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O primeiro sinal de violência é "quando a nossa vontade não é respeitada”

25 nov, 2022 - 06:34 • Marta Pedreira Mixão

Daniel Cotrim, da APAV, destaca a importância da atenção aos primeiros sinais: "Confundimos isto com amor. Mas não, o amor é a liberdade, podermos fazer aquilo que nos apetece e podermos estar com a outra pessoa quando nos apetece". Esta sexta-feira, dia 25 de novembro, assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

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Em 2021, a nível mundial, 45 mil mulheres e meninas foram mortas por um familiar. Este número equivale a cinco mortes a cada hora. Assim, de todos os homicídios de mulheres, cometidos no ano passado, 56% foram pelas mãos de parceiros íntimos ou familiares. Para estas vítimas, a casa deixou de ser um lugar seguro.

Em declarações à Renascença, Daniel Cotrim, psicólogo e assessor técnico da direção da APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, afirma que o "primeiro grande sinal" é "quando nós percebemos que na nossa relação afetiva começamos a sentir imediatamente que o nosso 'não'" e "a nossa vontade não é respeitada".

"Este é um primeiro indício de que algo se está a passar, quando a nossa liberdade começa a estar cerceada", reitera.

Para o psicólogo, as pessoas não costumam estar atentas a este tipo de sinais: "Confundimos isto com amor. Mas não, o amor é a liberdade, podermos fazer aquilo que nos apetece e podermos estar com a outra pessoa quando nos apetece".

Daniel Cotrim alerta ainda para o facto de muitas vezes a vítima achar que "são coisas da sua cabeça" e depois destes primeiros indícios "começam a aparecer outras variáveis, por exemplo, um ciúme que não tem cabimento, que não existe". O assessor técnico da APAV descreve um ciúme caracterizado pela "ideia de que aquela pessoa tem outras pessoas, que olha para os outros de uma forma diferente", além de que o controlo "dos telemóveis, das redes sociais, da forma de vestir, da hora de chegar a casa, começa a ser proeminente".

Perante estes cenários, a APAV destaca a importância de "pedir ajuda imediatamente". Porquê? Daniel Cotrim justifica que, nestas situações, "a violência física poderá estar para breve, como exercício ainda maior de controlo". Por isso, apela: "falem com familiares, falem com organizações de apoio".

Em Portugal, o número de queixas por violência doméstica tem vindo a aumentar e atingiram 8.887 no terceiro trimestre, o número mais elevado desde 2018, quando se registaram 7.423 participações, revelou a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

A violência não é só física

Daniel Cotrim reafirma que "a violência doméstica é mais do que a violência física" e "qualquer violência assume diferentes formas: emocional, psicológica, física, financeira e sexual".

Estamos, porém, mais habituados a “ouvir falar” da violência física porque é aquela que deixa mais marcas visíveis.

"A violência é sempre um exercício de poder" e "todas estas formas de violência convivem umas com as outras e umas dão origem às outras", relata o assessor da APAV.

Desta forma, para exercer o poder, o agressor pode recorrer a "vários mecanismos de humilhação, desvalorização, despersonalização do outro", sempre com um objetivo, o de "aniquilar, intimidar e fazer com que a outra pessoa deixe de alguma forma de ser capaz de se defender, por ter medo daquilo que pode acontecer".

E estas formas de violência atingem de forma desproporcional as mulheres.

"No caso específico da violência financeira, uma mulher que trabalhe e em que o seu ordenado seja controlado pela pessoa agressora - neste caso, a pessoa com quem vive -, é uma forma de controlo muito grande", justifica o psicólogo, salientando que esta forma de controlo, “na maioria das vezes, é também a causadora da permanência na própria relação abusiva".

"Lua de Mel, Lua de Fel

Segundo explica o técnico, a violência doméstica funciona num sistema circular. "Há uma primeira fase, que é a 'Fase da Tensão', em que as pessoas sentem que algo pode acontecer e em que o comportamento da outra pessoa é de controlo e marcado pelo ciúme, pela ameaça e pelo comportamento de choque físico e emocional", descreve Daniel Cotrim.

A esta primeira fase segue-se aquilo a que o técnico chama "Lua de Fel", marcada por um ambiente de ataque violento e durante o qual "rebenta a violência, normalmente continuada", enquanto o agressor maltrata física e psicologicamente a vítima. Os maus-tratos tendem a escalar na sua frequência e intensidade.

Por último, vem a fase da "Lua de Mel" ou de "dar uma oportunidade", em que "a pessoa agressora pede desculpas e arranja um conjunto de justificações, culpabilizando a vítima por aquilo que aconteceu" e "em que as vítimas se culpabilizam e se responsabilizam por tudo o que está a acontecer". Esta fase é marcada, segundo o psicólogo, por uma "acalmia" e pode "demorar três dias, um ano e até dez anos".

Durante esta fase torna-se fundamental que quem acompanha estas situações, através da APAV ou outras organizações, "esteja muito atento e vá fazendo um seguimento muito próximo".

"Quando nós olhamos, por exemplo, para situações de homicídio em contexto de violência doméstica, percebemos que, em muitas situações, a violência esteve adormecida durante muito tempo, as pessoas até se separaram, mas de repente algo serve de gatilho para que a violência recomece e depois passa a ser uma violência fatal, que termina numa tentativa mesmo de homicídio", destaca.

Segundo os dados estatísticos, foram registadas 23.250 queixas desde o início do ano e verificou-se a morte de 21 mulheres em contexto de violência doméstica, em comparação com 23 em 2021, 32 em 2020 e 35 em 2019.

