13 fev, 2023 - 16:34 • Joana Azevedo Viana
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"São números muito impressionantes, até para mim." Foi assim que o psiquiatra Daniel Sampaio, com décadas de experiência a lidar com abusos de crianças e jovens, fez referência aos resultados do trabalho da Comissão Independente responsável por "dar voz ao silêncio" de vítimas de abuso sexual no seio da Igreja Católica portuguesa, que apresentou esta segunda-feira o seu relatório final depois de quase um ano de investigações.
Ao longo do processo, foram validados 512 casos de abuso sexual de um total de 564 denúncias recebidas pela comissão. Tendo em conta os testemunhos destas pessoas, hoje adultas, a comissão ad-hoc em fim de caminho adianta uma estimativa "grosseira e que peca por defeito", nas palavras do sociólogo Vasco Ramos: entre as décadas de 1950 e o final dos anos 2010, pelo menos 4.815 crianças e jovens terão sido vítimas de abusos por padres, religiosos e leigos católicos em Portugal, num número que será sempre "apenas a ponta do icebergue".
"Não é possível quantificar o número de crimes praticados, mas sabemos que a maior parte das crianças foi abusada mais do que uma vez", indicou o coordenador da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Stretch. A média de idades atual das vítimas é de 52 anos, mais baixa do que nos estudos de outras comissões em países da Europa. Em 20,2% da amostra, constam pessoas atualmente com menos de 40 anos de idade.
Em quase metade dos casos (48%), as vítimas só revelaram o que lhes aconteceu pela primeira vez quando contactaram
com a comissão, através dos canais de denúncias criados para o efeito.
"São narrativas emocionalmente muito intensas mesmo para profissionais desta área", ressalta Stretch. Ou como referiu uma das vítimas nas suas entrevistas: o "dissecar do retalho doloroso" de infâncias destruídas.
Do total de casos apurados, e dado que a maioria dos crimes já prescreveu, a Comissão Independente encaminhou para o Ministério Público 25 casos. O grupo de trabalho encontra-se ainda a "elaborar uma lista definitiva", que deverá estar concluída e ser enviada à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) "até ao final do mês, para que a Igreja atue" em relação aos alegados abusadores ainda no ativo, indicou o juiz conselheiro Laborinho Lúcio.
Essa mesma lista será enviada também para o Ministério Público.
A comissão emitiu ainda uma série de recomendações, entre elas que o prazo de prescrição dos crimes de abuso seja alargado até aos 30 anos da vítima, em vez dos atuais 23 anos, sobretudo tendo em conta que, em média, as vítimas levam pelo menos 10 anos a denunciar o que lhes aconteceu. Países como a Alemanha já aprovaram alterações penais nesse sentido.
Atualmente, os crimes de abuso sexual de criança, envolvendo menores de 14 anos, prescrevem em 15 anos em Portugal, sendo considerados crime público. No caso de ato sexual com adolescente (entre os 14 e 16 anos), um crime semipúblico, o prazo de prescrição é de dez anos.
A comissão sugere ainda a criação de uma nova comissão de acompanhamento destes casos e ainda o "dever moral de denúncia".
"Houve inequivocamente abusos sexuais por membros da Igreja portuguesa e houve evidentemente ocultação desses abusos por parte da Igreja", viria a declarar o juiz conselheiro depois de apresentado o relatório, antes de adiantar:
"Não deixa de haver, na atual Igreja, esse desejo de regresso à ocultação. Mas há também uma disponibilidade que nos parece evidente de desejo dessa desocultação."
Para Laborinho Lúcio, "a questão agora é a da denúncia" e se um eclesiástico "tem juridicamente o dever" de denunciar crimes de abuso sexual de pessoas menores, desde 2007 crimes de natureza pública sob o Código Penal.
"Quer por força das determinações internas da própria Igreja, quer por força da natureza pública do crime, creio que esse dever é absolutamente inequívoco. Certamente ninguém põe em causa denunciar um homicídio no seio da Igreja – devemos introduzir controlo apertado para ver se essa mudança está efetivamente a ter lugar."
"Não há abuso sem ocultação, é uma característica primordial do abuso sexual e é fácil de perceber, trata-se de uma situação tão hedionda, tão difícil de perceber, que tem de haver ocultação", acrescenta Daniel Sampaio. "Agora importante é que a ocultação não continue."
Para Pedro Stretch, o que é preciso é acabar com este encobrimento de casos "na Igreja como na sociedade", para que "mais crianças possam falar no futuro e também as suas famílias".
Como ressaltou a assistente social Filipa Tavares, outro dos elementos da comissão independente especializada em terapia familiar, "o fenómeno dos abusos está pouco estudado em Portugal", pelo que se espera que esta primeira investigação "abra caminho a investigações futuras, com maior alcance, profundidade e grau de sistematização".
