Migrantes e refugiados

O ataque mortal no Centro Ismaili visto por três afegãos. O que lhes reserva o futuro em Portugal?

03 abr, 2023 - 06:38 • João Carlos Malta

Uma semana depois de duas mulheres terem sido assassinadas por um refugiado afegão no Centro Ismaili, em Lisboa, a comunidade afegã continua em choque. Há quem tenha receio de ter uma vida social normal pois não sabem como as pessoas poderão reagir. Mas há um sentimento comum: todos condenam o ataque e querem mostrar que se tratou de um caso isolado.

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Para Hamed, há um antes e um depois de terça-feira, dia 28 de março. Aos 40 anos, ele é alguém que se pode chamar de uma pessoa extremamente sociável. É conversador e afável, características que trouxe da outra vida, aquela que tinha no Afeganistão quando era deputado e responsável pela ligação com a representação da União Europeia no país.

Mas desde que Abdul Bashir assassinou duas mulheres no Centro Ismaili, em Lisboa, as coisas mudaram. Agora, Hamed tem medo de que as pessoas não consigam fazer a distinção entre os atos de um homem e os elementos da comunidade a que pertence.

“Não sei se as pessoas vão entender a diferença. Vão dizer que foi um afegão que fez isto. A situação ainda está a ter um grande impacto na sociedade. Eu não me sinto seguro, não me sinto confortável. Não tenho vontade de me apresentar às pessoas e dizer que sou afegão, porque este assunto ainda está muito presente”, relata à Renascença.

Hamed, que agora trabalha como intérprete para o Serviço Jesuíta de Apoio aos Refugiados, detalha que também as filhas, com entre três e 15 anos, revelaram medo de ir à escola desde o ataque.

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"Eu não me sinto seguro, não me sinto confortável. Não tenho vontade de me apresentar às pessoas e dizer que sou afegão, porque este assunto ainda está muito presente", Hamed.

"Para ser sincero, parei de querer encontrar-me com pessoas. Antes deste incidente, eu era muito sociável, gostava de ir às lojas. Quando as pessoas começavam a falar comigo, eu gostava de me apresentar e falar de mim. A partir de terça-feira, parei de fazer isso. Estou a tentar evitar as pessoas. Estou a tentar evitar falar com elas e que me perguntem de onde sou, porque não me sinto confortável. Não sei como vão reagir.”

Surto psicótico?

As primeiras conclusões das autoridades policiais verbalizadas pelo diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, apontam para que Bashir tenha agido em resultado de um surto psicótico.

Ainda na Grécia, o refugiado gravou um vídeo em que descrevia a morte da mulher, que o deixou sozinho com três filhos menores a seu cargo, e os problemas com que se debatia. Segundo foi divulgado em vários meios de comunicação social, sem emprego, Bashir queria agora sair de Portugal e mudar-se para a Alemanha. Mas o documento de que precisava não lhe teria sido concedido.

Hamed, de 40 anos, descreve as dificuldades que podem ser sentidas por alguém que perde tudo de um momento para o outro e que tem apenas 18 meses de apoio do Estado para começar do zero uma nova vida num novo país. Argumenta que é pouco tempo para recomeçar num país totalmente diferente.

O ex-deputado afegão concede que haja situações em que a pressão seja tão grande que, psicologicamente, se torne difícil de aguentar.

O choque cultural para algumas pessoas é tão difícil que elas não conseguem cortar a ligação que têm com o passado, as cabeças deles ficam presas à vida que tinham. Muitos perderam tudo o que tinham em 24 horas. No meu caso, perdi uma vida de luta de 20 anos. Fiquei sem a casa, o carro, a minha identidade, a língua”, argumenta Hamed, atualmente a viver em Sintra.

“Quanto a mim, posso dizer que estudei na universidade, por isso sou uma pessoa muito capacitada e nos primeiros seis meses fiquei totalmente perdido, estava a ficar louco”, acrescenta.

Em duas horas toda a vida muda

A estas dificuldades que encontrou ao chegar a Portugal, Hamed somou as que já trazia na mala após uma saída "absolutamente caótica" de Cabul, capital do Afeganistão.

