20 mai, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro
Em 2022, receber a notícia que a bateria de um telemóvel (ou computador) se estragou é, na prática, uma certidão de óbito. Se o aparelho ainda estiver dentro da garantia, pode ser trocado, claro. Mas se o prazo já tiver sido ultrapassado, reparar está praticamente fora equação. Em muitos casos, é tão ou mais caro do que comprar um novo. Além disso, as marcas não fornecem peças ou manuais de instruções sobre como reparar.
Longe vão os tempos dos (aparentemente) inquebráveis Nokia 3310 em que as baterias ficavam viciadas, mas podiam ser facilmente substituídas. Hoje, a larga maioria dos telemóveis passaram a ser objetos com sistemas fechados; apenas as marcas que os fabricam tem acesso aos seus interstícios. Alguns são até desenhados para ficaram obsoletos passado pouco tempo.
Ainda em 2021, a Associação Portuguesa de Defesa do Consumidor (DECO), em conjunto com outras entidades europeias, processou a Apple, por ter encurtado o tempo de vida dos modelos de iPhone 6 e 6 Plus, 6S e 6S Plus, ao deixar de disponibilizar atualizações do sistema operativo.
No universo dos eletrodomésticos, a situação é basicamente a mesma. Uma torradeira avariou-se depois de ter passado a garantia? É muito provável que vá parar ao lixo. Uma máquina de lavar a roupa precisa de uma peça nova? Idem aspas.
De acordo com o Fórum REEE, o volume de lixo eletrónico está a aumentar 3% ao ano; ao nível da União Europeia, é a fonte de resíduos com crescimento mais rápido. Só em 2017, mais de 3,5 milhões de toneladas deste tipo de resíduos foram recolhidas, das quais apenas 40% foram recicladas.
Não é de espantar, pois, que a Comissão Europeia esteja de olho nesta conjuntura. No terceiro trimestre de 2022, um pacote legislativo relativo ao “Direito à Reparação” promete trazer uma série de mudanças – e obrigações para as empresas fornecedoras de bens eletrónicos. Uma, por exemplo, poderá passar pelo regresso das baterias removíveis para os telemóveis.
Fica a pergunta no ar: os europeus deixaram de querer reparar?
Um inquérito do Eurobarómetro de 2020 indica que 77% dos consumidores europeus preferem reparar os seus produtos a comprar novos. Só não o fazem, acima de tudo, devido ao custo elevado e porque, em muitos casos, isso não é uma possibilidade: as empresas não disponibilizam nem peças nem manuais.
Fátima Barata, de 52 anos, e Luísa Lisboa, de 44 anos, fazem parte destes 77% dos consumidores europeus. Aliás, estão uns quantos passos à frente. As duas ativistas são dinamizadoras do projeto Cafés ConSerto, uma iniciativa que nasceu em julho de 2017, inspirada pelo movimento Repair Café Internacional, na Holanda. Nestes eventos, as pessoas juntam-se num espaço para reparar bens eletrónicos em comunidade, de forma gratuita. Cada voluntário traz a sua expertise.
As pessoas que aparecem nos Cafés ConSerto com algum eletrodoméstico avariado e veem o seu problema resolvido ficam com um “ar estarrecido”, conta Fátima Barata. “Somos sempre olhados como um unicórnio. Estas pessoas vieram aqui ajudar-me e não ganham nada com isso? Nós ganhamos a vários níveis. No convívio, na parte humana. Ganhamos no acordar as pessoas para outras formas de organização socioeconómica, que não precisam de passar sempre pelo dinheiro nem pelo lucro.”
Fátima conta à Renascença algumas situações em que foi possível ajudar. Aquela vez em que o marido, um dos voluntários do grupo, conseguiu salvar um forno. “Era uma pequena peça, que podia ser substituída. Ele explicou onde podiam comprar e como meter.” Aquela do casal com dois aspiradores avariados. “Desmontaram aquilo e conseguiram perceber que, apesar de serem de marcas diferentes, podiam colocar o motor de um no outro.” Ou a vez em que apareceu uma senhora com uma máquina de costura, cuja lâmpada estava fundida. “São coisas simples, mas que muitas pessoas não têm competências para fazer.”
Os casos que Fátima conta, porém, não são a regra. Luísa Lisboa diz que a probabilidade de “reparar alguma coisa num encontro é mínima”. “A reparação, para ser eficaz, deve ser profissional. E deve ter todo um pré-trabalho para tornar a reparação eficaz e económica”, explica.