Quanto às recomendações à Igreja, o pedopsiquiatra destaca que o aconselhamento espiritual de suspeitos de abusos não chega: é preciso que tenham acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
"Não chegam retiros espirituais, porque não há milagres." E se fosse ele responsável da Igreja, não tem dúvidas: "Eu por mim, não querendo ser Humberto Delgado, obviamente afastava-os."
Na apresentação das conclusões, o presidente da Comissão, o psiquiatra Pedro Stretch, agradeceu à CEP não apenas ter dado o passo de ordenar esta investigação independente, como também por ter permitido a consulta "inédita" dos arquivos da Igreja portuguesa, analisados por um grupo de investigação histórica com o aval do secretário de Estado do Vaticano Pietro Parolin, em carta datada de 9 de junho de 2022.
Contudo, Stretch também fez questão de sublinhar que é uma "iniciativa que peca por tardia" e que, findo o trabalho da comissão, uma das grandes recomendações dos especialistas é que este seja apenas um ponto de partida para investigar o fenómeno dos abusos de crianças e jovens em toda a sociedade portuguesa – uma ideia que Daniel Sampaio ecoa.
"Atingiram-se números muito inquietantes" que obrigam a que haja um "estudo a nível nacional" face ao que o psiquiatra diz ser um "problema geral de abuso sexual, que tem de ter a maior importância", até porque, como destacou também, há uma diferença importante em relação a outras investigações: ao contrário da realidade noutros países, em que a maioria das vítimas é do sexo masculino, no caso português 42,2% das vítimas entrevistadas são mulheres, estando os abusos espalhados um pouco por todo o país, incluindo ilhas.
Do total de vítimas, 77% nunca apresentou queixa à Igreja, sendo que apenas em 4% dos casos houve queixa judicial.
"Todas as pessoas que contactam com crianças em escolas, instituições e clubes desportivos têm de ter presentes estes números", defende Daniel Sampaio.
Entre os relatos impressionantes partilhados pelos investigadores, conta-se o de um homem nascido na década de 1980 que, aos 12 anos, foi vítima de "abuso violento" por um padre seu professor de religião e moral, durante uma viagem de finalistas do 2.º ciclo, na qual pelo menos outros três rapazes foram vitimados pelo mesmo sacerdote.
"Penso onde andará esse tarado, pois em qualquer sítio fará isso. Foi no verão de 2000 e estávamos ali sozinhos, longe de casa e dos pais, só nos consolámos um ao outro [duas das vítimas], não havia ninguém a quem contar."
Ou o caso de uma mulher que, enquanto aluna de um colégio de freiras, foi abusada pelo padre da diocese. Na entrevista disse que quase todas as raparigas passavam por isso e que, quando decidiu denunciar o abusador à madre superiora, esta a acusou de mentir e a obrigou a engolir uma colher inteira de pimenta branca em frente às colegas. "Senti-me violentada duas vezes."
A par disso, foi ainda revelado que um bispo português reintegrou numa diocese em Portugal um padre condenado por abuso de menores no estrangeiro, apesar de ter sido avisado para o facto pelo bispo que lidou com esse caso.
A comissão independente considera que "se fez história também através do estudo dos arquivos da Igreja que cada diocese disponibilizou", com Francisco Mendes, investigador da Universidade do Minho e coordenador do grupo de investigação histórica, a defender que estes arquivos devem continuar a ser estudados.
"Não se trata de fazer uma política de arquivo, mas pensar nos arquivos como tendo de estar ao serviço da sociedade e da Igreja", defendeu, invocando que os investigadores encontraram dois sistemas distintos, "um que assenta nos processos individuais dos clérigos e outro que aloja a informação de uma forma cronológica, mais administrativo".
"Em rigor a Igreja tem informação e essa informação tem de continuar a ser estudada. Mesmo encontrando pouco, o que encontrámos é extraordinário para entender estes fenómenos."
Já na fase de perguntas e respostas, a investigadora Ana Nunes de Almeida, com larga experiência na área dos maus-tratos às crianças e que também integrou o grupo de investigação histórica, acabaria por endereçar um pedido aos bispos e sacerdotes portugueses para que "tomem a palavra" quanto a este tema – depois de ter sido detetado um "alheamento e distanciamento" de altos cargos da hierarquia eclesiástica em relação ao fenómeno sistémico dos abusos.
Neste contexto, Ana Nunes de Almeida disse-se chocada pelas declarações recentes do diretor da Pastoral Juvenil de Lisboa de que "os resultados do relatório sobre abusos sexuais não vão afetar, com certeza, a Jornada Mundial da Juventude", que vai ter lugar na capital portuguesa em agosto.