Conta a história de um fôlego, como se diante dos olhos ainda visse todas aquelas cenas, de certa maneira a revivê-las. Num dia, estava a ir ao mercado para comprar comida para seis meses, porque se dizia que com a chegada dos talibãs a Cabul os bens começariam a escassear e os preços disparariam.

“O choque cultural para algumas pessoas é tão difícil que elas não conseguem cortar a ligação que têm com o passado"

Era mau, mas era algo previsível para ele. Mas aquele dia não acabaria sem uma mudança que alteraria o rumo dos acontecimentos para sempre. O poder estava prestes a cair nas mãos dos extremistas, e por isso a representação da União Europeia deu-lhe duas horas para chegar ao aeroporto e abandonar o país. Tempo apenas para pegar numa muda de roupa, juntar toda a família, e recolher os documentos importantes.

Estava com muito medo. Foi um pesadelo. Agora que penso nisso ainda fico sem saber como consegui sobreviver”, confidencia.

Deixou tudo: dois carros, a casa, as contas bancárias e um lugar de destaque na sociedade. Ser representante do poder que caía colocava-lhe um alvo na cabeça. Por isso, era uma situação em que tudo o que não fosse sair do país não era alternativa se queria continuar vivo.

Não foi fácil lutar por essa sobrevivência. Ao chegar às imediações do aeroporto, onde estavam concentradas 22 mil pessoas, iniciou-se um tiroteio entre as forças da coligação, que controlavam a infraestrutura, e os talibãs, que controlavam praticamente todos os acessos.

Dispararam tiros a um metro da minha bebé, que tinha dois anos na altura. Depois daquele momento, a minha mulher e as minhas filhas choraram um dia e meio seguido.”

Mas pondo os acontecimentos em perspetiva, Hamed recorda que naqueles dias de cerco ao aeroporto morreram em média 10 a 15 pessoas por dia.

O que se seguiu depois de ultrapassada a luta para entrar no zona de embarque não foi mais tranquilo. Foi enfiado num avião militar sem saber para onde ia. Sem assentos, e um barulho infernal, seguiram sentados no chão com as mãos agarradas a varões. Sem falar.

"Dispararam tiros a um metro da minha bebé que tinha dois anos na altura. Depois daquele momento, a minha mulher e as minhas filhas choraram um dia e meio seguido"

Pouco depois, chegou a Islamabade, capital do Paquistão, e mudou de aeronave. Aí, disseram-lhe que ia para a Europa. Não sabia para onde. Horas depois aterrou em Espanha. Pensava que agora poderia aí escolher o futuro, depois de ter sido colocado numa roleta russa. Não foi o caso. Três diplomatas portugueses marcaram-lhe o destino: Lisboa.

Protestou, esperneou, mas teve de aceitar. Um telefonema a um primo que vive em Londres tranquilizou-o. Era a terra de Cristiano Ronaldo, um país pacífico e de boas paisagens, com pessoas amáveis.

Hamed chegou então ao centro de refugiados do Lumiar, em Lisboa. O que se seguiu foram seis meses de desespero. Era um país novo, uma cultura desconhecida, e experienciou o primeiro contacto com a burocracia e a lentidão dos serviços em Portugal. A transferência para a casa em Sintra até foi boa, mas depois a relação com a autarquia local não lhe deixou boas recordações.

A luta por um lugar na sociedade

Um homem que tinha quase tudo deu por si sem nada. “Mandava currículos para todo o lado. Até para lavar pratos. Só queria trabalhar. Mas nem uma resposta”, lembra com desespero.

A situação só acalmou quando uma conversa com uma representante dos Jesuítas em Portugal lhe abriu as portas da instituição que serve os refugiados. Hoje vive feliz. “Sinto-me quase 50% português”, diz, não sem adiantar que quer “retribuir à sociedade portuguesa o que me deram”.

“Penso que tenho capacidade para trabalhar numa instituição pública ou mesmo para o Governo. Tenho experiência nesse campo”, afirma.

Regressando aos eventos de terça-feira passada, afirma que se sentiu duplamente penalizado. “Primeiro porque deixei uma vida miserável para poder viver numa sociedade pacífica e em prosperidade. Em segundo lugar, porque sendo um afegão tinha medo que as pessoas generalizassem.”

