02 jun, 2023 - 08:00 • João Cunha
Em apenas um ano, Vila Nova de Milfontes mudou. Bastante. A comunidade imigrante já é praticamente metade de toda a população residente.
"Já é gente a mais”, diz à Renascença o presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Milfontes, Francisco Lampreia, acrescentando que “o Estado já não está a garantir qualquer processo de integração, mas sim de acolhimento”.
“Se eles viessem numa quantidade que fosse fácil de gerir, em termos de integração, não haveria grande problema. Mas quando se passa de uma quota superior a 50% da população, isso vai ser difícil. Vai provocar choques, mais cedo ou mais tarde. Já os está a provocar."
Na rua principal da vila, onde se concentrava o comércio e restauração tradicionais, nota-se, cada vez mais, a presença dessa grande comunidade imigrante. Um pequeno hotel é agora uma mesquita da comunidade muçulmana. Um antigo pronto-a-vestir transformou-se numa loja de artigos eletrónicos, que trata também de transferências de dinheiro e de documentos com vista ao processo de legalização. E um dos principais restaurantes de outrora é agora uma espécie de camarata, onde residem dezenas de imigrantes. A toda a hora, há um vaivém frenético e ruidoso de carrinhos de supermercado a passar, de um lado para o outro, carregados de produtos para reforçar o "stock" das lojas e supermercados da comunidade imigrante.
Há um ano, só ao final da tarde se viam alguns dos trabalhadores imigrantes, regressados das estufas e campos agrícolas. Agora, durante todo o dia, dezenas deles, sem trabalho, percorrem as ruas de Vila Nova de Milfontes.
O concelho de Odemira está habituado a lidar com imigrantes. Primeiro, russos, ucranianos, romenos e búlgaros, oriundos de uma cultura de origem europeia, muito semelhante à nossa, concentrados sobretudo em São Teotónio. Mas desde há uns anos que os imigrantes que chegam à costa alentejana vêm da Índia, do Bangladesh ou do Nepal. No início, vieram para trabalhar na agricultura intensiva. Agora, devido ao excesso de mão-de-obra, esperam apenas pela legalização que lhes abrirá portas a outros países europeus. Muitos nem sequer procuram emprego.
Alguns dos que passam parte do dia quase “à deriva”, pelas ruas de Milfontes vestem o “panjabi”, a túnica comprida que os cobre quase até aos pés. E muitos usam na cabeça um “tupi”, um pequeno chapéu, muitas vezes feito de renda, típico do subcontinente indiano. A rua só fica mais vazia às horas das orações diárias cumpridas pelos muçulmanos.
Francisco Lampreia passou centenas de atestados de residência que abriram caminho á legalização destes imigrantes. Para o autarca, a questão é simples. “O que temos aqui é um negócio de importação e exploração de pessoas, que querem vir para a Europa à procura de uma vida melhor”. E esse negócio, sublinha, “é controlado por máfias, que ganham muito dinheiro com a vinda de imigrantes. Sem limites na legislação têm o negócio em crescendo. E isto pode vir a provocar um problema grave no nosso país”.
A maioria dos negócios é de imigrantes asiáticos. Há mesmo “grupos empresariais”, como o SDS Brothers, que tomaram conta de lojas de acessórios para telemóveis, lojas de roupa, supermercados e de algumas vivendas e apartamentos. São casas ocupadas por alguns funcionários destas empresas e por dezenas de outros imigrantes, seus compatriotas. São grupos que usam as redes sociais na angariação de mão-de-obra para trabalhar na apanha de frutos vermelhos. Apesar de vários contactos no sentido de conseguir ouvir elementos destas comunidades, estes recusaram sempre fazê-lo. Ou por não dominarem o português ou o inglês, ou porque simplesmente preferiram o silêncio.
Aparentemente, tudo funciona dentro da legalidade, já que as poucas operações em larga escala levadas a cabo pelas autoridades não detetam problemas de maior.
“Eles vão ter com pessoas que têm neste momento negócios e oferecem rendas completamente impensáveis. Com base nisso, têm tomado conta da maioria dos estabelecimentos e pelo que temos ouvido dizer, o objetivo é tomar conta de todos”, assegura Francisco Lampreia, que garante que a compra ou aluguer desses espaços é feita em dinheiro vivo.
“Os tais sacos de dinheiro que toda a gente sabe de onde proveem. As autoridades também sabem de onde, mas infelizmente até agora não vimos nenhuma ação prática das policias criminais para resolver o problema. Serão as tais explorações de pessoas, que pagam entre 15 e 20 mil euros para vir para cá, dinheiro não entra no circuito económico normal. Como é que é possível pagar oito mil euros de renda por um restaurante? É muito dinheiro”.
Mas o autarca de Milfontes aponta um outro problema.
“Ocuparam todas as habitações disponíveis, a preços inatingíveis para qualquer casal português. O objetivo deles é colocar 20 pessoas dentro e um T2, por exemplo, em que até os corredores são ocupados por colchões. E pagam preços por aluguer de casas a que os portugueses não conseguem chegar”.
