31 out, 2023 - 16:00 • Salomé Esteves , Daniela Espírito Santo
A transição digital da Organização das Nações Unidas está a chegar à ajuda humanitária. Há 20 anos, quando Lambert Hogenhout começou a trabalhar nas Nações Unidas, o trabalho de reconhecimento das causas e dos conflitos era feito no local. Hoje, a tecnologia e a análise de dados permitem que a ONU compreenda uma situação e atue sobre muito mais rapidamente.
Mas, em situações como a que agora decorre na Faixa de Gaza, em que o conflito ainda está a evoluir ou é muito recente, é preciso ter toda a informação necessária antes de tecnologias avançadas, como a inteligência ou o blockchain poderem ser utilizadas.
Lambert Hogenhout lidera os Dados, Análise e Tecnologias Emergentes no Departamento de Tecnologias de Informação das Nações Unidas. Durante o Data Makers Fest, na Alfândega do Porto, a Renascença conversou com aquele que é o representante sobre a transição digital da ONU, o lado tecnológico da ajuda humanitária, a educação para a tecnologia e a utilização ética da inteligência artificial e dos dados.
As Nações Unidas sempre olharam para os grandes problemas do mundo. E, infelizmente, estes grandes problemas são problemas complexos. São problemas perversos. Questões como pobreza ou alterações climáticas não são analisadas facilmente. São problemas intricados que têm muitos componentes. O que tentamos fazer com a tecnologia é usá-la para nos ajudar a analisar melhor estes problemas para que possamos encontrar as soluções mais eficazes.
Cada vez mais pessoas no mundo têm acesso a tecnologia, mesmo que tenham apenas um smartphone. Isso já é um ótimo avanço. Mas, claro, muitas pessoas podem não ter. Penso que os dados nos podem ajudar a monitorizar o que está a acontecer no mundo. Podemos monitorizar melhor a meteorologia, colheitas, agricultura... o que está a acontecer às pessoas no mundo. Estamos muito mais informados agora para fazer isso.
Se me perguntassem há dez anos “conseguimos analisá-los com dados?” ou “podemos usar tecnologia para resolver isto?”... Eu teria respondido: “Não sei, porque são problemas demasiado complexos para tecnologia”. Mas, hoje em dia, há muitos desenvolvimentos e muito mais dados disponíveis. Temos muito mais poder computacional. Os chips estão a tornar-se cada vez mais poderosos. E temos melhor software e melhores algoritmos. A inteligência artificial é, obviamente, uma grande, grande parte de tudo isto.
Com a combinação destes três aspetos – melhores dados, computadores mais rápidos e algoritmos de inteligência artificial -, temos uma verdadeira oportunidade para melhor entender estes problemas complexos.
Criámos. Construímos sistemas de análise e sistemas de inteligência artificial. Por exemplo: quando enviamos camiões para entregar comida, usamos sistemas de inteligência artificial para planear os trajetos. Já usamos tecnologias como o blockchain para prestar apoio financeiro a pessoas em campos de refugiados, já que esta é uma maneira muito mais eficiente de transferir pequenas quantias de dinheiro, sem recorrer a sistemas bancários ou dinheiro físico.
Para operações humanitárias, em geral, é muito importante perceber a situação corretamente para que possamos saber onde a ajuda é mais necessária e que restrições podem ser aplicadas nas nossas operações.
Para operações humanitárias, em geral, é muito importante perceber a situação corretamente para que possamos saber onde a ajuda é mais necessária e que restrições podem ser aplicadas nas nossas operações. Precisamos de saber se as ruas estão circuláveis ou não. Precisamos de saber que tipo de danos foram causados em edifícios e que necessidades é que as pessoas têm.
Desde que comecei a trabalhar na ONU, há 20 anos, houve muito progresso. Costumávamos ter de ir pessoalmente fazer uma avaliação para ver o tipo de danos causados, onde as pessoas estavam e o que precisávamos de fazer. Costumávamos enviar pessoas aos locais para descobrir essa informação. Hoje em dia, as próprias pessoas publicam mensagens e imagens nas redes sociais que podemos usar para ter uma ideia imediata da situação, o que nos tem ajudado muito. E, depois, obviamente, também recolhemos dados a partir de imagens de satélite. Todos estes desenvolvimentos tecnológicos tornaram-nos muito mais eficientes e rápidos.
Esta situação ainda está a desenvolver-se e não saberia dizer que tecnologia poderíamos usar neste momento, além de todos os sistemas típicos que costumamos utilizar em qualquer situação humanitária.
Toda a tecnologia tem vantagens e desvantagens. Com a disseminação da Internet e das redes sociais é fantástico que pessoas de todo o mundo se possam conectar entre elas, informar-se mutuamente, conversar, etc. Mas, infelizmente, isto também possibilita que informação errada se espalhe muito facilmente. Em vez de existirem sistemas eletrónicos de monitorização ou afins, o que precisamos mesmo é que as pessoas desenvolvam um filtro e que não aceitem imediatamente o que leem online, que verifiquem que “de onde é que isto vem” ou “isto é, de facto verdade”.
