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Saúde

O estado e o futuro do SNS em quatro pontos. “Não basta retomar a capacidade de resposta anterior à pandemia”

21 jun, 2022 - 00:00 • Fábio Monteiro

O relatório “E Agora? Primavera de 2022”, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), é divulgado esta terça-feira. Num momento em que o SNS está debaixo de críticas, há dados que ajudam a traçar um retrato dos desafios atuais e futuros. O Governo deve clarificar o que pretende fazer com a “dedicação plena” de profissionais; olhar para os mais carenciados (o fim das taxas moderadoras não é suficiente); reforçar as consultas à distância. Voltar ao pré-pandemia não é suficiente, diz à Renascença Manuel Lopes, um dos coordenadores nacionais do observatório.

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O período de 2019 e 2021 foi excecional, a vários níveis, para o Serviço de Nacional de Saúde (SNS). Apesar da pandemia (e por causa dela), o número de profissionais aumentou de forma significativa (mas a produtividade continuou a baixar), as consultas não-presenciais dispararam (118%) e os internamentos subiram para números nunca vistos (um aumento 1774,6%).

Os dados são avançados pelo relatório “E Agora? Primavera de 2022”, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), que será apresentado, esta terça-feira, numa conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

O documento chega num momento particularmente sensível – com o SNS e a ministra Marta Temido a serem alvos de fortes críticas -, mas Manuel Lopes, um dos coordenadores nacionais do OPSS e docente na Universidade de Évora, ressalva que o “relatório Primavera sai sempre nesta altura".

“Não é mais uma voz a juntar-se ao processo de mediatização. É simplesmente a repetição de um gesto que já fazemos desde 2001 e sempre nesta altura”, sublinha o especialista, em declarações à Renascença. “Queremos que o nosso trabalho contribua para aumentar a confiança no SNS, não um sinal em sentido contrário”, acrescenta.

O relatório da OPSS dá sugestões e levanta problemas em vários campos: desde as sequelas da pandemia à capacidade de resposta do SNS e a dedicação plena dos profissionais de saúde. Segundo Manuel Lopes, no discurso político, nos últimos tempos, tem-se da falado muito da necessidade de o “SNS retomar a capacidade de resposta anterior à pandemia”. A situação, porém, exige outro tipo de resposta.

“A mensagem que transmite é que, apesar da pandemia, e apesar do que já estava mal antes, não se quer mudar nada. Ora o que nós propomos é que não basta retomar a capacidade de resposta anterior à pandemia. Temos de retomá-la, mas de outra forma, com base noutros critérios, com base noutros princípios. Se não, vamos repetir os erros que já fazíamos”, atira.

1. Há mais profissionais (mas falta qualquer coisa)

De março de 2016 até março de 2022, o número de profissionais a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS) aumentou em mais de 30 mil. De acordo com o relatório da OPSS, esta evolução tem sido a principal fonte de crescimento da despesa do SNS.

Entre 2016 e 2021, as despesas aumentaram de 9.130 para 12.386 milhões de euros; 42% (1.353 milhões) do incremento foi causado por aumento da despesa com recursos humanos.

Todavia, desde 2015, a produtividade dos profissionais do SNS tem vindo a decair. “Para isso contribuirão muitos fatores, desde os modelos de cuidados, aos modelos remuneratórios, passando pelas taxas de absentismo, pelas condições estruturais de exercício e pela concorrência do setor privado, todas elas contribuindo de forma mais ou menos acentuada para elevados níveis de burnout, entrando-se assim num círculo vicioso do qual dificilmente sairemos”, aponta o relatório.

Segundo Manuel Lopes, a narrativa da crise de falta de profissionais do SNS deve ser vista à lupa. “Há que destrinçar a falta de profissionais. Pode haver em certas especialidades, certas regiões do país, mas de acordo com as estatísticas internacionais, não há falta de profissionais”, nota.

Uma das soluções que o OPSS aborda é a dedicação plena de profissionais ao SNS – ideia lançada pelo Governo de António Costa. Para o especialista, trata-se de “uma medida que claramente deve ser testada e ver se efetivamente contribui ou não para que as coisas melhorem”.

A medida, em todo o caso, precisa de ser clarificada por parte do Governo. “Será para quem e em que condições? É só um grupo profissional ou todos? Tudo isto está por clarificar. Se disserem que é apenas só para um grupo profissional, nós perguntamos: qual é o problema de saúde que é resolvido apenas com a intervenção de apenas um grupo profissional? É que não conheço nenhum.”