Estes números têm por base uma compilação de dados fornecidos pela GNR e pela PSP.

Como cidadãos temos de "estar atentos"

Daniel Cotrim defende que, como cidadãos e sendo a violência um crime público, temos de estar atentos e de "deixar de contar até dez".

"Se 'o barulho' parar no oito, ficamos alegadamente tranquilos. Digo, alegadamente porque acho que ninguém fica. Se a coisa passa de dez e vai para o onze, aí as pessoas ficam mais aflitas. E o que devem fazer é contactar o 112. Podem fazê-lo de forma anónima", sugere. Mesmo em situações em que não se verifiquem consequências imediatas, é importante o registo destas ocorrências, nomeadamente da deslocação do agente a determinada residência.

"Enquanto cidadãos e cidadãs temos de estar atentos, perceber que a violência doméstica diz respeito a todos nós, que pode não acontecer connosco diretamente, mas acontece com outros que podem ser nossos colegas de trabalho, familiares, amigos. Estamos a falar de um crime público, temos o dever moral de denunciar".

A violência contra as mulheres não é só conjugal

Apesar de a violência conjugal ser alvo de maior foco e que, como começamos por dizer, 56% dos femicídios ocorrerem pelas "mãos" de companheiros ou familiares, as mulheres são alvo de todos os tipos de violência. Por isso, o dia 25 de novembro assinala o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

A violência contra as mulheres assume várias formas e é um fenómeno complexo, que atravessa classes sociais, idades e regiões.

"Também existem [outras formas], são é menos faladas porque são menos denunciadas", sugere Daniel Cotrim, relembrando que também "o assédio sexual, a importunação sexual" são formas de violência, além "da violação, que é um crime pouquíssimo reportado em Portugal".

Contudo, tanto em relação à violência doméstica como à violação, defende que "não podemos dizer que se não existem denuncias, é porque não acontecem", uma vez que "é pouco denunciado pelas vítimas". No caso do assédio, "muitas vezes, por se encontrarem numa situação de precariedade do ponto de vista de emprego, não denunciam também este tipo de situações".

Outro dos problemas destacados pelo psicólogo é a forma como a violência contra as mulheres acaba por ser "naturalizada", como é o caso da importunação sexual que, como explica, "muitas vezes confundimos com assédio – na rua, nos transportes públicos, nos locais de trabalho, nas universidades… está naturalizada e é quase que aceite".

Vítimas da dúvida

Medo das consequências e dos agressores, culpa e desconfiança são alguns dos motivos que levam várias mulheres a não denunciar situações de violência ou assédio. Muitas vezes a palavra da vítima é posta em causa.

"Infelizmente, é um fenómeno de sempre. A expressão ‘vítima’ é uma expressão muito moderna no contexto legal dos países”, destaca Daniel Cotrim, recordando que se utilizava a expressão “testemunha” ou “ofendida/o”.

A vítima, aquele a quem acontece a infração criminal, foi sempre desacreditado. E quando se trata de crimes que estão relacionados com a intimidade das pessoas, que acontecem num determinado contexto que não é público, é muito mais fácil tentar desacreditar a vítima”, refere, relembrando, contudo, que na Europa, o número de falsas denuncias é muito baixo.

"Vivemos num país, numa Europa, queiramos quer não, em que a desigualdade de género é profundamente estrutural. Faz parte da estrutura social dos países. O discurso machista, patriarcal, misógino faz parte do discurso dos países", acrescenta.

Um gesto que pode salvar vítimas de violência

Abrir a mão, dobrar o polegar contra a palma da mão e dobrar os outros quatro dedos, é um gesto que pode salvar vidas. E já o fez.

Há aproximadamente um ano, uma mulher deslocou-se a um centro médico em Barcelona, Espanha, acompanhada de um homem. Para pedir auxílio fez o sinal que foi percebido por uma das enfermeiras que acabou por chamar a polícia.

A vítima relatou que sofria ameaças contínuas e maus-tratos, por vezes físicos, o que acabou por levar à detenção do agressor.

No ano passado, também uma jovem americana que se encontrava desaparecida foi salva depois de pedir ajuda a desconhecidos através deste gesto.

A jovem encontrava-se dentro de um veículo e fez sinal a um condutor que ao reconhecer o sinal chamou a polícia. Mais um caso que levou à detenção do homem, de 61 anos, que levava a adolescente no carro.

O sinal de pedido de ajuda foi lançado pela Fundação das Mulheres canadianas, para identificarem casos de violência durante a pandemia, com o objetivo de identificar e ajudar as vítimas sem estas terem de pronunciar uma palavra, sem terem de deixar um rasto da denuncia.



A APAV disponibiliza uma rede nacional de Gabinetes de Apoio à Vítima e a Linha de Apoio à Vítima (116006). Em situações de emergência, deverá contactar o 112.

Há ainda o Serviço de Informação às Vítimas de Violência Doméstica - serviço telefónico de informação gratuito, anónimo e confidencial funciona 24 horas por dia / 365 dias por ano, para apoiar vítimas de violência doméstica através do número 800 202 148.

Se não pode ou não quer telefonar, envie uma mensagem para a Linha SMS 3060, gratuita e confidencial. A CIG tem ainda em funcionamento um serviço de correio eletrónico para colocar questões, pedidos de apoio e de suporte emocional: violencia.covid@cig.gov.pt.

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