Na sua cabeça muitas perguntas, mas uma certeza: “Condeno de forma muito veemente o que aconteceu. Um crime deste género é uma decisão muito pessoal que não pode ser alargada a uma comunidade”, defende.

Eu não gosto de violência. Se gostasse tinha ficado no Afeganistão”, remata Ahmed.

Porque querem muitos afegãos sair de Portugal?

Voltando à história de Bashir, o ex-deputado afegão contextualiza a vontade de alguns conterrâneos quererem sair de Portugal depois de alguns meses. O homem que matou as duas mulheres no Centro Ismaili, ao que tudo indica, queria ir para a Alemanha.

É uma história que se repte. “Os salários em Portugal são baixos, e normalmente os afegãos felizmente ou infelizmente tendem a ter famílias muito grandes. Assim, quando o apoio do Governo termina, as dificuldades aumentam. Muitas vezes, não somos capazes de encontrar empregos no mercado”, reconhece.

Por isso, pede que o apoio aumente dos atuais 18 meses para três anos. Só assim, considera, se poderá dar tempo para que quem chega aprenda a língua e esteja apto a entrar no mercado de trabalho.

Em relação às pressões que os afegãos em Portugal sofrem por parte dos talibãs, denunciada pelo presidente da Associação da Comunidade Afegã em Portugal, Ohem Taheri, Hamed confirma que conhece vários casos, incluindo de seus familiares que foram vítimas diretas da pressão dos fundamentalistas islâmicos.

“Deixei a minha casa aos meus cunhados e disse-lhes expressamente para nunca dizerem a ligação que tinham comigo. Os talibãs ainda assim fizeram três raides à casa, em sete meses, para tentar obter informações sobre mim e me forçarem a regressar ao Afeganistão”, conta.

Conhece ainda outro caso de um sobrinho de um amigo que vive em Portugal. O jovem foi capturado em frente à casa em que vivia. Disse aos talibãs que os familiares não estavam no país. “Foi levado para um centro de detenção, onde lhe batiam e onde era interrogado todas as noites. Queriam informação de forma a fazer com que os familiares viessem para o Afeganistão”, relembra.

O desfecho foi o pior. “Uma semana depois, a família no Afeganistão encontrou o corpo dele atrás da casa em que residia.

Tradutor não quer ser "sinónimo de ameaça"

Em Benfica, no Palácio Baldaya, está Nazir Amiri. Há alguns meses que mora a poucos metros daquele local. Durante o conflito no Afeganistão, foi tradutor para o contingente do Exército português que ali combatia.

A missão era manter aqueles militares em segurança e dar-lhes sempre a melhor escapatória para as situações mais complicadas. A confiança que nele tinham era total, lembra. As armas eram uma presença constante, e os militares não tinham problemas em deixá-las à sua vista.

“A missão era mantê-los em segurança”, repete. Por isso, sente ainda mais o eventual paradoxo criado pelo ataque no Centro Ismaili e de poder passar ser visto como “uma ameaça à segurança.”

Tal como Hamed, Nazir teve uma saída do Afeganistão muito difícil e conturbada. Desejava não ter visto muito do que viu. O Ministério da Defesa abriu-lhe uma porta para o futuro, porque no Afeganistão os intérpretes de forças estrangeiras passaram a ser vistos como traidores. Abandonou Cabul com a mulher e apenas com a roupa do corpo. Nem tempo teve para dizer adeus à família.

No início do percurso em Portugal, quando ainda vivia num hostel, sempre que estava a dormir e passava uma ambulância na rua com as sirenes ligadas ainda se sentia apavorado.

“Pensava que estava em Cabul e que era mais uma explosão”, recorda. “Quando abria os olhos e percebia que estava em Portugal, sentia-me tranquilo.”

Mas um ano e meio depois, nem tudo é perfeito na nova vida que aqui encontrou. Está sem emprego e ainda não fala a língua. Vive com 450 euros, 150 euros por cada pessoa do agregado familiar que agora cresceu. Há dois meses nasceu a primeira filha. Tem casa cedida pela autarquia de Lisboa, mas o apoio está a terminar.

