14 nov, 2022 - 07:01 • Fábio Monteiro
A aquisição do Twitter pelo bilionário Elon Musk está a provocar uma debandada de utilizadores da gaiola do famoso “pássaro azul”. E uma das plataformas para onde mais estão a fugir é para o, até há pouco tempo quase anónimo, Mastodon. Em menos de 15 dias, o número de utilizadores desta rede social de microblogging descentralizada mais do que duplicou: passou de 380 mil para mais de um milhão.
Alguns milhares de portugueses já fizeram esta mudança ou, pelo menos, abriram conta na plataforma alternativa. Naquele que é o único servidor dedicado à comunidade portuguesa da rede social Mastodon – o masto.pt -, a procura “explodiu”: o número de registos cresceu mais de 100%. “Tive de fechar registos. Neste momento, nem estou a aceitar inscrições”, conta Hugo Gameiro, administrador do servidor, à Renascença.
Desde 2016, ano em que foi lançado, o Mastodon vinha a “crescer gradualmente”. “Volta e meia acontecia algo que aumentava o fluxo de entrada. Mas eram situações pontuais. Um dia ou dois, mas depois estabilizava novamente.”
Hugo tem uma empresa que fornece serviços de alojamento e criou o servidor masto.pt, há alguns anos, por hobbie e para conversar com amigos. Mas Musk mudou a conjuntura.
“Com as alterações no Twitter e com a forma agressiva de agir do Elon Musk, há muitas pessoas a sair. Como ele é tão barulhento, cada vez que ele vai ao Twitter e publica uma coisa controversa, reflete-se aqui. E como ele todos os dias publica coisas controversas, estamos sempre a crescer”, explica.
Segundo Hugo, esta onda “não é totalmente positiva” para o Mastodon em geral, pois “a rede não está preparada” para acolher todos os utilizadores do Twitter que para lá queiram migrar. Nem os administradores – todos voluntários – têm capacidade para “fazer face ao fluxo de entrada de pessoas e volume de comunicações”, nem “no amanhã” há servidores para tanta gente.
O número de servidores do Mastodon não é um detalhe técnico. É que ao contrário do Twitter, uma empresa privada e de um homem só, a rede social, que tem por ícone um mamífero extinto, o mastodonte, foi criada tendo por base os princípios do “código livre”, “transparência” e “descentralização”.
Sem ter na retaguarda um bilionário capaz de financiar o alojamento de uma plataforma global, o Mastodon depende da boa-fé e identificação com os ideais do projeto para ter servidores. Há utilizadores individuais que disponibilizam os servidores pessoais, e pequenas comunidades, associações e empresas que suportam o custo de outros.
Por um daqueles acasos da internet, muitos destes servidores estão em solo nacional. Hugo Gameiro, além de proprietário do serviço de alojamento Nuvens.pt, é dono também do alojamento masto.host, uma das maiores – se não a maior – plataformas de servidores Mastodon do mundo.
De acordo com uma publicação no blogue do masto.host, datada de maio deste ano, o serviço acolhia então 800 servidores – perto de 14% do número total de servidores ao nível mundial, tendo em conta os últimos números da rede social. (Desde a aquisição do Twitter, o Mastodon ganhou 1,124 novos servidores.)
O Mastodon tem criador – o jovem alemão Eugen Rochko -, mas não tem dono; não tem publicidade, é gratuito (e sem histórias de oito dólares mensais por autenticação) e permite publicações até 500 caracteres – pouco mais do dobro do Twitter.
Qualquer pessoa pode copiar, adaptar o código original do Mastodon e criar o seu próprio servidor. Qualquer utilizador – porventura insatisfeito com o serviço – pode pegar nos seus dados e seguidores, apagá-los e migrá-los para outro serviço que seja compatível.
“O Mastodon cria uma dinâmica de funcionamento completamente diferente. A qualquer momento posso ajustar uma parte do software àquilo que são as minhas necessidades. Um utilizador final que queira saber onde estão os seus dados, como são processados, pode até perder algum tempo, mas consegue saber”, explica Hugo.
