06 jul, 2022 - 20:20 • Fábio Monteiro
Mário Ferreira, dono da empresa de cruzeiros Douro Azul e acionista maioritário da TVI desde 2021, está, pelo segundo dia consecutivo, debaixo dos holofotes mediáticos. A Polícia Judiciária conduziu esta quarta-feira buscas em oito sociedades do empresário no Porto, Funchal, e também em Malta – paraíso fiscal utilizado por muitas companhias portuguesas. Em causa estão indícios de fraude fiscal e branqueamento no negócio da compra e venda do navio Atlântida.
O caso, que o Ministério Público batizou de “Ferry”, remonta a 2016. Em reação às buscas, Ferreira, um dos 20 homens mais ricos de Portugal, com uma fortuna avaliada em 600 milhões de euros, escreveu esta manhã no Facebook:” Não estou acusado de nada, não sou arguido em nenhum processo.”
Já num comunicado enviado às redações à tarde, a empresa Douro Azul revelou que o empresário pediu para ser constituído arguido e ser ouvido no processo.
O Atlântida é o que se pode chamar de um navio maldito. Foi encomendado aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), em 2006, pelo Governo dos Açores, mas, três anos mais tarde, como a embarcação não cumpria as especificações encomendadas, foi rejeitado. Como consequência, os ENVC foram obrigados a indemnizar o governo regional em 40 milhões de euros.
No relatório de contas dos estaleiros de Viana de 2012, o navio estava avaliado em 29 milhões de euros. Todavia, dois anos depois, quando foi vendido à Thesarco Shipping, um armador grego, através de um concurso internacional, saiu por 13 milhões. Ou seja, menos de metade do valor.
Num segundo volte-face no percurso do barco, a Thesarco não pagou o valor prometido. Assim, o Atlântida acabou por ir parar à empresa Mystic Cruises, do grupo Douro Azul, que tinha ficado em segundo lugar no concurso, por 8,7 milhões de euros.
Menos de um ano depois, porém, a Douro Azul vendeu o navio a uma empresa norueguesa por cerca de 17 milhões.
Em 2016, a Polícia Judiciária abriu uma investigação à venda do Atlântida e à subconcessão dos estaleiros de Viana. Em declarações à Renascença, o então presidente da Câmara de Viana do Castelo, José Maria Costa, apelidou o navio Atlântida como um exemplo de negócios mal explicados em todo o processo.
“O Governo conseguiu criar mais um excêntrico, neste caso o senhor Mário Ferreira, da Douro Azul, que comprou por 7 milhões e vendeu por 21 milhões aquilo que o Estado não soube ou não quis vender por melhor preço”, afirmou na época.
Em 2017, a venda do Atlântida, através de uma empresa em Malta (que reteve os lucros), foi mencionada nos chamados Malta Files. No ano anterior, o nome de Mário Ferreira constou dos Paradise Papers como um dos empresários portugueses proprietários de empresas com sede em offshores.
Uma das pessoas que mais tem criticado este caso na praça pública tem sido a ex-eurodeputada Ana Gomes. Em 2019, o Mário Ferreira processou mesmo a antiga candidata presidencial, após ela o ter descrito como um “notório escroque/criminoso fiscal” e dito que venda do Atlântida foi “uma vigarice”.
O processo judicial foi arquivado em abril deste ano, Ana Gomes não foi obrigada a indemnizar o empresário. (Acórdão disponível aqui.)
Na terça-feira, antes das buscas, o nome de Mário Ferreira também foi notícia. O jornal “Público” revelou que, da lista de investimentos aprovados pelo novo Banco Português de Fomento (BPF), 40 milhões de euros (52% do total) foram destinados à sociedade anónima Pluris Investments, de Mário Ferreira, que detém 35,38% da Media Capital, dona da TVI.
Ao “Público”, o empresário disse que embora o apoio à capitalização seja creditado àquela sociedade, os fundos serão destinados para apoiar um aumento de capital da empresa de navios turísticos Mystic Cruises.
Em declarações à Renascença, Susana Coroado, presidente da Associação Transparência e Integridade, diz que a Pluris Investments não encaixa no “conceito de pequena e média empresa” a quem se destinam os fundos do Programa de Recapitalização Estratégica do Fundo de Capitalização e Resiliência (FdCR).
“Ontem não foi esclarecido quais foram os critérios que foram utilizados para a atribuição deste fundo. Os critérios iniciais previstos era financiar pequenas e médias empresas que têm dificuldade em financiar na banca tradicional. E não exceder 10 milhões de euros”, diz.
Susana Coroado nota ainda que o caso pode levantar suspeitas de “favoritismo”, principalmente devido à proximidade do empresário nortenho com o Governo. “Diogo Lacerda Machado é uma das figuras mais próximas do primeiro-ministro, já trabalhou em vários governos socialistas, e agora trabalha com Mário Ferreira. O anterior chefe de gabinete do primeiro-ministro Vitor Escária também já trabalhou para a Martinfer, de Mário Ferreira”, afirma.
No entretanto, o Bloco de Esquerda veio exigir que o Presidente do Banco de Fomento venha prestar esclarecimentos sobre a atribuição de fundos no Parlamento.
“É preciso garantir que as empresas que recebem estes fundos são empresas exemplares do ponto de vista da sua relação fiscal. Não podemos permitir ter empresas que recorrem permanentemente a expedientes como empresas em Malta, por exemplo, para fazer os seus negócios, sendo depois beneficiadas com financiamentos públicos, sejam eles de que forma forem”, justificou a deputada Mariana Mortágua.
De acordo com os vários relatos do seu percurso profissional, Mário Ferreira é um self-made man. Contra a vontade dos pais, partiu, aos 16 anos, para Londres, e começou por trabalhar na área da restauração. Foi aprendiz de chefe, mas rapidamente saltou para fora da cozinha e tornou-se gerente.
Aos 20 anos, o homem nascido em Matosinhos aproveitou o convite de um cliente para entrar na vida dos cruzeiros. E assim correu meio mundo, enquanto amealhava dinheiro. Uma década depois, contou ao “Expresso”, já tinha o seu primeiro milhão no banco.
O empresário nortenho casou duas vezes. A primeira com Barbara Rayford, uma rica herdeira norte-americana, que conheceu num cruzeiro. A segunda com a juíza Paula Paz Dias – o padrinho foi o madeirense Joe Berardo. Tem quatro filhos.
Em 2001, foi o responsável por trazer dois ferrys de Roterdão para Castelo de Paiva, após a tragédia da queda da ponte de Entre-os-Rios. Comprou as embarcações por 200 mil contos. Recebeu do Estado 22 mil contos por mês para transportar pessoas e carros, entre as duas margens, durante 11 meses. E no final da operação conseguiu vender os ferrys por 120 mil contos.
Seis anos mais tarde, realizou a excentricidade de competir – a título amador – na última prova do Dakar realizada em África. Num “modesto laranjinha” da Toyota e tendo como co-piloto o empresário bracarense José Carlos Sousa, conseguiu completar todo o percurso.
Para a maioria dos portugueses, Mário Ferreira tornou-se conhecido devido à Douro Azul, empresa de cruzeiros que emprega mais de mil pessoas, e à sua participação no programa Shark Tank da “SIC”.
Em 2021, tornou-se acionista maioritário da Media Capital, dona da TVI e CNN. Antes fora acionista do jornal “ECO”.