26 jun, 2023 - 08:00 • João Carlos Malta
Há um ano, o cirurgião plástico que já esteve ligado ao FC Porto, Fernando Póvoas, foi surpreendido com uma primeira publicação em que uma fotografia sua estava associada “a chás e gotas para emagrecer”. A partir daí, uma espécie de rolo compressor de burlas passou a usar a sua imagem e ele nunca mais conseguiu libertar-se.
“Já existiram 118 fotografias minhas para vender produtos e continuo a receber chamadas de pessoas a dizer que já compraram dois frascos e não fez efeito nenhum. Perguntam se estão a tomar bem ou não os medicamentos”, conta.
Esta situação é uma bola de neve que, no caso de Fernando Póvoas, até já passou fronteiras e a imagem dele é também utilizada para o público espanhol. “Estou a passar por vigarista, como se estivesse a enganar as pessoas e não tenho nada a ver com isto”, lamenta.
"Já existiram 118 fotografias minhas para vender produtos e continuo a receber chamadas de pessoas a dizer que já compraram dois frascos e não fez efeito nenhum", Fernando Póvoas, médico cirurgião.
Na semana passada, este tipo de esquemas voltou a ser notícia com o envolvimento do ex-presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, que se tornou numa figura pública durante a pandemia − quando todos os dias entrava pela casa dos portugueses com explicações sobre a Covid-19.
A imagem deste médico, tal como a de Fernando Póvoas, foi utilizada para a venda de um produto de emagrecimento. Neste caso prometia a perda de 10 quilos em duas semanas.
Póvoas já tentou de tudo para parar os criminosos. Fez queixas à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, mas até ao momento não houve resultados. Afirma que nem sequer o chamaram para depor. “Pensava que seria simples chegar a eles, uma vez que as pessoas ligam e há uma transportadora a fazer chegar os produtos a casa das pessoas”, diz.
A verdade é que desde junho do ano passado não raras vezes recebe chamadas dos pacientes a perguntar se devem ou não comprar os produtos que prometem resultados imediatos na perda de peso.
“Isto tem um grande impacto na minha vida pessoal e profissional. Fico triste porque as pessoas telefonam para a clínica a dizer que gastaram dinheiro em vão, numa coisa que não lhes fez nada, como se fosse eu o culpado”, afirma.
Mas este tipo de esquemas não é recente, nem se cinge apenas a médicos. Políticos, apresentadores de televisão e desportistas são também usados indevidamente para fins comerciais.
A polícia explica que, neste tipo de burla, a mens(...)
Por exemplo, o ex-ministro das Finanças e Governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, aparece nesta publicação a alegadamente “assumir um papel de liderança no lançamento de uma plataforma de negociação de criptomoedas para ajudar famílias de classe média a gerar rendimentos extra como parte de uma nova iniciativa de ajuda económica do Governo”.
Mas o mesmo tipo de situação pode ser personificada por Cristiano Ronaldo ou o falecido Alexandre Soares dos Santos de modo a atrair pessoas para investimentos com retornos fabulosos.
Também Catarina Furtado tem sido alvo destes criminosos nos últimos sete anos. “Tem sido recorrente”, sinaliza. Os ataques, diz, “não se têm profissionalizado”, mas “têm-se aprimorado” através de uma maior manipulação de fotografias que usam programas de edição ou vídeos.
Se anteriormente, as publicações falsas eram para perder peso, agora, no seu caso, viraram-se para os produtos de cosmética e até para medicamentos para a diabetes.
Numa imagem aparece cheia de rugas e na fotografia seguinte surge já com a pele da cara lisa e esticada. “Dizem que é resultado do creme que querem vender”, diz.
“Usam imagens alteradas e textos com erros de português, são redes internacionais que têm pessoas em Portugal que recebem dinheiro, mas que as empresas abrem e fecham no mesmo dia”, relata a apresentadora da RTP.
“As pessoas dizem-me que compraram o produto para a diabetes ou aquele produto para emagrecer e foram parar ao hospital, porque se sentiram mal. Não faço ideia que produtos são estes e aquilo que me revolta é esta ingenuidade [das pessoas]", Catarina Furtado, apresentadora de televisão.”
Também ela já apresentou queixa à PJ e, através da advogada, fez chegar um dossiê com toda a informação que compilou. Até foi ouvida duas vezes. Mas sem resultados.
“Na última vez, foi-me aconselhado que, de facto, não haveria muito a fazer porque são redes internacionais e empresas que abrem e fecham. Não conseguem ter um rasto”, resume.
A verdade, garante, é que há pessoas que continuam a cair nesses esquemas. Catarina Furtado diz que são sobretudo mulheres e de todas as idades.
Há situações que a deixam boquiaberta pela inverosimilhança. “Há uma publicação que diz que em 15 dias perdi 70 quilos. O que é impressionante, de facto, é como é que as pessoas caem nisto”, pasma. Ela que aparece semanalmente a apresentar um programa na televisão.
Suspeitos exigiam pagamentos às vítimas, sob ameaç(...)
“Faz-me pensar na vulnerabilidade das pessoas e no desespero que sentem para emagrecer ou rejuvenescer”, sublinha, mas também “nos problemas de literacia digital”.
Catarina Furtado promete não desistir de tentar pôr cobro a estas “aldrabices” para que não se repitam situações como as que já lhe chegaram relatadas. “Dizem-me que compraram o produto para a diabetes ou aquele produto para emagrecer e foram parar ao hospital, porque se sentiram mal. Juntei isso ao processo. Não faço ideia que produtos são estes e aquilo que me revolta é esta ingenuidade”, enfatiza.
