Entrevista a Tiago Saraiva

"Quão mais obcecado com a autossuficiência, mais imperialista é um regime"

22 jun, 2022 - 08:57 • Fábio Monteiro

A história do fascismo durante o período do Estado Novo é também a história do trigo e do algodão, defende o historiador e professor na Universidade de Drexel, no estado de Filadélfia, Estados Unidos da América. Em entrevista à Renascença, o autor do livro “Porcos Fascistas – Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo” (ed. Dafne, 2022), diz que Salazar “ocultava as dimensões tecnocientíficas da constituição do regime”.

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Enquanto lia o seu livro lembrei-me várias vezes de um chavão da publicidade contemporânea: somos o que comemos. Depois, comecei a pensar em diferentes variações da mesma ideia: que somos os alimentos que produzimos. E que votamos como comemos.

Faz muito sentido. A ideia é essa mesmo: o ato de comer é um ato político e o ato de cultivar também. O que se produz e como se produz é uma base fundamental para qualquer organização social.

Portanto, a agricultura é uma dimensão política fundamental para quem pretenda compreender as sociedades do século XX e do fascismo.

“Porcos Fascistas” é uma análise biopolítica, aos olhos da agricultura e da pecuária, do fascismo de Hitler, Mussolini e Salazar. Há uma história na origem desta investigação?

A minha ideia inicial foi aplicar os métodos da História da Ciência ao fascismo português. Fiz uma tese sobre isso. O momento decisivo, contudo, talvez tenha sido quando tomei a decisão de alargar o estudo além de Portugal. Pareceu-me que era preciso conhecer o contexto alemão e italiano, para dar sentido ao caso nacional.

Nas experiências fascistas dos três países, houve um acentuar da importância da ideologia do solo, da ideologia da terra, da ruralidade. Tendo Portugal como lente, há ainda outra dimensão muito importante: a colonial.

Os três regimes têm muitos paralelismos entre si. Todos tratam a autonomia alimentar como uma questão geopolítica. No livro, escreve mesmo: “Não houve fascista que não fosse um entusiasta da autarcia alimentar.”

Essa é uma questão em que insisto bastante. As primeiras grandes mobilizações desses regimes fascistas foram sempre campanhas alimentares. No caso de Portugal e de Itália, temos a famosa ‘batalha do trigo’. Na Alemanha, a criação dos porcos. As mobilizações sinalizam que há alguma coisa diferente nestes regimes: constituem novas instituições, que controlam os preços, que controlam a qualidade dos bens. Por cá, dizia-se: a nossa terra é a fronteira que melhor nos defende.

Na campanha do trigo, em particular, há uma relação direta entre o Estado Novo e o regime de Mussolini. As estirpes desenvolvidas por geneticistas italianos são as mesmas que depois foram utilizadas nas campanhas do Alentejo.

Enquanto historiador de ciência, como é que vê as sinergias entre cientistas italianos e portugueses na época?

A ciência costuma dar atenção a coisas como essas: como é que algo circula de um lado para outro. E a chave da narrativa está aí: é preciso muito trabalho para que sementes desenvolvidas em Itália sejam exportadas para Portugal. Há muito trabalho científico para que as coisas que funcionam num lado também funcionem noutro.

Não foi por acaso que o primeiro laboratório criado pelo Estado Novo foi a Estação Agronómica Nacional. Isto revela uma dimensão científica do Estado Novo e do fascismo em Portugal, que tem sido muito pouco estudada e é muito pouco conhecida.

Porquê?

O Estado Novo fazia disso o viver habitualmente. Salazar falava, Salazar dizia, gostava de nos convencer do lado liberal do Estado Novo. De alguma forma, ocultava as dimensões tecnocientíficas da constituição do regime. Além disso, não há uma grande tradição de pensar ciência e fascismo de forma conjunta - a não ser para dizer que o fascismo impossibilitou certas linhas de investigação, ou então naquelas que promoveu, promoveu um certo tipo de investigação criminosa.