Segundo Luísa, a “reparação funciona para coisas que tenham um valor tecnológico relevante ou emocional.” A não ser que uma pessoa “tenha um particular interesse com a questão da sustentabilidade”, é fácil cair no raciocínio: “Para que é que vou gastar cinco euros a reparar uma torradeira quando uma nova custa 20 e tem dois anos de garantia?”
Para a ativista, a resposta à última pergunta é simples: a responsabilidade não pode cair nos ombros dos cidadãos. A mudança, defende, deve acontecer ao “nível legislativo”.
Se Fátima Barata e Luísa Lisboa estão no terreno na luta pelo Direito à Reparação, Maria Manuel Marques Leitão, eurodeputada do PS, e Maria da Graça Carvalho, eurodeputada do PSD, estão na frente da batalha em Bruxelas.
Algumas das medidas em causa: tornar as reparações mais atrativas para os consumidores através, por exemplo, de um bónus pela reparação de um dispositivo defeituoso ou da receção de um dispositivo de substituição durante a reparação; obrigar os fabricantes a concederem acesso gratuito às informações de reparação e manutenção e a garantirem atualizações de software durante um período mínimo; garantir que os dispositivos são mais duráveis, mais fáceis de reparar e incluem peças removíveis e substituíveis; oferecer uma informação de qualidade ao consumidor sobre a “reparabilidade” dos dispositivos; prolongar as garantias.
A representante socialista lembra um tempo em que “comprávamos e escolhíamos dando preferência ao que durava mais tempo”. Deu-se, contudo, uma mudança cultural significativa nas últimas décadas – em Portugal e na Europa. E muitos bens perderam qualidade e reparar deixou de ser um hábito.
Em muitas situações, “não há peças ou não há pessoas disponíveis com as competências necessárias para fazer essa reparação, os chamados reparadores independentes. É todo este ecossistema que já existiu outrora e que temos de incentivar”, defende Maria Manuel Marques Leitão. “Não pode se uma opção individual”, alerta.
De acordo com estudos da Comissão Europeia, os empregos perdidos por uma diminuição de consumo de bens podem ser compensados pela criação de um novo ecossistema de reparadores. Maria da Graça Carvalho fala em dinamismo e “economia de proximidade”.
“Há alguns empregos que se podem perder devido aos bens eletrónicos terem um tempo de vida mais longo. Mas estou convencida que são menores e não são tanto de proximidade. Acho que é positivo do ponto de vista do emprego. E depois do ponto de vista da sustentabilidade ambiental e da economia circular”, diz.
Tendo em conta o conflito na Ucrânia, que agravou ainda mais a escassez de matérias-primas e chips, algo que já se fez sentir durante o período de pandemia, o Direito à Reparação pode ser ainda mais essencial.
“Ajuda bastante. O Direito à Reparação tem várias vertentes. Uma delas é ajudar na falta de matérias-primas e também poupar energia. Produzir equipamentos novos consome bastante energia. São duas fragilidades europeias”, lembra a eurodeputada social-democrata.
As mudanças que se avizinham irão ter, é evidente, um impacto junto das marcas. Algumas prometem oferecer resistência. Mas, neste ponto, Maria Manuel Marques Leitão não está preocupada. “Muitas destas mudanças não se fazem apenas pela bondade das propostas ou por haver um certo consenso em torno delas. Muitas fazem-se com incentivos, com cenouras, como se costuma dizer. Incentivo aos produtores. Por exemplo, usar os fundos comunitários para criar este sistema de reparação, para incentivar a maior duração dos produtos”, explica.
Num mundo ideal, nota, as empresas adotariam as boas práticas “porque isso lhes fica bem” e ajuda à reputação junto dos consumidores. Mas, segundo a eurodeputada socialista, quando “as cenouras” não funcionam “vai mesmo às regras obrigatórias, como esta do carregador [de telemóvel] único” que está prestes a ser aprovada.
Maria da Graça Carvalho, por sua vez, espera que as empresas vejam uma oportunidade “para criar departamentos de reparação”. “Isto para as pequenas e médias empresas pode ser interessante.” Ao nível europeu, “pode ser muito benéfico para a uma reindustrilização”.
“Temos muita falta de profissionais de saber fazer, mãos na massa. E para se criar uma sociedade líder a nível industrial, não se necessita só de tecnologia de ponta. Ela precisa de ter essa base, de saber fazer coisas simples”, afirma.