09 mai, 2022 - 09:55 • Filipa Ribeiro
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Quase um mês depois de terem chegado a Portugal, Dmytro e Olesya já têm uma rotina semelhante à que deixaram em Odessa, na Ucrânia. A mãe, Natália, conseguiu matriculá-los e à irmã mais nova no Agrupamento de Escolas do Restelo. Dmytro, de 11 anos, e Olesya, de 13, estão os dois na escola de 2.º e 3.º ciclo Paula Vicente, no 5.º e 7.º ano, respetivamente. Diana foi colocada no básico.
Os irmãos apanham o autocarro ao pé de casa todos os dias às 8h00, chegam à escola 15 minutos depois. Dmytro já chega atrasado, porque as aulas do 5.º ano começam às 8h00, mas confessa que “prefere ficar mais 15 minutos na cama” para ir com a irmã no autocarro. Já Olesya chega sempre a tempo, as aulas para ela começam às 8h30 e enquanto aguarda come qualquer coisa no bar da escola.
Paula, funcionária do bar, tem autorização para dar aos alunos refugiados o pequeno-almoço e o lanche de reforço durante a manhã, custos que são suportados pela escola.
Estão inscritos na escola desde o dia 23 de Março e foram colocados, propositadamente, em turmas que têm alunos ucranianos que vivem há mais tempo em Portugal, com a missão de os integrar e de quebrar parte da barreira da língua.
Dmytro já tem uma alcunha: Dima.
“Estou bem, já tenho amigos, mais de seis de certeza. Nos intervalos estou sempre a jogar futebol. Esta escola não é muito diferente da escola ucraniana, mas lá eu e os meus colegas estávamos sempre à luta para ver quem era o mais forte, aqui as pessoas são mais calma”.
Passa o tempo livre a jogar a bola. “Sou defesa”, diz, confessando que às vezes ele e os colegas ucranianos não conseguem vencer os portugueses: “Eles são muitos”.
Prefere Educação Física à Matemática, mas diz que quer estudar “para ter uma profissão interessante”. Em Portugal descobriu uma nova paixão, a música. Educação Musical é a aula preferida: “Gostei muito da primeira aula de música, aprendemos um instrumento, a flauta.”
Dmytro está a encarar o português como um desafio, os olhos brilham sempre que diz uma palavra em português. “Bom dia, como estás, obrigada ... 1,2,3,4…”, vai dizendo, para mostrar o avanço na língua. Acompanhar as aulas tem sido complicado devido às diferenças no alfabeto, mas garante que já sabe escrever coisas em português.
Sentada junto a Dima está a irmã mais velha, Olesya. Mais consciente sobre o que se passa do outro lado do continente, diz que não quer falar sobre a guerra na Ucrânia.
“Às vezes aqui na escola perguntam: Vocês são Putin? E eu respondo: Não! Somos Zelenskiy! Não sei porque é que perguntam estas coisas.”
O tema “guerra” é evitado por Olesya, Dmytro e os restantes sete alunos ucranianos que estão já matriculados na mesma escola.
Ao contrário de Dmytro, Olesya está a gostar mais de todas as aulas - a preferida é Física e Química. “Não sei ainda o que quero ser no futuro. Já quis muitas coisas e acabo sempre por mudar de ideias”, confessa. Como sabe o básico da língua inglesa tem sido fácil acompanhar algumas matérias. “Os professores explicam em inglês e eu consigo acompanhar, o português ainda é difícil”. Ainda assim, também sabe cumprimentar em português e agradecer.
A língua portuguesa é treinada na escola e em casa, com a mãe e a avó. Na lista feita por Dmytro e Olesya, a mãe é a que sabe falar mais português na família, depois a avó, depois Dmytro e Olesya. “Eu sei falar melhor que a Olesya”, diz Dima, para que não restem dúvidas.
Para Olesya, é normal não conseguir acompanhar tão bem a língua portuguesa, explicando que, por isso, tem passado os intervalos da escola com outros colegas da Ucrânia. “Também falo com outros alunos, mas não os percebo bem”.
Em casa utiliza todos os dias o Telegram para falar com os amigos que ficaram em Odessa. “Falo com os meus amigos de Odessa, várias vezes. Estão preocupados com a situação”, diz.
Apesar das saudades, sente que a escola em Portugal não é muito diferente da de Odessa. “Na minha escola havia mais alunos e as aulas eram interrompidas de cinco em cinco minutos. Aqui não, é mais calmo, o que é bom”, diz. Uma das coisas que mais tem notado é a solidariedade dos colegas.