A Associação de Defesa dos Consumidores, a Deco, também está preocupada com esta realidade. A jurista Maria João Ribeiro diz que o foco destes burlões são as técnicas para emagrecimentos miraculosos, ou soluções revolucionárias para problemas de saúde. As bitcoins são um método mais recente. A especialista revela que ainda não recebem muitas queixas dos burlados.
"Temos o crime de utilização da imagem da figura público, de burla ao consumidor e uma prática comercial desleal", Maria João Ribeiro, jurista da Deco.
Contudo, identifica vários crimes que são cometidos neste esquema. Primeiro, a utilização ilícita de uma fotografia da figura pública que “dá pena de prisão e pena de multa”. “A prisão pode ir até a um ano. Já a pena de multa pode ir até 240 dias e, se tiver um fim comercial, o caso pode inclusivamente ser agravado”, pormenoriza.
Depois, relativamente ao consumidor, “temos uma prática comercial desleal e enganosa”. “Prometem efeitos milagrosos que não acontecem, portanto, leva a pensar que existe um fim que efetivamente não vai acontecer”.
A jurista alerta que se a vítima fez um “contrato à distância” na internet tem 14 dias para o cancelar.
As publicações com erros de português ou utilizando português do Brasil também devem ser sinais de alerta para fraude. A especialista pede cuidado no preenchimento de formulários e no fornecimento de dados bancários.
Maria João Ribeiro apela para que as pessoas optem por métodos de pagamento seguros e sugere que procurem informação sobre o vendedor ou as empresas. Devem também assegurar que possuem livros de reclamações.
A mesma jurista aconselha “a fazer ‘print’ de tudo, desde a publicidade, às informações, aos comprovativos de pagamento”. Mas, muitas vezes, é complicado chegar à origem do esquema. “Agora o problema é quando essas empresas, por exemplo, não têm sede em Portugal”, explica.
Com milhares de pessoas a trabalhar à distância, a(...)
“São produtos que nem sequer são fabricados na Europa e, muitas vezes, nem respeitam as regras de segurança da própria Europa. É um dos problemas das vendas online”, declara a jurista da Deco.
Maria João suspeita que o reduzido número de queixas às autoridades, acerca destas situações, porque “as pessoas acabam por se conformar dependendo dos valores em causa”.
O apresentador Jorge Gabriel também já foi usado como “isco” para este tipo de burla. “Na primeira ocasião em que tal me ocorreu, ainda reagi deixando avisos nas minhas redes sociais de que alguém estava a usar a minha imagem para a associar a uma marca”, lembra.
Mas depois “foi ocorrendo em tantas circunstâncias” que “acabei por desistir de chamar à atenção”.
Jorge Gabriel acha que a burla e fraude se deve aos incautos “que se deixam cair por detrás destas fraudes”, porque, garante, “basta clicar, basta entrar [nas páginas] para se perceber imediatamente que não há uma associação clara à figura pública”.
“As pessoas também têm de procurar ser um bocadinho mais cautelosas naquilo que lhes aparece nas redes sociais como sendo uma notícia ou como sendo algo muito aliciante”, pede.
Jorge Gabriel está pouco confiante em que se chegue a apanhar estes burlões, porque “o que me disseram vários especialistas, é que este também é um método para ganhar credibilidade entre hackers”.
"Na primeira ocasião em que tal me ocorreu, ainda reagi deixando avisos nas minhas redes sociais (...) Acabei por desistir de chamar a atenção porque são incautos os que se deixam cair por detrás destas fraudes", Jorge Gabriel, apresentador de televisão.
“Serve para que quem faz, quem produz estas fraudes, ganhe nome dentro do meio digital. Não para ganhar credibilidade, mas para ganhar crédito junto daqueles que promovem este tipo de atividades”, detalha.
Muitas vezes este tipo burla divide-se em passos sucessivos. Começa por um anúncio numa rede social para ganhar a atenção das potenciais vítimas. Depois, a vítima é reencaminhada para uma página com “fake news” sobre um famoso e um falso produto ou investimento.
Há ainda recurso a vídeos promocionais que tornam muito apelativa a compra do produto, que depois são reencaminhados para uma página onde terão de fazer o pagamento. Podem ainda haver telefonemas às vítimas para pedir mais dinheiro.
O médico e epidemiologista Ricardo Mexia, que na semana passada foi vítima desta situação, foi alertado por uma prima que lhe “perguntou quanto é que custava o medicamento” e “se eu os representava”.
No início, não estava a perceber o que se estava a passar, até que ela lhe reencaminhou uma publicidade que lhe tinha aparecido no Instagram.
“Tratava-se de um medicamento para emagrecimento, mas obviamente, ao qual sou totalmente alheio. Já denunciei a situação às autoridades competentes e também a Ordem dos Médicos. A minha perspetiva é a de avisar as pessoas para que não caiam neste esquema que é uma fraude”, denuncia.
"Sei que não é inédito e que não serie o último. Mas isto merece-me duas reflexões: todas estas questões carecem de maior regulação e é importante melhorar a literacia das pessoas", Ricardo Mexia, médico.
“Isto é um atentado ao meu bom nome e à minha dignidade profissional”, diz, irritado, uma vez que um médico não pode fazer publicidade a medicamentos.
A situação pela qual passou levou-o a refletir que “estas questões carecem de maior regulação”. “Ou seja, as publicidades nas redes sociais têm de ser mais escrutinadas e é importante nós melhorarmos a literacia digital das pessoas”, remata.
O "phishing" é o nome dado ao esquema fraudulento (...)