As pessoas mais jovens precisam de desenvolver essa sensibilidade.
Sim, sim.
Há diferentes tipos de informação que temos de proteger. Obviamente, às vezes há informação que é crítica nas operações que não seria bom que saísse.
O que me interessa muito é a informação pessoal porque, com a quantidade e a distância a que a informação viaja, incluindo a nossa informação pessoal e a capacidade computacional aumentada dos sistemas de IA – que conseguem processar toda a informação que encontram - há um risco verdadeiro de a nossa informação ser usada de maneira que não estamos à espera ou de que não fazemos ideia.
Penso que é por causa disso que temos de ter respeito enquanto recolhemos e processamos dados. Nas Nações Unidas adotamos alguns princípios de proteção de dados e de privacidade, mas também de inteligência artificial ética. E usar dados de modo responsável é a base de tudo isso.
Estamos, de facto. Interessa-me fazer as pessoas perceber que podem usar as suas capacidades e competências em análise de dados e inteligência artificial para o bem. E isso é uma responsabilidade enorme. Na ONU temos uma conferência anual chamada “IA para o bem”, em Genebra. E há milhares de pessoas que se juntam para partilhar exemplos de como estão a utilizar a inteligência artificial para o bem e para discutir oportunidades. Essa é apenas uma das maneiras que fazemos isso.
Penso que a Europa tem estado na vanguarda no uso de tecnologia moderna, incluindo dados e inteligência artificial, de uma maneira saudável para a sociedade.
A Europa desenvolveu o RGPD (Regulamento Geral de Proteção de Dados), a lei para a privacidade dos dados, que tem sido um exemplo pelo mundo inteiro de como uma regulamentação do género pode ser feita.
Neste momento, estão a discutir a Lei da Inteligência Artificial e a tentar encontrar um equilíbrio entre o que a IA permite, o que é uma vantagem e o que devíamos prevenir. Têm uma abordagem baseada no risco, portanto olham para várias utilizações disponíveis da IA.
Também há um equilíbrio difícil entre quem é responsável. São as pessoas que constroem os modelos base para a IA? Ou são as pessoas que usam esses modelos para fazer uma tarefa específica? É um pouco de ambos e é preciso encontrar esse equilíbrio.
Lei da Inteligência Artificial da UE
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Temos os nossos próprios princípios e cada organização deve fazê-lo, porque os princípios que defendemos para a proteção dos dados, no contexto da inteligência artificial, devem alinhar-se com os valores da organização. Por isso é que é difícil que uma regulamentação seja global, porque é sobre cultura, e a cultura é diferente em cada região e em cada país.
Sim, é verdade, esse é o desafio. O aspeto global dos dados é definitivamente um desafio e as leis também estão a tentar lidar com isso.
Algumas das regulamentações sobre privacidade de dados têm um alcance extraterritorial. Por exemplo, o RGPD diz que se estás a recolher dados sobre cidadãos europeus, independentemente de onde estiveres, de onde estiverem os teus servidores, a tua aplicação, ou a tua empresa, tens de respeitar as regras. Portanto, sim, as pessoas estão a tentar perceber tudo isso. É um desafio.
É definitivamente um desafio conseguir acompanhar todos os desenvolvimentos. Há uma história que eu gosto de contar: durante a vida dos meus avós, eles assistiram a quatro grandes inovações. Primeiro, a eletricidade chegou à aldeia deles. Depois vieram os carros. Depois foi o telefone e, finalmente, eles tiveram uma televisão. Mas, entre cada um destes desafios, eles tiveram entre 10 e 15 anos para tentar percebê-los e acostumar-se. Quando é que era apropriado ir à casa de alguém ou telefonar? Qual era o protocolo? O que era saudável? E eles tinham 10 a 15 anos para perceber isso.
Agora, temos cerca de 10 dias antes da tecnologia seguinte sair. Por isso, penso que, para a sociedade em geral, é definitivamente difícil adotar uma tecnologia de uma forma sensata. Este é um dos grandes desafios para esta nova geração. Sim, é muito entusiasmante ter toda esta tecnologia, mas também pode ser esgotante.
A inteligência artificial tem estado a desenvolver-se e, com os seus vários usos, ainda há-de crescer até a um ponto em que seja universal na sociedade. Então, temos de ter a certeza de que a adotamos com sensatez e ética. Depois, há toda uma série de efeitos secundários, como um efeito multiplicador, em que a inteligência artificial beneficia a investigação científica na medicina, na agricultura, e em muitas outras áreas que vão acelerar.
Estou, estou sim. Estou um pouco preocupado, mas estou entusiasmado.