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Estado da Nação

"Nenhum empresário responsável põe o seu dinheiro num país em que os próprios cidadãos não acreditam"

17 jul, 2024 - 07:00 • José Pedro Frazão

Em dia de debate sobre o Estado da Nação, o presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos alerta para as deficiências da democracia portuguesa que, na sua opinião, podem afetar o investimento estrangeiro em Portugal. Crescimento económico, qualidade da democracia e situação demográfica são as três grandes preocupações atuais de Gonçalo Saraiva Matias.

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A Fundação Francisco Manuel dos Santos prepara dois estudos para 2025 sobre o recrutamento do pessoal político em Portugal. A revelação é feita por Gonçalo Saraiva Matias que lidera a Fundação que mais tem estudado e debatido a sociedade portuguesa.

Em entrevista à Renascença, a propósito do debate do Estado da Nação, Matias lembra que os inquéritos são evidentes em relação à degradação da qualidade da democracia e mostra-se ainda preocupado com a situação demográfica do país, com os baixos salários dos jovens e com a necessidade de crescimento económico.

Quais são os temas que, na sua perspetiva, marcam o Estado da Nação?

Na Fundação temos avaliado os grandes desafios do país e eles, felizmente ou infelizmente, acabam por ser um pouco constantes, não variam de ano para ano. Pensamos até que é importante dar-lhes atenção de forma estrutural, que não devemos estar permanentemente a mudar as prioridades.

Um dos aspetos, talvez o principal que nos preocupa e ao qual temos dedicado muita atenção, é o aspeto demográfico. Portugal continua a enfrentar uma situação demográfica preocupante. Na semana passada lançámos um retrato da PORDATA sobre a população portuguesa e é verdade que no último ano Portugal cresceu em população. Portugal tem hoje uma população mais elevada do que alguma vez teve com 10,6 milhões de pessoas. Somos mais hoje do que alguma vez fomos.

Mas isto não nos deve contentar porque não é suficiente, devido às projeções populacionais, por exemplo, sobre o envelhecimento. Os números também mostram que Portugal é o segundo país mais envelhecido da Europa, o quarto país mais envelhecido do mundo. E não obstante o aumento da esperança de vida em cerca de 7 anos, em qualquer caso, isso leva a que, nas nossas projeções, Portugal possa vir a perder 10 a 15% da sua população nos próximos 20 anos, mesmo com este aumento populacional exclusivamente com base na imigração.

Só há 2 formas de combater o envelhecimento da população. Uma delas é pela via da natalidade, que é difícil e demora muito tempo a produzir efeitos. A outra é pela via da imigração e essa tem produzido efeitos imediatos, como temos visto.

Tem-se referido a um 'medo infundado' da sociedade em relação à imigração. A sociedade portuguesa está a fazer o debate certo sobre o tema?

Há sempre um trabalho de sensibilização a fazer. Há um mito de que há uma relação entre imigração e criminalidade. Esse mito vai sendo alimentado por muita gente que fala sobre o tema, mas é mesmo um mito. Se olharmos para os números, essa realidade não existe. Duplicámos a nossa população imigrante nos últimos 20 anos e os crimes praticados por estrangeiros têm diminuído. Agora, é evidente que pode haver na população uma perceção de insegurança e nós não podemos ignorar isso.

Corremos o risco de deixar abandonada a outra via da natalidade? Ou ela está visível em outras medidas, como, por exemplo, sobre a capacidade de retenção de jovens na sociedade portuguesa?

Não há dúvida que há hoje um outro problema. Não há só a questão da imigração, mas há também a questão da emigração jovem. A saída dos jovens do país mostra números preocupantes. Têm saído muitos jovens do país que depois revela uma espécie de défice de qualificações, porque apostámos nas últimas décadas na qualificação dos portugueses.

Se olharmos para os últimos 50 anos, um dos aspetos em que Portugal mais evoluiu foi nas qualificações da sua população e dos seus jovens. Hoje os nossos jovens estão acima da média europeia na frequência do ensino secundário e do ensino superior.

Temos uma população jovem muito qualificada, mais qualificada que a média europeia, mas com salários abaixo ou muito abaixo da média europeia. A média do salário de um jovem em Portugal está abaixo dos 1000 euros. Isso significa que o convite a sair é enorme.

Apostar na retenção dos jovens, apostar no regresso dos jovens é absolutamente indispensável. O esforço por parte do Estado tem várias dimensões. Na dimensão fiscal, tributária, há que criar condições para reduzir a carga fiscal para que os jovens possam ficar cá. Há uma dimensão de habitação que é fundamental e estas medidas de alívio da tributação são importantes.