Situação idêntica vive-se em São Teotónio. Dário Guerreiro, o presidente da Junta, admite que "é quase impossível, seja português ou estrangeiro, comprar casa. O mercado imobiliário está no limite, por causa do arrendamento". Os senhorios preferem alugar "a uma dezena de pessoas, a 100 ou 120 euros à cabeça", do que alugar a um casal ou a uma família, "que obviamente não pode pagar esses valores".
Para Francisco Lampreia, na génese dos problemas está um fenómeno que “só a polícia criminal pode resolver: é o tráfico de pessoas, que gera todo este poder económico que está a desequilibrar a sociedade local”.
E vai mais longe: não vê vontade política em mudar a lei, e se assim não for, este fenómeno vai ser imparável. Porque haverá sempre quem se aproveite do negócio. E aqui, lembra o que disse em tempos o Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou a necessidade dos portugueses se adaptarem à presença de imigrantes, venham eles de onde vierem.
“Eu não concordo com o Sr. Presidente”, adianta o presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Milfontes. “Acho que temos de ter uma política migratória mais responsável. Adaptarmo-nos é ser irresponsável, porque perdemos a nossa cultura e o nosso bem-estar”.
“Eu tenho duas meninas na escola primária. Os pais já me tinham relatado, há uns tempos, que aparecia uma pessoa no gradeamento da escola a tirar fotografias e a abordar os miúdos”, relata Teresa Saraiva, a presidente da Associação de Pais do Agrupamento de Escolas de Vila Nova de Milfontes.
Nas habituais reuniões, o assunto vinha à baila, mas agora, os relatos surgem também dos pais dos alunos do Colégio de Nossa Senhora da Graça, que integra o Instituto de Nossa Senhora de Fátima. O único estabelecimento que garante o ensino das crianças e adolescentes do 5º ao 12º ano.
“Muitas raparigas de diversas turmas referem o enorme desconforto por serem perseguidas por imigrantes que as abordam, que se metem com elas, o que lhes cria uma situação de insegurança muito grande”, revela Teresa Saraiva.
Mas estas perseguições não se ficam pelas crianças na escola.
No Centro Comercial de Milfontes, onde à noite se concentram dezenas e dezenas de migrantes, Cristina Reis é dos poucos portugueses proprietários de uma das lojas que comprou há uns anos. Montou uma lavandaria self-service para a filha, com cerca de 25 anos. Era a forma de a manter na terra, ocupada e com uma fonte de rendimento.
Depois de desligar uma máquina industrial de passar a ferro as dezenas de lençóis, empilhados numa mesa, limpa o suor da testa e lamenta que a filha não possa ficar sozinha, a trabalhar.
“Em 2018, quando viemos para aqui, não havia lojas de imigrantes asiáticos. Em 2019, começaram a alugar e a comprar. E agora estamos aqui praticamente sozinhas. Portugueses somos muito poucos. E desde o princípio, houve um jogo de intimidação para sairmos daqui. Todas as vezes que saia da loja, havia sempre ajuntamentos excessivos, com homens pregados às montras, a olhar para dentro, a intimidar a minha filha”, lamenta Cristina Reis.
Um bip-bip-bip intenso e estridente começa a ouvir-se de uma das máquinas de secar roupa, ao fundo da sala. À espera estava Celeste Rocha, acompanhada das duas filhas - uma com 9 ou 10 anos e a outra com 17.
“Muitas das vezes estamos a ser observadas por indivíduos, que ficam a olhar sobretudo para as miúdas. Não sei qual é o intuito deles. Pronto, é um bocadinho constrangedor sair à rua com as minhas filhas e não me sentir confortável. É a forma como olham para nós, mulheres”.
Sentem-se presas no seu próprio habitat, onde não podem andar à vontade, explica Celeste. Muito menos no verão, em que as filhas usam calções devido ao calor. O sentimento é tal que está a pensar mudar de casa e de localidade.
“Estou só à espera de que a minha filha acabe o secundário e possivelmente, sim, mudo-me. Vivo em Milfontes há 23 anos, vim para cá com 16 anos porque a minha família materna é daqui. Mas atualmente, não sinto segurança para as minhas filhas andarem sozinhas na rua ou irem à praia”.
Há já algum tempo que Teresa Saraiva deixou de ir à praia com as filhas. E não só teme que o clima de insegurança aumente, como descambe.
“O que se passa neste território é uma espécie de bomba-relógio, porque há uma enorme frustração dos que cá vivem por não se conseguir fazer nada. Tendo em conta que a população está saturada e frustrada com esta situação, se de repente acontece alguma coisa e algum dos miúdos é “tocado” em algum sentido, isso vai dar uma grande confusão em termos sociais”. Acredita que acendido o rastilho, que diz ser curto, “passa a haver um pretexto para a população se virar contra eles”.
Por isso, defende que há que são urgentes medidas para evitar que aconteça.
Francisco Lampreia, presidente da Junta, mostra-se preocupado com a situação.
“Eu sou professor e eu próprio fiz esse inquérito aos meus alunos, depois de uma aluna de 12 anos ter revelado que tinha sido seguida várias vezes, de e para a escola. Aconselhei os pais a ir à GNR, denunciar a situação. Questionei a turma toda e não só todas as miúdas tinham passado por essa situação, como metade tinha sido abordada na rua”.
