Os jornalistas desconhecem a realidade da violência e indisciplina nas escolas com alunos sempre colados aos telemóveis e a dormir nas aulas, alunos que não se calam, pais que batem nos professores, estes que têm de pagar a advogados do seu bolso para se defenderem dos processos disciplinares instaurados pela diretora que é prof da primária assim como a vice-diretora, ambas da primária e à frente de uma escola secundária. Isto entende-se?

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