Há ainda uma dimensão que tem a ver com a burocracia, com a facilidade ou dificuldade que é viver em Portugal. Muitos jovens hoje têm consciência de que noutros países têm uma vida mais facilitada, menos burocrática e isso também os leva a poder sair e procurar esses países.

Tudo isto é um trabalho que está do lado do Estado, mas há também um trabalho que tem que ser feito pela sociedade civil. Não podemos pôr apenas nas mãos do Estado a responsabilidade de resolver este este drama nacional.

O que é que a sociedade civil pode fazer?

Há aqui um aspeto muito importante que tem a ver justamente com o crescimento económico. Se não criarmos condições de crescimento económico - e Portugal teve nos últimos 20 anos uma situação de praticamente estagnação - se não criarmos condições para a dinamização e competitividade das nossas empresas, para criar condições de exportação, não vamos ter condições para reter os nossos jovens e para atrair outro talento que pode não ser português e pode querer vir para Portugal.

Outra preocupação que tem sublinhado diz respeito à qualidade da democracia. Em que termos?

A qualidade da democracia parece-me essencial para tudo o resto, ou seja, ninguém quer viver, investir e trabalhar num país cuja democracia não tenha qualidade. Por qualidade da democracia, entendemos temas relativos à corrupção, à ética na política, à confiança dos portugueses nas instituições, mas também à participação política, à polarização, à qualidade e fundamentação das decisões. Está ligada até à qualidade das pessoas que estão na política, à confiança que depositamos em quem está na política.

Isto é tudo muito importante na construção de um sistema político transparente, democrático, sólido e que transmita confiança às pessoas. Em vários inquéritos internacionais, Portugal não tem estado no topo dos países considerados de democracias de qualidade. Há em Portugal uma convicção generalizada de que as nossas instituições estão sujeitas ou são permeáveis à corrupção. São permeáveis a práticas condenáveis.

Se olharmos para os inquéritos, por exemplo, para o Eurobarómetro, vamos ver que os portugueses têm em média menos confiança nas suas instituições políticas e judiciárias do que outros cidadãos europeus.

Não devemos também menosprezar o impacto que isso tem na atração de investimento estrangeiro. É evidente que um empresário estrangeiro, quando decide investir em Portugal, vai olhar para estes dados. Vai perceber como é que os portugueses olham para as suas instituições. Vai perceber como é que os empresários portugueses percecionam, por exemplo, os custos de contexto, a confiança que têm na justiça, na administração pública, nos procedimentos.

Não sejamos ingénuos. Não há nenhum empresário responsável e competente que vá pôr o seu dinheiro num país onde os próprios cidadãos não acreditam nesse país, onde os próprios cidadãos têm dificuldade em investir o seu dinheiro.

Nós lançámos dois estudos, há cerca de dois anos, em que propúnhamos um conjunto de medidas muito concretas. Algumas delas estão a começar a aparecer, mas ainda não foram implementadas. Estão a começar a ser anunciadas como, por exemplo, a regulamentação do lobby que causou em Portugal imenso dano nos últimos tempos.

Estamos a fazer dois estudos que lançaremos em breve sobre recrutamento de pessoal político. Isto é, quem são os deputados e como é que eles são recrutados, quem são os ministros e secretários de Estado e como é que eles são recrutados? Não quero 'levantar ainda o véu' desses estudos.

Quando é que estarão prontos?

Em princípio, no próximo ano. Vamos tentar perceber como é que os partidos chegam às pessoas, a que pessoas é que chegam e como é que conseguem ou não chegar a pessoas que podem valorizar as funções políticas.

Sente que a comunidade política, em termos alargados, está aberta a considerar algumas dessas propostas?

Não tenho dúvida. Tenho sentido essa recetividade. É evidente que o nosso trabalho é um trabalho de políticas públicas, de identificação, de estudo e de recomendação de políticas públicas. O nosso trabalho, em momento algum, entra na política ideológica ou partidária

Mas as políticas públicas precisam de alguns consensos. Vê sinais desses consensos para aplicar algumas das políticas que são propostas pela Fundação?

Não nos cabe - como Fundação - gerar esses consensos. Acho que os consensos são mais fáceis se a informação tiver qualidade, se tiver fundamento, se for estudada e é precisamente isso que nós fazemos. Nós partimos de dados. É muito mais fácil um consenso quando ele parte de algo sólido, que tem dados na base, que tem ciência na base, do que partir de algo que é pura e simplesmente ideológico, que nasce de uma determinada tendência e que depois logo ali polariza e torna muito mais difícil o consenso.

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