“Recebemos muita ajuda. Ajudam com comida, roupa, cadernos, outro material escolar... muitas ajudas”.
Todas as sextas-feiras, os alunos ucranianos passam por uma sala junto ao gabinete da coordenação da escola. Lá está montada uma mercearia, pronto a vestir e papelaria destinada aos alunos refugiados e às famílias. Às sextas-feiras são distribuídos sacos com bens alimentares e produtos de higiene.
A Escola Básica 2/3 Paula Vicente, por estar situada no Restelo e junto às embaixadas, já está habituada a receber alunos de várias origens e, neste momento, tem nove alunos refugiados da Ucrânia matriculados.
De acordo com o coordenador, David Casimiro, esta “é uma escola familiar” que começou a receber alunos assim que chegaram as primeiras famílias de refugiados a Portugal.
“Quando começaram a chegar refugiados, a escola recebeu algumas crianças logo no início, entre eles vinham o Dima e a Olesya. O início foi complicado, mas com a nossa vontade conseguimos falar com eles e integrá-los numa turma onde já havia um aluno ucraniano de anos anteriores. Foi meio caminho andado para uma boa integração”.
Ainda assim, levou uns dias até que os alunos aceitassem as ajudas. De acordo com o coordenador da escola, todas as semanas os pais das outras crianças entregam bens essenciais e comida para serem distribuídos em cabazes pelos alunos refugiados. Até agora, a escola já distribuiu 28 cabazes.
À quinta-feira, com a ajuda das funcionárias os bens são divididos por sacos e à sexta-feira são enviadas mensagens aos responsáveis das famílias ucranianas, ou até mesmo as crianças para fazerem o levantamento. Ainda assim, sempre que necessário, os alunos estão autorizados a pedir para ir à sala para levantarem material escolar, roupa ou alimentação.
“No início estavam preocupados por receber os cabazes. Eu próprio fiz questão de conversar com eles e já estão normalizados. É importante apoiar as famílias”.
A maior parte dos alunos faz todas as refeições na escola, onde o pequeno-almoço é assegurado e recebem ajuda da Câmara Municipal de Lisboa para as senhas de almoço. A escola faz ainda um acompanhamento diário a estes alunos. Ao longo dos corredores, são visíveis várias imagens que apelam à solidariedade e à igualdade.
Cabe ao coordenador contactar quase todos os dias com os alunos e com as famílias. Para ultrapassar a barreira da linguagem, David Casimiro tem instalada no telemóvel uma aplicação - SayHi - que faz traduções no momento através de gravações áudio.
Dmytro acompanhou o responsável pela escola até ao bar. “Dmytro, queres comer?” perguntou David Casimiro a falar para o telemóvel. Do outro lado, surgiu uma voz a fazer a mesma pergunta em ucraniano. Dmytro responde para o telemóvel e o tradutor diz “Obrigada, mas já comi”.
Também a restante comunidade escolar tem acompanhado estes alunos. Os colegas estão ansiosos por receber mais crianças da Ucrânia. “Estão muto entusiasmados. Há turmas que querem receber mais alunos ucranianos, eles perceberam que a situação era grave e sempre que recebemos alguém falamos com eles atempadamente”, diz o professor.
Assim que começaram a integrar alunos, os professores da Escola Paula Vicente reuniram para falar sobre os critérios que iriam ser aplicados para a avaliação.
“Vai ser feita de professor para professor”, explica David Casimiro. “Sabemos que vão existir dificuldades, mas o objetivo é integrá-los”. No final do ano letivo, os alunos vão ser estudados caso a caso. “Eu julgo que eles estão a conseguir fazer um trabalho regular e efetivo”, diz o coordenador sobre os alunos.
A carga horária do grupo de alunos refugiados é semelhante aos dos restantes colegas, estando apenas dispensados de disciplinas como História e frequenta aulas de Português Língua não Materna três a cinco vezes por semana.
Durante a tarde participam ainda em atividades extracurriculares que têm sido garantidas com a ajuda da junta de freguesia de Belém e do Belenenses.
Olesya, por exemplo, foi inscrita na natação - frequenta as aulas à sexta-feira à tarde.
Já Dmytro pode chegar a ser aluno da Academia de Música de Lisboa.
“Eu já percebi que o Dima gosta muito de futebol e de música. Temos uma boa relação com a academia de música de Lisboa e até estamos a ponderar convidar o Dima a integrar o ensino articulado para ter um nível de música mais aperfeiçoado”.