E recorda o que aconteceu há 23 anos, no sul de Espanha.
A região de El Ejido, próxima de Almeria, rodeada de estufas, foi palco de uma escalada de violência. Após o assassinato de dois agricultores, uma jovem de 26 anos foi apunhalada até à morte por um imigrante marroquino. Durante vários dias, a região foi palco de violentos confrontos entre a população local e a imigrante, com dezenas de feridos. Só uma intervenção musculada e persistente das autoridades travou a violência.
“Aqui temo que possa vir a acontecer a mesma coisa”, antevê Francisco Lampreia.
Antes que aconteça, há que apresentar queixa junto da GNR para alertar as autoridades para esta situação. Só que a população não se queixa.
“A maior parte das pessoas não denuncia à GNR. Ou por acharem que não devem ou porque acharem que não vale a pena. Não têm essa cultura de denuncia”.
E por isso, oficialmente, não há um aumento deste tipo de casos de assédio e perseguição.
Mas há queixas. Poucas, mas há.
À Renascença, a Divisão de Comunicação e Relações-Públicas da GNR indica que, em 2002. foram feitas em todo o concelho de Odemira duas queixas. E que este ano, houve até agora quatro queixas devido a situações de assédio e perseguição.
A Câmara de Odemira confirma: tem recebido relatos e queixas por escrito de pessoas que estranham os olhares insistentes dos imigrantes.
"É verdade. Acontece. É verídico", indica Hélder Guerreiro, o autarca de Odemira, que aponta uma possível solução:
"Já falei com o Sr. Comandante Distrital da GNR no sentido de salvaguardar a perceção que as pessoas têm relativamente à segurança dos seus filhos". Para isso, a autarquia pediu um reforço de policiamento, no sentido de haver maior presença da GNR na rua, e principalmente fazer algum policiamento nas horas de entrada e saída dos alunos nas escolas. Uma vigilância passiva, mas presente".
Aqui, Hélder Guerreiro adianta as garantias que lhe foram comunicadas pela GNR quando ao reforço de meios no concelho.
"Vão reforçar o efetivo, particularmente em Vila Nova de Milfontes, para dar resposta a essa preocupação que os pais têm de facto demonstrado". Nesta altura, em todo o concelho de Odemira, serão pouco mais de 90 os elementos da GNR em permanência, segundo dados avançados ao autarca pelo comandante Distrital de Beja.
"Mas precisam de ser 120 a 130. Permanentes", sublinha o autarca.
"O Governo não deve olhar para Odemira só pela lógica de que produzimos muito e exportamos muito. Precisamos de um investimento do Estado na garantia da qualidade de vida de quem cá mora".
A facilidade em obter visto de entrada e permanência em Portugal é amplamente partilhada nas redes sociais. Há, inclusive, canais no Youtube que aconselham vivamente Portugal como porta de entrada na Europa. E passo a passo, explicam como fazer para conseguir permanência no nosso país.
"É ao Estado português que cabe a responsabilidade de proteger os imigrantes", lembra Dário Guerreiro, presidente da Junta de Freguesia de São Teotónio.
"Da forma como está a lei atualmente, abre-se a porta a que estas pessoas venham indiscriminadamente e sabe-se lá da forma que cá chegam. É-lhes prometido o 'El Dorado' e neste momento chegam a Portugal e encontram uma realidade completamente diferente. Porque o governo não protege estas pessoas".
"Se temos necessidade de mão-de-obra", acrescenta Dário Guerreiro, "o Governo tem a responsabilidade de chegar a esses países com disponibilidade de pessoas para vir para a Europa e trazê-los de forma ordenada, com contratos de trabalho feitos, com a habitação programada e com a legalização tratada. Assim evitaria que estas pessoas fossem apanhadas por estas ditas redes".
Opinião partilhada pelo presidente da autarquia de Odemira, que começa por dizer que não tem nenhuma discordância de princípio com a política de imigração nacional. Só que na sua opinião, há duas questões que precisam de ser melhoradas. Quando há necessidades de mão de obra, sobretudo em altura de pico da colheita de frutos vermelhos, a chegada desses imigrantes "devia ser feita através de acordos entre estados, para que a vinda fosse feita por canais seguros, sem possibilidade de cair nas redes de tráfico". E sobretudo dentro das necessidades de mão de obra.
Mas o mais relevante para Hélder Guerreiro é perceber que em territórios rurais, onde "o Estado tinha vindo a abandonar a presença em termos de serviços públicos" como educação, finanças, saúde e segurança social, agora, de um momento para o outro, têm de enfrentar uma inversão fortíssima da sua população (que cresceu 13 % em Odemira nos últimos dez anos) e que acabou por gerar um fluxo contrário. "Serviços a desaparecerem e pessoas a chegarem".
Por isso, o autarca de Odemira defende que "percebendo o Governo o que se estava a passar, devia ter feito um investimento no reforço de serviços no território, para que as pessoas não sintam inseguras ou não tenham a perceção de que foram abandonadas e invadidas".