Segundo o português, existe no mercado uma necessidade para aquilo que o Mastodon oferece: “Poder para o utilizador final.”
Por exemplo, no Twitter, é o algoritmo que decide quais e quantos dos mil seguidores de um dado utilizador veem cada publicação. “O utilizador final não pode fazer nada para que a publicação apareça.” No Mastodon, o fluxo de publicações é cronológico. “A única variável é a hora.”
O algoritmo do Twitter “opera com fatores contrários ao que seria expectável”, amplifica discussões.
“É como aquela coisa das crianças da escola: batem um contra o outro e até se vão embora, mas depois os amigos começam a dizer luta, luta, luta. E eles até já nem iam fazer nada, até nem iam lutar. Mas depois como está toda a gente a incentivá-los, acabam por se envolver. Ou seja, há aqui uma coisa maquiavélica a nível do algoritmo, porque o algoritmo não pensa, ele só vê: quando isto acontece, há muita atenção e as pessoas voltam. É isso que interessa ao algoritmo. Não interessa que a pessoa se sinta bem, nem que nada disso”, diz.
Jorge Pinto tem boas memórias do Twitter. Em 2015, pouco antes das eleições legislativas na Grécia, que o Syriza acabaria por ganhar, entrou na rede social. “Foi um momento bastante único da política europeia. Para mim, o Twitter foi uma revelação. Só se discutia Grécia. Fiquei viciadíssimo numa semana. Foi amor à primeira vista”, lembra.
A dinâmica de debate saudável online, contudo, começou a azedar após a eleição de Donald Trump nos finais de 2016. “Tornou-se numa arena de polarização que passava dali muitas vezes para a sociedade.” Com exércitos de bots e muitas polémicas à mistura, o canto do “pássaro azul” desafinou.
Segundo o filósofo, natural de Amarante e que vive na Bélgica, já há algum tempo que era notório que algo estava mal no reino no Twitter. Mas a chegada de Elon Musk foi “a gota de água”. “Pelos despedimentos coletivos, pelo seu modo quase ditatorial de decisão única”, conta.
Foram muitos os utilizadores que debandaram para o Mastodon ou, pelo menos, criaram uma conta na rede social descentralizada. De acordo com uma publicação de Eugen Rochko, fundador e CEO do Mastodon, a plataforma ganhou “1,124 novos servidores e 489,003 utilizadores” desde o dia a 27 de outubro.
O número ao certo de portugueses que fizeram esta transição não é conhecido. Mas alguns nomes são conhecidos. A ex-eurodeputada e ex-candidata presidencial Ana Gomes foi uma das pessoas que criaram conta no servidor masto.pt. Jorge Pinto, que nas últimas legislativas foi candidato pelo Livre, no círculo do Porto, seguiu o mesmo caminho.
“Esta saída está associada a um esforço de procura de soluções de democracia digital. Já tenho há alguns anos alternativas ao Google, que durante muito tempo foi o centro da minha atividade digital. Tenho uma conta de email numa cooperativa belga precisamente associada a esta ideia de democracia digital e outra na Proton mail, que ficou muito conhecida pela encriptação, depois do caso de Edward Swonden”, explica Jorge à Renascença.
Jorge acredita em “soluções descentralizadas, sem a possibilidade serem usurpadas do seu intuito original, como parece estar a acontecer no Twitter”. E defende ainda que, no futuro, é preciso “evitar que este tipo de companhias seja propriedade de uma só pessoa.”
O militante do Livre vai mais longe e lança um repto – político. “É preciso começar a pensar se faz sentido que empresas como o Facebook ou o Twitter sejam privadas. Atendendo ao grau de importância, ao número de pessoas a que chegam, provavelmente pensar na nacionalização das empresas em alguns casos é uma realidade que deveria estar em cima da mesa. Precisamente, para proteger a própria arena democrática.”