Os trabalhos de casa são também uma das apostas da escola, apesar de serem atribuídos numa carga mais leve. Para a realização dos trabalhos de casa a escola utiliza a Classroom uma ferramenta muito utilizada durante o confinamento. David Casimiro diz que a adaptação tem corrido bem para estes alunos ucranianos que já sabem funcionar com a ferramenta nova. Com a Classroom, estes alunos conseguem traduzir mais facilmente os desafios e aprenderem o alfabeto utilizado em Portugal.
Na escola, se não fosse a curiosidade de alguns colegas no intervalo, nunca se falava da Guerra na Ucrânia. Fi estabelecido entre os professores que só falariam do tema se algum aluno ucraniano tocasse no assunto. “É uma questão da reserva deles e respeitamos profundamente. Eles também não tocam no assunto e é preferível porque assim não estão a recordar”, explica o coordenador da Escola.
Para dar apoio, a escola dispõe de uma psicóloga que está sempre disponível para falar com os jovens. Já foi consultada por alguns destes alunos. “Eles já sabem onde ficam os espaços da escola e podem procurá-la”.
Também nas aulas de Português Língua Não Materna frequentada apenas pelas crianças que fugiram à Guerra, não se fala sobre o que está a acontecer na Ucrânia. A ajudar a lecionar a disciplina esta a professora de artes Maria José Nicolau.
“Eu tenho estado pacientemente à espera de que eles abordem o assunto. Eu não o vou puxar, acho que eles é que têm de falar. Não tenho a noção do que vai na cabeça deles”.
Maria José Nicolau juntou-se há pouco à disciplina de Português Língua Não Materna que é coordenada pela professora de inglês Mafalda Manita.
Enquanto a professora Mafalda Manita leciona mais os conteúdos gramáticos, a professora Maria José Nicolau treina com os alunos a pronuncia das palavras. Devido às diferenças no alfabeto recorre muitas vezes ao desenho para ensinar palavras e objetos em português. Maria José Nicolau confessa que tem receio muitas vezes de perguntar aos alunos qual a sua origem, a cidade de onde vieram.
“Eles têm uma capacidade de adaptação muito grande. O que noto é que em alguns meninos há uma grande tristeza no olhar e é muito emocionante para mim. Está a ser um desafio muito grande. Às vezes apetece-me dar-lhes abraços. Fico muto constrangida por ver estes jovens com esta carga e dor”.
Para captar a atenção, utiliza sempre estratégias diferentes e algum sentido de humor para distrair os alunos. “Na biblioteca temos computadores já preparados com o alfabeto português e ucraniano e vamo-nos desenvencilhando”, conta. As professoras começaram por ensinar o básico, como a pedir comida, a pedir um bilhete de autocarro e mais temas do dia a dia.
Numa das últimas aulas a professora Maria José Nicolau decidiu inovar e acabou a aula com as lágrimas nos olhos. O objetivo na aula era que as crianças aprendessem a contar até 20 em português. Para isso a professora recorreu à música e colocou os alunos a cantar.
“Quando vi que eles já estavam à vontade com a numeração, pedi que procurassem uma música em português que gostassem e assim aprendiam palavras novas. Mas enquanto isso, uma aluna começou a cantar em ucraniano, eu perguntei que música era, mas ninguém respondeu. Em pouco tempo todos os alunos se levantaram colocaram a mão no peito e continuavam a cantar. Percebi que era o hino e emocionei-me" conta a professora com um brilho nos olhos.
A aula acabou assim com o hino que diz “A Ucrânia não morreu”.
Enquanto Olesya e Dmytro vão à escola Natalia Stankevych e Tatyana frequentam cursos de inglês e português. Não tem sido fácil encontrar trabalho por causa das dificuldades com a língua. Estão há dois meses sem trabalhar. O marido de Natalia, pai das crianças, continua em alto mar, numa empresa de navios da Grécia e tem enviado alguma ajuda financeira para a família. Já o avô, médico, continua impedido de sair da Ucrânia. Tem feito várias tentativas para sair, mas sem sucesso. Tem vivido um dia de cada vez, enquanto assiste à destruição da cidade de Odessa e da Ucrânia.
Já a Santa e a Uma, as duas cadelas da família, têm recebido apoio de várias associações que lhes entregam ração e cuidados veterinários.
São duas mulheres adultas, três crianças e duas ca(...)