Longe de mim negar que houve repressão sobre cientistas durante o fascismo ou que houve experiências feitas, nomeadamente na Alemanha, com seres humanos. Mas há outra dimensão para quem quer perceber a história destes regimes, em que é preciso perguntar: que práticas científicas concretas sustentaram esses regimes?

Parece haver uma contradição entre uma imagem positiva e generalizada da ciência como fonte de progresso social e as consequências terríveis que teve em conjunto com o fascismo.

Ocorreu-me uma correspondência das histórias que conta com o que se está a passar na Ucrânia. Temos um regime que alguns classificariam como fascista a invadir uma nação que, nem por acaso, é apelidada de celeiro da Europa. Vê alguma correlação?

Essa é uma questão muito pertinente. E não é fácil de pensar. Sempre que se discute se o regime de Putin é ou não fascista, há historiadores que discordam. Há quem ache que sim. Há quem ache que não. O que não é discutível, em todo o caso, é a centralidade da Ucrânia na geopolítica europeia e como celeiro da Europa. Já o é há muito tempo.

A Ucrânia aparece de forma preponderante no meu livro. No último capítulo, conto a história de uma estação experimental de ovelhas da raça caracu para produção de algodão, que a Alemanha ali criou, durante a ocupação nazi. A lã era um bem necessário para o sonho colonialista da Alemanha.

Colonialista em que medida? Como Portugal?

Tanto o projeto fascista da Itália como da Alemanha tinham dimensões coloniais. Ao consultar os arquivos, apercebi-me que a forma como as coisas são descritas, os projetos concretos que justificam a ocupação nazi do leste da Europa, tinham por detrás a mesma forma de pensar que Portugal aplicou nas colónias.

Um exemplo óbvio é o algodão. Em Moçambique, a população foi obrigada a produzir algodão – algo que não lhes interessava. Na Ucrânia, os alemães forçaram a plantação de plantas da borracha.

E é aí que entra a genética. É nesta materialização dos sonhos dos ideólogos nazis ou do Estado Novo, de fazerem estes territórios, que não lhes pertencem, sustentar a comunidade nacional. Estes regimes eram obcecados com fazer o solo nacional produzir o suficiente para criar uma tendência expansionista. Quão mais obcecados com a autossuficiência, mais imperialistas são.

Para concretizar o caso do algodão: antes do Estado Novo, Moçambique produzia a uma escala bastante pequena. Depois, gera-se um grande esquema de mobilização para a produção de algodão. É uma obsessão, uma visão forçada - e vai ser o sustento da indústria têxtil portuguesa durante muitos anos.

O que podia ser apenas o sonho de um político com alguns delírios, torna-se possível graças ao trabalho de geneticistas portugueses que desenvolvem novas plantas de algodão resistentes a pragas.

Cientistas portugueses como o antifascista Aurélio Quintanilha [pai do deputado do PS Alexandre Quintanilha].

Perseguido em Portugal, Aurélio Quintanilha vai para Moçambique dirigir o Centro de Investigação Científica Algodoeira. E acaba por contribuir para o regime ao desenvolver novas plantas, torna a atividade sustentável.

Quando Eduardo Mondlane justifica a luta armada contra a presença portuguesa, o que invoca são os presos do algodão. É a violência do mundo do algodão que está que é invocada como para justificar a resistência armada à presença portuguesa. Então, temos um cientista anti Estado Novo a participar numa das histórias mais negras do fascismo português.

O cientista teria consciência de que estava a ajudar?

Vou fugir a essa pergunta. Posso dizer, contudo, que quando nos perguntamos sobre as convicções políticas das pessoas, a parte mais política de fazer ciência é perdida. Esquecemo-nos que há mais atores da História, que não apenas os humanos.

As minhas histórias são sempre sobre animais ou plantas, porque são essenciais para perceber a história de coisas tão gerais como o fascismo.

A ciência nem sempre contribui para o progresso...

Por hábito, discutimos poucas vezes que ciência que precisamos. Assumimos que precisamos sempre de mais ciência, que é uma coisa boa.

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