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Esclerose Lateral Amiotrófica

Viver com ELA a contrarrelógio. “Na minha cabeça, a doença não existe”

21 jun, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro

Esta terça-feira comemora-se o Dia Mundial da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). “Há um atraso muito grande” no diagnóstico de doentes com ELA, que se agravou ainda mais com a pandemia, segundo a Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA). Augusto Silva vive há cinco anos com a doença terminal neurodegenerativa, para a qual só existe um medicamento. Os pacientes “não são suficientes para interessar qualquer laboratório a investigar a sério, a testar novos medicamentos.”

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“Como um tsunami.” Um diagnóstico de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) é um abalo de grandes proporções: para o doente, mas também quem está ao seu lado. “As pessoas têm um sofrimento, começam a ter uma perda funcional [do corpo] que não sabem do que é; têm um sofrimento na busca pelo diagnóstico. Assim que o recebem, preferiam não saber”, diz Filipe Gonçalves, fisioterapeuta que trabalha na Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA) desde 2017, à Renascença.

A violência de uma doença terminal neurodegenerativa como a ELA está no tempo. A esperança média de vida, após diagnóstico, é de três a cinco anos. “É muito duro para um doente ver um prazo, um carimbo” na sua vida; enquanto vai perdendo autonomia – ao ponto de ficar “100% dependente de outrem no seu dia-a-dia” -, começa a ouvir os ponteiros em contrarrelógio.

Para Augusto Silva, 69 anos, “não foi fácil aceitar”. Em março, de 2017, o gestor de empresas e tutor judicial em casos de insolvência, foi diagnosticado com ELA. À data, nem conhecia a doença. “A primeira coisa que nós fazemos, e eu não sou melhor que os outros, foi logo recorrer ao doutor Google. E lá está tudo escarrapachado. Ele dá-nos logo uma noção que se ainda não estivermos mortos, logo estaremos”, conta.

Os primeiros sintomas da doença, no caso de Augusto, manifestaram-se no final de 2016. Então, o gestor era acompanhado, na Casa de Saúde da Boavista (um hospital privado), por um neurologista, devido “a fazer estados depressivos com muita frequência”. Dando como justificação que podia “estar desatualizado”, o médico recomendou-lhe ir fazer alguns testes ao Hospital de Santo António, junto de alguns colegas. “Julgo que ele identificou a doença, mas não quis dizer nada”, conta.

O diagnóstico foi uma bomba. Augusto ainda pensou em ir ver um especialista nos Estados Unidos, mas não o fez; pediu uma segunda opinião de um especialista, e o resultado foi o mesmo. A nível “interior”, a notícia foi dura de assimilar. Pensou: “Ainda tenho os meus objetivos que não estão alcançados.”

Continuar a fazer (e a viver)

Uma média não é uma regra. Nem uma sentença. Augusto Silva foi diagnosticado com ELA há cinco anos – é acompanhado diariamente na Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica e continua a trabalhar. “Eu não fico parado, eu não recuo perante o desafio, eu insisto em fazer. É assim que me tenho dado com as coisas.”

Duas manhãs por semana, Augusto vai até ao escritório da empresa onde é administrador. As tardes, dedica-as aos processos de insolvência que acompanha. “Até há um ano, fazia tudo sozinho. O problema é que as coisas se agravaram. Perdi praticamente a mobilidade dos membros superiores. O lado esquerdo ainda vou conseguindo dominar, o lado direito está perdido. Não escrevo, não assino”, conta.

Podia reformar-se? Podia. Mas, entre risos, confessa: “Eu sou um bocado viciado no trabalho. Às vezes, as pessoas ficam ofendidas quando digo isto. O trabalho é a minha razão de viver. Quer dizer, se não tivesse um trabalho, já teria desaparecido.”

O trabalho do gestor, acima de tudo, é “mental”. No último ano, teve de se habituar a ter um assistente pessoal – fruto de um protocolo do Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI) da Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN) - que o conduz, ajuda a vestir (após as sessões diárias na APELA), escreve e manda mensagens por ele. “Ele no fundo faz tudo o que eu lhe transmito. transcreve tudo o que digo. É a realidade. Estou e tenho atividade, mas se não tiver uma pessoa ao meu lado, não faço nada”, explica.

