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Ana Jorge. "Dedicação plena dos médicos" proposta pelo Governo "é um bocadinho confusa"

23 mar, 2023 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Helena Pereira (Público)

A ex-ministra da Saúde e atual presidente da Cruz Vermelha considera, em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, que o Serviço Nacional de Saúde vive o seu momento “mais difícil”. Ana Jorge defende o alargamento de horários dos centros de saúde e as PPP apenas para a construção dos hospitais e não para a sua gestão clínica, criticando o Governo por ter acabado com este modelo em Loures e Vila Franca de Xira.

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Ana Jorge: "Dedicação plena dos médicos" proposta pelo Governo "é um bocadinho confusa"
Ana Jorge: "Dedicação plena dos médicos" proposta pelo Governo "é um bocadinho confusa"

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"A dedicação plena dos médicos" proposta pelo Governo "é um bocadinho confusa", afirma Ana Jorge, antiga ministra da Saúde Ana Jorge, ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público.

Nesta entrevista, que pode ouvir na íntegra a partir das 23h00 e ler na edição desta quinta-feira do Público, Ana Jorge fala da figura do diretor executivo do SNS como "uma boa opção", que era "desejável" e tem dúvidas se teria feito a greve da semana passada "nesta fase do campeonato", embora compreenda as razões.

A ex-ministra da Saúde e atual presidente da Cruz Vermelha reconhece que "há carência de especialistas" também nos privados e pede a valorização da área da clínica geral e familiar.

É difícil recrutar profissionais para o privado? Também há problemas em recrutar especialidades?

Obviamente que nalgumas especialidades há carência de especialistas, dados alguns constrangimentos que houve durante muito tempo. Neste momento, estamos a assistir aquilo que era expectável acontecer, porque os médicos que se formaram em grande número nos anos 1975, 76 (que foram 3000 e 2000, que eram números muito elevados) estão na altura da aposentação.

Depois desses anos, houve numerus clausus muito rígidos. Houve anos em que apenas se formaram nas faculdades 100 médicos por ano. Isso levou, obviamente, a efeitos que só ao fim de alguns anos se fazem sentir. E as necessidades em saúde, nomeadamente, relacionadas com o envelhecimento da população, são maiores. E, portanto, há aqui uma compatibilização destas duas questões que são difíceis de equacionar e temos de encontrar respostas.

Que respostas?

Por um lado, temos menos especialistas, porque há menos médicos. Essa carência faz-se sentir tanto no público como no privado. Por outro lado, há algumas especialidades que são muito atrativas para o setor privado, porque são muito lucrativas: as cirurgias, os meios complementares de diagnóstico, as tecnologias em saúde. São mais atrativas do que a medicina interna, a medicina geral e familiar.

Estando numa fase em que as especialidades estão descalças, tem de haver uma boa articulação entre cuidados. Tem de se valorizar cada vez mais a área da medicina geral e familiar, porque tem competências para atender e resolver a grande maioria dos problemas de saúde das pessoas. As especialidades mais hospitalares ficam restringidas. Deverão ser recursos, mas não devem reter os doentes, isto é, a pessoa deve ir à consulta da especialidade. Tem um parecer do especialista e, sempre que possível, deve voltar ao seu médico de família. Não deve ficar.

Se isto acontecer, a circulação e a capacidade dos especialistas atenderem mais é maior. Não podem ter tantos doentes nas consultas de especialidade. Os doentes têm de ir lá periodicamente, mas têm de ter o seu médico assistente que os segue. Isto raramente é feito. Portanto, tem de se reduzir as consultas de segunda vez nos hospitais para aumentar as primárias.

Temos um diretor executivo do SNS, Fernando Araújo. Como é que viu esta figura? Esta figura era o que faltava para salvar o SNS?

Eu não digo que era o que faltava. Eu direi que foi uma boa opção, porque era importante e era desejável. Já há muitos anos que se falava nisso, que o Serviço Nacional de Saúde deveria ter uma área de gestão, até porque o ministro da Saúde não é um ministro do Serviço Nacional de Saúde, é o ministro das políticas de saúde de um país.

Concorda com a necessidade, por exemplo, de reorganização das urgências?

Absoluta.

Incluindo as pediátricas?

Sim, em Portugal temos uma procura exagerada dos serviços de urgência. E isto não quer dizer que eu ache que há falsas urgências. Não, não. A urgência é um conceito que é diferente para um profissional de saúde e para a pessoa que está a sofrer. Eu, quando sofro, preciso de alguém que me dê uma resposta e, portanto, eu tenho uma urgência. Isso pode ser feito a nível de cuidados primários.

A grande maioria das pessoas que é atendida nos serviços de urgência do hospital não precisa de lá ir. Não havendo resposta nos cuidados primários, vão à procura de uma porta que está aberta 24 horas. Se tenho um problema à noite ou à tarde, e se eu tiver a certeza que no dia seguinte eu tenho no serviço da minha área alguém que me atenda, eu não vou ao hospital.

É preciso que os centros de saúde estejam abertos.

Terão de ter horários mais desfasados. Não precisam de estar todos. Não é aconselhável que estejam todos abertos, mas provavelmente por regiões do país, por grupos de centros de saúde podem estar um ou dois abertos até mais tarde. Obviamente que me vai dizer não há médicos de família para isto. Estamos de acordo.

Portanto, como é que se resolve isso agora? Pagando mais aos médicos de família?