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"Para ser honesto, o sistema legal é um pouco lento e também é burocrático. E isso não é bom. Devia ser um pouco melhor não apenas para os afegãos, mas para todas as pessoas que vivem em Portugal. Mas essas questões não devem ser a razão pela qual alguém possa tomar algumas decisões extremas como aquela que o Abdul tomou", Nazir Amiri.

Sente-se muitas vezes perdido na teia burocrática portuguesa, mas feliz por estar num país onde se pode sentir seguro.

Para ser honesto, o sistema legal é um pouco lento e também é burocrático. E isso não é bom. Devia ser um pouco melhor, não apenas para os afegãos, mas para todas as pessoas que vivem em Portugal. Mas essas questões não devem ser a razão pela qual alguém possa tomar algumas decisões extremas como aquela que o Abdul [Bashir] tomou, ou sequer pensar em deixar o país ilegalmente e colocarmo-nos em problemas.”

No final, Nazir Amiri deixa uma mensagem de alívio. Estar em Portugal dá-lhe a segurança de que a sua filha poderá nascer e crescer em segurança, sem temer constantemente pela vida, e ainda ter direito à edução, algo que considera vital. “A minha esposa não teve essa possibilidade, porque apanhou na infância e juventude um Governo dominado pelos talibãs”, lamenta.

Perdeu uma amiga que era "família"

A quase 30 quilómetros dali está Ziauddin. Vive em Portugal há cinco anos, com a mãe e cinco irmãos, no Seixal, e conhecia uma das mulheres que perdeu a vida no centro Ismaili.

Aos 36 anos, é uma das pessoas mais envolvidas na vida da comunidade afegã e relata o sentimento generalizado após o ataque da semana passada.

“Somos uma comunidade pequena, todas as pessoas estão chocadas”, começa por dizer.

Ele, que já trabalhou em retalho e agora trabalha numa fábrica de bolachas em Mem Martins, Sintra, recorda os momentos que se seguiram ao ato tresloucado de Bashir.

“Vi toda a gente a chorar e infeliz. Todos estávamos a questionar-nos como é que estas coisas acontecem. É muito, muito errado e triste. São coisas inacreditáveis aquelas que aconteceram”, lamenta.

Ainda hoje estão à procura das razões que podem ter levado o afegão de 29 anos a pôr fim à vida de duas mulheres, mas têm uma certeza. “Não queremos que estas pessoas estejam em Portugal, não queremos má fama para nossa comunidade. Viemos para salvar a nossa vida aqui. Viemos para ser felizes. Não viemos para fazer coisas negativas. Quem venha para coisas negativas, não queremos que venha”, atira.

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"Viemos para ser felizes. Viemos para fazer a nossa vida aqui. Não viemos para fazer coisas negativas. Então, quem venha para as coisas negativas, não queremos que venha", Ziauddin.

Até agora não foi alvo de nenhuma crítica ou ato de xenofobia, e os amigos que tem em Portugal, e que são muitos, falam com ele para lhe dar força e mostrar apoio.

Ziauddin ainda se emociona ao lembra-se de Farana Sadrudin, de 49 anos, que conhecia bem. Era formada em Engenharia Informática pela Escola Superior de Tecnologia de Setúbal e sobrinha do representante diplomático da comunidade ismaelita em Portugal, Nazim Ahmad.

“Falava com ela muitas vezes quando ia ao centro. Era uma pessoa sempre pronta a ajudar e queria saber do que os refugiados precisavam”, detalha.

“Muitas vezes participávamos em convívios em que dançávamos, contávamos piadas. Era como família para mim”, conta. “Era uma pessoa amável. Não sei o que se passou com este homem, nem gosto de dizer o seu nome. Ainda não acredito que um humano consiga fazer uma coisa destas”, acrescenta incrédulo.

Em relação aos problemas burocráticos que o alegado homicida terá enfrentado em Portugal, Ziauddin não compreende. “Alguns pensam que há países melhor do que outros. Para mim, o melhor país é o que te dá documentos”, define.

“Em Portugal, se trabalharmos, se não cometermos crimes, se nos integrarmos socialmente, podemos ter oportunidades de fazer parte da sociedade. Aqui todos têm documentos e com eles podemos ter uma casa e estudar. Podemos viver. Por isso, temos de agradecer ao país que nos recebe.”

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