História

50 anos da Vigília da Capela do Rato: “Fomos rezando e resistindo até à polícia invadir”

30 dez, 2022 - 17:35 • Ana Catarina André

A 30 de Dezembro de 1972, um grupo de católicos reuniu-se, em Lisboa, em protesto contra a guerra colonial e a ditadura em Portugal. Alguns foram presos, incluindo dois padres.

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Na rua, a polícia de choque dava ordens, através de um altifalante, para que o grupo reunido, desde o dia anterior, na Capela do Rato, em Lisboa, saísse imediatamente. No interior, a oposição ia-se fazendo com orações. “Respondíamos com o Pai-Nosso, a Avé-Maria, a Salvé-Rainha. Fomos rezando e resistindo, até que alguns de nós fomos arrastados à força para a rua”, recorda Jorge Wemans, um dos católicos que participou na vigília pela paz de 30 de dezembro de 1972.

“Lembro-me que o Nuno Teotónio Pereira [um dos organizadores] foi barbaramente puxado e empurrado. A invasão pela polícia foi brutal. Éramos cerca de 80. Meteram-nos em carrinhas e fomos levados para a esquadra, onde fomos identificados”, relata.

Cerca de 20 ficaram detidos, incluindo o próprio Jorge Wemans, que esteve 10 dias em isolamento, na prisão de Caxias.

A vigília do final do ano de 1972 começara a ser organizada dias antes. “Acabou por ser o culminar de um conjunto de iniciativas de um grupo minoritário de católicos que tinha a perceção de que a guerra colonial, a situação da ditadura em Portugal e a falta de liberdades fundamentais eram absolutamente contrárias à sua fé em Jesus Cristo e à doutrina mais recente do Papa”, considera Jorge Wemans, então estudante universitário.

Aos poucos, a ideia original de Luís Moita de “fazer uma espécie de ocupação da capela”, ficando ali em permanência de 30 de dezembro a 1 de janeiro, foi chegando a cada vez mais pessoas. E não se destinava unicamente a católicos.

“Convocámos também pessoas que partilhassem do sentimento de era preciso pôr fim à guerra colonial. Demos também conhecimento da vigília a organizações clandestinas e semiclandestinas, como as Brigadas Revolucionárias e os grupos de esquerda e extrema-esquerda que, por esses anos, pululavam anos no movimento estudantil.”

No final da tarde de 30 de dezembro de 1972, e ainda antes da missa desse dia terminar, Maria da Conceição Moita, uma das organizadoras da iniciativa, anunciou do altar que um grupo iria permanecer ali durante dois dias, em jejum e vigília.

Evocando o tema “a paz é possível”, proposto pelo Papa Paulo XI, para a Mensagem do Dia Mundial da Paz, celebrado a 1 de janeiro, ‘Xexão’, como era conhecida, lembrou as guerras em Angola, Guiné e Moçambique, criticou “a apatia da Igreja” e afirmou que ficariam ali “a fim de provocar um ambiente de liberdade”, onde todos os que quisessem — cristãos ou não cristãos — pudessem debater esses problemas. E assim foi. Sem que o padre João Seabra Diniz, que celebrava missa, se opusesse, permaneceram naquela capela, situada na Calçada Bento da Rocha.

Durante 24 horas, debateram o conflito colonial e o direito à autodeterminação dos povos. Aprovaram várias moções – pelo menos uma delas, foi escrita em papel higiénico pelo antigo presidente da Câmara Municipal de Sines, Manuel Coelho, que a deixou debaixo de um tapete, para que outros a pudessem divulgar posteriormente, depois da invasão da polícia.

Ao mesmo tempo, as Brigadas Revolucionárias, um grupo clandestino de extrema-esquerda, explodiam petardos, em Lisboa, no Barreiro e no Seixal, espalhando assim panfletos que divulgavam o que estava a acontecer na Capela do Rato. Isabel do Carmo, uma das dirigentes deste grupo de luta armada, conta que as Brigadas difundiram também a iniciativa pela rádio Argel. “Foi o Carlos Antunes [brigadista] quem desencadeou estas ações”, diz, garantindo que a vigília era da responsabilidade dos católicos. Ao mesmo tempo, eram também distribuídos nas igrejas de Lisboa comunicados sobre o tema, apelando ainda à participação de todos.

Um ponto alto da oposição ao regime

António Araújo, historiador e autor de uma tese de doutoramento sobre o episódio da Capela do Rato, considera que este “foi talvez o momento culminante de uma contestação que, até então, era feita na base daquilo que se chamou a oposição do stencil e do policopiador, isto é, com papéis e abaixo-assinados”.