2. Retrato dos hospitais: mais primeiros internamentos

Muitos dos dados compilados no relatório do OPSS apresentam uma correlação direta com a pandemia da Covid-19. No caso dos internamentos em Cuidados de Saúde Hospitalares, isso é particularmente óbvio: os primeiros internamentos passaram de 15.381 em 2019 para 84.745 em 2021, um aumento na ordem dos 451%. Os internamentos subsequentes (pacientes que precisaram de cuidados mais que uma vez) subiram de 14.397 para 269.889 (um aumento de 1774,6%).

Com os hospitais entupidos de casos de Covid-19, os portugueses foram menos às urgências - o volume caiu 19,1% de 2019 para 2021. As maiores reduções verificadas (no período 2019/2020) deram-se nas urgências pediátricas (47,1%) e nas urgências gerais (24,7%).

O registo das triagens na urgência conta também uma história semelhante. As maiores reduções deram-se nos utentes com pulseiras de cor amarela (29,9%), verde (28,9%) e laranja (22,8%).

Por sua vez, as intervenções cirúrgicas, nos últimos dois anos, aumentaram ligeiramente 1,2%. (Houve uma quebra de 18,3% em 2019/2020, mas uma recuperação de 23,9% em 2020/2021.) O mesmo ocorreu no campo das cirurgias programadas, com um incremento de 1,8% no último ano face ao período pré-pandemia, assim como nas cirurgias de ambulatório (programadas, efetuadas em regime de admissão e alta num período inferior a 24 horas), com um crescimento de 5,3%.

Todavia, no terreno das cirurgias convencionais (programadas, efetuadas em regime de internamento), houve uma redução de 5,1%. Nas cirurgias urgentes, também se deu uma redução de 6%.

3. Consultas à distância vieram para ficar

De 2019 para 2021, para fazer face à pandemia, o número de consultas médicas não-presenciais em unidades de Cuidados de Saúde Primários (CSP) passou de 9.241.338 para 20.150.173, um incremento de 118%, enquanto as consultas presenciais sofreram uma queda de 29,7% (de 20.715.472 para 14.557.006).

No campo das consultas ao domicílio, no mesmo período, houve uma redução de 20,6% (de 197.515 para 156.914).

Segundo Manuel Lopes, percebeu-se com a pandemia que os meios tecnológicos podem ser um “aliado poderosíssimo” na saúde. No entanto, trazem consigo alguns desafios. Os profissionais do SNS têm “necessidade de desenvolverem competências de utilização e comunicação” por via destes meios.

“Mesmo do ponto de vista tecnológica, há questões de segurança, de confidencialidade, que precisam de estar sistematicamente a ser reequacionadas, porque obviamente estamos a falar de dados em saúde. E como tal todas essas questões têm de ser colocadas em cima da mesa”, diz.

Ao mesmo tempo, do ponto de vista dos utentes, Manuel Lopes alerta que não se pode permitir que a “introdução de tecnologias traga dificuldade de acesso para os infoexcluídos”. “Mesmo sendo um fator que contribua para a proximidade de muitos, também pode ser um fator que contribua para exclusão de alguns.”

4. Ir além do fim das taxas e taxinhas

O fim de (quase) todas as taxas moderadoras – medida aprovada em Orçamento de Estado para 2022 – não será suficiente para suprir as lacunas no acesso dos portugueses mais pobres aos cuidados de saúde. Afinal, em média, por ano, cada utente gasta 10 euros nestas tarifas.

De acordo com o relatório da OPSS, mais de 26% dos 20% de portugueses mais pobres declaram não ter acesso aos cuidados de saúde por razões financeiras. Manuel Lopes diz ser necessária uma colaboração concertada entre o SNS e a Segurança Social para fazer face a este problema.

“Quando alguém tem de comparticipar do seu bolso parte dos medicamentos que consome, essa parte pesa muita na carteira de quem tem menos. Portugal é um dos países em que aquilo que normalmente se designa como out of pocket (fora do bolso), aquilo que uma pessoa paga do seu bolso no acesso a cuidados de saúde, o valor é mais elevado”, aponta.

Não é por acaso que é hábito ver nas farmácias pessoas “a fazer contas de quais os medicamentos que vão aviar da receita que lhes foi prescrita”. “Para as pessoas mais carenciadas, temos que ter mecanismos que não as privem de ter acesso aos tratamentos que precisam”, diz.

O coordenador da OPSS lembra ainda que há razões exteriores à saúde que são entraves e devem ser contabilizadas. Por exemplo: “Se alguém vive numa zona relativamente isolada e que não tem transportes públicos, para se deslocar a um serviço de saúde, terá que utilizar meios próprios ou pagar um táxi ou coisa que o valha, o que não pode ser muito acessível.”

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