Pagando mais a toda a gente. Do ponto de vista do vencimento-base, é bastante baixo comparativamente a outras profissões, nomeadamente os especialistas.

Houve uma greve na semana passada de médicos. Teria feito essa greve? Compreende perfeitamente?

Não sei se o teria feito nesta fase do campeonato. Agora que eu compreendo compreendo.

Porque não agora?

Neste momento, haverá uma procura de se encontrar uma solução na discussão com os sindicatos. É preciso ouvir os internos mais novos. É importante haver carreiras definidas e, nomeadamente, para haver hierarquia técnica dentro dos serviços públicos de saúde. Nenhuma equipa funciona bem, se não tiver um chefe de equipa, se não tiver um segundo elemento e se não tiver os outros.

Ainda sobre o Serviço Nacional de Saúde, o diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Araújo, defendeu que a transição das parcerias público-privadas (PPP) para a gestão pública não foi feita de forma adequada. Concorda com isto, vamos voltar a essa política de firmar acordos com privados?

Em relação às PPP, a concretização de algumas resolveu o problema de poder ser mais fácil e rápido construir um hospital. É mais discutível se a parte da gestão clínica deve estar entregue a privados ou se deve estar no público. A minha posição pessoal é a de que poderemos ter construção em modelo PPP e a área da gestão clínica ser feita pelo sector público.

Sobre Loures e Vila Franca de Xira é complicado que, em simultâneo e num período de carência absoluta de recursos humanos, tivesse sido feita esta opção [de acabar com as PPP]. Foi a opção do Governo.

Foi a pior altura para reverter as PPP de Loures e Vila Franca de Xira?

Em simultâneo, pode ter desequilibrado muito a regulação do equilíbrio dos recursos humanos. Talvez tivesse sido possível pensá-la mais faseadamente.

O que se deve agora fazer com Loures? Voltar à PPP?

Se fosse ministra da Saúde, teria de repensar muito bem, discutir isso com parceiros e ver se não haveria outra solução sem ser voltar para trás.

Foi no seu mandato como ministra da Saúde que terminou a possibilidade de os médicos escolherem dedicação exclusiva. Como é que vê a dedicação plena que o Governo de António Costa vem agora a defender [está prevista no Estatuto do SNS aprovado em 2022]?

A opção feita na altura foi negociada com os sindicatos, não foi uma decisão unilateral. A discussão de carreiras não é feita no Ministério da Saúde, é feita a três entre Ministério das Finanças, Ministério da Saúde e sindicatos. Havia necessidades de refrescar e de remodelar a carreira, mas ficou a meio. Não haver novas possibilidades de opção pela dedicação exclusiva que dava uma majoração de 40% do vencimento não foi aceite e, portanto, haveria que reformular essa forma de organizar as carreiras.

Agora, olhando para trás, foi um erro então ter-se acabado com a dedicação exclusiva?

A dedicação exclusiva faria todo sentido, se servisse para que os serviços se organizassem de outra maneira. Eu sou um bocadinho crítica sobre algumas coisas. Um diretor de serviço tem de organizar o serviço em função daquilo que são as necessidades e, portanto, organizar por atividades e cada profissional que lá trabalha tem de ter um compromisso com o seu plano de trabalho. Portanto, as horas da dedicação exclusiva não são horas para serem pagas, são horas efetivas de trabalho e isso depende dos diretores de serviço.

Nessa altura, os diretores de serviço não estavam em dedicação exclusiva e muitos deles nem sequer as 35 horas eram cumpridas. Estávamos numa fase ainda muito complicada do ponto de vista organizativo, que hoje já não acontece. Hoje, há uma maior organização do ponto de vista interno, que permite o trabalho por objetivos e, portanto, deveria ser por aí que nós deveríamos ir. A dedicação plena é um bocadinho confusa. Tenho de dizer que não entendo muito bem.

Porquê?

Porque é plena e não é exclusiva.

É um meio-termo?

Sim. Eu, quando trabalho num sítio, tenho de cumprir o meu horário e, para além disso, tenho de cumprir aquilo que são os meus objectivos, independentemente, às vezes do horário.

A dedicação plena como está agora desenhada ainda não é bem aquilo que desejava?

Não. Os serviços têm de estar organizados de outra forma. A dedicação plena poderá ser aqui um intermédio que permite que as pessoas tenham alguma compensação para se dedicar mais horas ao sector público.

Esta semana, o diretor de traumatologia do Hospital de São José alertava para o risco de colapso do SNS no próximo Verão. Também tem esta visão catastrófica do SNS?

O Serviço Nacional de Saúde está num período muito, muito, muito difícil. Quando eu comecei a trabalhar, ainda não havia Serviço Nacional de Saúde, acompanhei o processo todo com grande expectativa e passámos por períodos difíceis. Este é o mais difícil de todos.

A meu ver, o diretor de Traumatologia está a fazer um alerta de que se tem de se tomar algumas medidas de organização e programação para que o Verão não seja uma pressão. Temos de tomar algumas medidas de referenciação programada entre hospitais, por exemplo.

Essa programação já devia estar a ser feita?

É por isso que o CEO é importante no SNS, porque pode, com os diferentes hospitais, fazer canais de referência e canais de apoio para que estas situações não aconteçam. E depois há aquilo que em Portugal não é muito habitual: eu trabalhar num sítio, e depois ir fazer trabalho numa outra instituição e ajudar a reforçar as equipas. Este é um mecanismo que se tem de fazer. E tem de se negociar com os profissionais e, aí, é preciso dinheiro.

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