Casado, com dois filhos e dois netos, Augusto é ainda autónomo em grande parte da sua higiene diária. Sozinho, consegue ainda vestir a parte inferior do corpo. Em casa, diz-se muito “mais dependente” do que no trabalho. “Sei que sou penoso para as pessoas. Sinto que sou um fardo neste momento. Enfim. Foi o que a vida me preparou. Mas eu não desisto”, assegura.

Um medicamento, muitos doentes

Em Portugal, não se sabe ao certo quantas pessoas sofrem de ELA. A melhor estimativa provém da prescrição de Riluzol, fármaco disponibilizado pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) (e único disponível) para retardar a evolução da doença. Acontece que nem todos os doentes o tomam. “Os números estão a crescer um bocadinho, mas em termos de incidência da doença andamos à volta de 900, 950 casos por ano”, conta Filipe Gonçalves.

A prevalência da ELA é baixa, mas a incidência constante. “Vão aparecendo sempre doentes novos e eles vão também acabando por falecer e, portanto, o número é estanque”, nota o fisioterapeuta.

Esta terça-feira comemora-se o Dia Mundial da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Aos olhos de Augusto Silva, a busca por uma cura ou um tratamento está atrasada. Porquê? Os pacientes com ELA “não são suficientes para interessar qualquer laboratório a investigar a sério, a testar novos medicamentos.”

Segundo Augusto, “é difícil explicar às pessoas o que é irmos perdendo faculdades”. “Na minha cabeça, a doença não existe. Só aparece quando quero ir buscar um copo para beber água e não chego ao copo. Quando quero pegar numa caneta e pego inadvertidamente e não escrevo. Ou quero folhear um livro e não consigo”, diz.

O galope da pandemia

Como aconteceu com a maioria dos cuidados de saúde em Portugal, a pandemia da Covid-19 teve, nos últimos dois anos, também teve um impacto no acompanhamento dos doentes com ELA. Um dos aspetos visíveis: o processo de diagnóstico, já moroso em tempos normais, tornou-se ainda mais lento.

Por norma, após aparecerem os primeiros sintomas, são precisos “seis meses para haver um diagnóstico, mais oito meses para um atestado de incapacidade multiusos, e mais um ano para a atribuição de apoios sociais”, conta Filipe Gonçalves. Tendo em conta que, a maior parte dos doentes, no final do primeiro ano “já estão num estado total de dependência de terceiros”, a situação é complicada.

“Há um atraso muito grande. Tudo o que seja reconhecimento da urgência destes doentes, vias rápidas, não existe. Portanto, se estava atrasado, mais atrasado está - para os [casos] pendentes e para os novos”, diz o fisioterapeuta da APELA.

A intervenção médica na ELA é sempre paliativa; visa atenuar a evolução dos sintomas. Ora, devido ao confinamento, alguns doentes viram-se privados “do seu tratamento, rotinas de intervenção”. “Numa doença neurodegenerativa [como a ELA], há uma tendência para a atrofia muscular e neurológica. Se em cima disto nós tirarmos todos os estímulos que sejam preventivos, temos um quadro de desuso que se sobrepõe. Obviamente, este combo faz com que a doença galope um bocadinho mais.”

Para alguns doentes, segundo Filipe, o novo galope da doença foi “notório”. Apesar de o mundo, por breves instantes, ter parado, o relógio de quem foi diagnosticado com ELA nunca parou de contar. Por isso, “muitos dos doentes da altura da pandemia, infelizmente, já faleceram.”

Augusto Silva continua a sua luta. Quando chegar aos 70, se tudo correr bem, pretende afastar-se da administração da empresa e do trabalho de tutor judicial, e ter ainda uma “segunda vida”: escrever e ler. Nas prateleiras de casa, já têm uns quantos tomos de clássicos da literatura portuguesa à espera.

Com ajuda de uma terapeuta da fala da APELA, Augusto aprendeu a escrever com os olhos no computador. E durante o processo escreveu até um pequeno livro de memórias para o neto mais novo, “o meu homenzinho”. Assim que tenha mais tempo livre, quer voltar a essa obra e expandi-la. “Quero deixar algo para ele se lembrar do avô.”

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