"Haverá melhor lugar para abordar este problema do que a jornada?", perguntou a investigadora. "Fez-me muita impressão ouvir isto, este alheamento no considerar que esta questão absolutamente central na Igreja – e a Igreja aqui foi pioneira, não tem de ter vergonha – não terá impacto na JMJ."
Nas suas intervenções, os investigadores deixaram claro que, se tivessem tido mais tempo para estudar os arquivos disponíveis, muitos mais casos de abuso poderiam ter sido identificados.
"O nosso estudo carece de aprofundamento", destacou Ana Nunes de Almeida. "Diria que agora é que estamos prontos para começar."
Questionado sobre um sistema de indemnizações às vítimas, semelhante ao que aconteceu em Boston e tem estado a acontecer na Alemanha e noutros países, Stretch destacou que "nenhuma vítima com quem contactámos pediu compensações, revelando apenas necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico". A comissão sugeriu à CEP que financie esse acompanhamento e aguarda agora uma resposta ou contraproposta.
Neste ponto, Daniel Sampaio explicou que o proposto pela comissão é que "a Igreja assuma o tratamento das vítimas atuais e providencie que, no futuro, outras vítimas possam ser tratadas", em "coordenação com o Serviço Nacional de Saúde", e com a ajuda de todos, incluindo da comunicação social, para que "as vítimas se sintam reconhecidas e ouvidas e peçam ajuda".
Em larga medida, as vítimas entrevistadas manifestaram vontade em obter um pedido de perdão concreto e direto por parte do seu abusador e/ou da Igreja pelo que lhes aconteceu. Neste contexto, e numa segunda referência à JMJ, já na fase de perguntas e respostas, Pedro Stretch acabaria por acrescentar:
"Da igreja em si pode e deve vir este pedido de desculpas, para que não se extinga apenas com breves palavras ou palavras avulso de alguns responsáveis, mas que perdure de forma simbólica e simples, transparente. Não é preciso 5 milhões de euros [preço inicial do altar-palco da JMJ Lisboa] para um memorial às vítimas, nem menos 30% disso [o corte na despesa com o altar-palco, anunciado na semana passada pelos organizadores da jornada]."
Laborinho Lúcio adiantou que foi proposta "a criação de outra comissão no interior da Igreja, mas constituída sobretudo por membros exteriores à Igreja, que institucionalize a réplica do que foi feito na comissão independente, uma comissão que receba queixas, que proponha indemnizações e ações a executar".
Sem "permanência dentro da Igreja", o assunto vai "esboroando no tempo e podemos voltar a uma situação semelhante à que temos", alertou o juiz conselheiro.
No final da apresentação do relatório, Javier Cremades, da sociedade de advogados espanhola que está neste momento a investigar os abusos na Igreja naquele país, destacou que o caso português é um "exemplo para outros países pela dimensão humana" do trabalho que a comissão independente desenvolveu.
"A começar pelo facto de ser um pedopsiquiatra a liderar esta comissão", explicou à Renascença o advogado espanhol. "Creio que é a primeira vez que se foca com tanta profundidade esta dimensão humana, para entender melhor o impacto [dos abusos] nas vítimas, e é um relatório, digamos, menos frio".
Para Javier Cremades, esta primeira investigação em Portugal "servirá de exemplo para outras comissões noutros países, seguramente para Espanha é um relatório que nos vai ajudar e inspirar".
Reveja aqui a conferência de imprensa sobre as conclusões do estudo sobre os abusos na Igreja:
[Notícia atualizada às 18h31 de 13 de fevereiro de 2023]
Se foi vítima de abuso ou conhece quem possa ter sido, não está sozinho e há vários organismos de apoio às vítimas a que pode recorrer:
- Serviço de Escuta dos Jesuítas , um “espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus.
Telefone: 217 543 085 (2ª a 6ª, das 9h30 às 18h) | E-mail: escutar@jesuitas.pt | Morada: Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa
- Rede Care , projeto da APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que “apoia crianças e jovens vítimas de violência sexual de forma especializada, bem como as suas famílias e amigos/as”.
Com presença em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores.
Telefone: 22 550 29 57 | Linha gratuita de Apoio à Vítima: 116 006 | E-mail: care@apav.pt
- Comissões Diocesanas para a Protecção de Menores . São 21 e foram criadas pela Conferência Episcopal Portuguesa.
São constituídas por especialistas de várias áreas, recolhem denúncias e dão “orientações no campo da prevenção de abusos”.
Podem ser contactadas por telefone, correio ou email.
Para apoiar organizações católicas que trabalham com crianças:
- Projeto Cuidar , do CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica
Se pretende partilhar o seu caso com a Renascença, pode contactar-nos de forma sigilosa, através do email: partilha@rr.pt