Para o especialista, esta foi uma ocasião protagonizada por um grupo minoritário, mas “com grande impacto”.

“Uma ação muito bem conseguida não apenas pelo planeamento e pela colaboração com outras organizações, mas até paradoxalmente, por via da reação das autoridades, que invadiram um templo religioso, protegido nos termos do direito canónico.”

Mas não só, acrescenta António Araújo. “Mereceu reações oficiais e comunicados do ministério do interior e até uma intervenção do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, nas Conversas em Família [programa da RTP]. Na Assembleia Nacional uma luta entre o deputado da ala liberal, Miller Guerra, e o ultra, Casal Ribeiro, com a demissão de Miller Guerra e o fim das esperanças da ala liberal acabaram por marcar esta jornada.”

Num tempo em que “a religião e a política estavam bastante cruzadas e mescladas”, António Araújo considera que o então Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, que “manteve uma defesa intransigente dos seus padres”, assumiu “a posição mais equilibrada no contexto da época”, “enquanto pastor de um rebanho muito plural”. E explica: “Lembremos que António Ribeiro tinha sucedido há pouco ao Cardeal Cerejeira.

A denúncia da hierarquia colocava em risco o episcopado, e por outro lado, uma parcela muito significativa do campo católico, talvez maioritária, estava com o regime, com vários matizes, como é evidente”.

Dois padres presos e a intervenção de D. António Ribeiro

Além da prisão de cerca de 20 pessoas que participaram na vigília, o episódio levou à detenção de dois padres. António Janela e Armindo Garcia celebraram missa na Capela do Rato no dia 1 de janeiro, depois deste local de culto ter encerrado pela PIDE. “Quando chegámos, o edifício estava selado” recorda o padre António Janela, que, antes de entrar, explicou ao guarda que, tal como ele, estava a cumprir ordens superiores.

“Quando a missa terminou, oiço uma voz: ’o senhor, podia acompanhar-me?’”, recorda o sacerdote. “Viro-me, vejo o Capitão Maltez e digo-lhe: ’mas assim paramentado?’ ‘Não’, respondeu-me.”

António Janela e Armindo Garcia seguiram então com a polícia. Na rua, diz Janela, estava um “um verdadeiro dispositivo militar”. Horas antes, o sacerdote mostrara ao Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, a homília que tencionava fazer nesse primeiro dia do ano. “O senhor Patriarca disse-me apenas: ‘eu ontem ainda fui mais forte’.

Após a detenção, os dois padres foram interrogados na sede da polícia política. “Queriam saber qual o nosso envolvimento no caso”, conta Janela, explicando que só soube da vigília quando esta estava a decorrer, e que se limitou a cumprir ordens do bispo. Foi D. António Ribeiro, aliás, quem o resgatou pessoalmente. “Creio que terá dito:’ ou o P. Janela sai, ou vou ter com o professor Marcelo Caetano’”, recorda.

O relógio marcava quatro da manhã quando saíram da sede da PIDE-DGS, na Rua António Maria Cardoso, em direção à Igreja dos Mártires, onde vivia D. António Ribeiro. “Cheguei lá com fome”, lembra o padre Janela.

“[Estava], desde o pequeno-almoço do dia anterior, com uma fatiazinha de bolo-rei. Enquanto o senhor Patriarca me estava a preparar alguma comida – foi a primeira refeição que tomei preparada por um patriarca – fiz o relato do que se tinha passado”, recorda, divertido.

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  • Rubinich, Hans
    21 ago, 2023 Deutschlandfunk Köln Germany 13:06
    Cara Sra. Andrews, Sou jornalista de rádio na Alemanha. Para a Deutschlandfunk (a maior estação de rádio da Alemanha) estou a trabalhar num programa sobre o papel da Igreja Católica em Portugal e, em especial, sobre o seu contributo para a Revolução dos Cravos, há quase 50 anos. Teria todo o gosto em entrar em contacto consigo. E possivelmente fazer uma entrevista online, de preferência em inglês. O português também seria ótimo. Depois com um bom amigo meu que é português. Estou muito ansioso por entrar em contacto consigo. Com os melhores cumprimentos da Alemanha Dr. Hans Rubinich, 0049 172 246 02 12 Estive em Lisboa há alguns dias e pude entrevistar a Sra. Pereiaa-Müller. Ela chamou-me a atenção para vós.

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