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Kiev ou Kyiv? Mais do que uma dúvida linguística

02 mai, 2022 - 06:30 • Redação

O professor e linguista João Veloso explica esta e muitas outras questões - como Moldávia ou Moldova - que a guerra na Ucrânia colocou aos falantes de português.

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Que a língua portuguesa é traiçoeira não é, de todo, uma novidade. Ouve-se que é um idioma complicado de aprender, falar e compreender. Para os nativos, a dificuldade não se prende com estes aspetos, mas nas "manhas" gramaticais, exceções e ratoeiras que a língua insiste em pregar.

Há sempre discussões entre qualquer falante da língua portuguesa sobre a pronúncia correta de determinadas palavras. Quer a divergência surja por sotaque ou mesmo pela incerteza que a língua de Camões provoca.

Nos últimos tempos, com o espoletar da guerra na Ucrânia, a utilização de nomes estrangeiros, desafilhados da língua portuguesa, tem vindo a ser cada vez mais frequente. Kiev, Lviv, Mariupol... são todos nomes de cidades ucranianas que, pela presença contínua, parecem já parte da família linguística portuguesa.

Contudo, também a pronúncia de algumas destas palavras, que o conflito trouxe, se tornou incerta. Há quem diga “Kiev” [kiɛv] ou “Kyiv” [kiv], Moldávia ou Moldova. A Renascença foi perceber a razão destas confusões fonéticas e quais as formas corretas de pronunciar cada uma destas palavras. Chamar as coisas pelos nomes pode ser também uma questão política, em alguns casos.

O professor e linguista João Veloso, da Universidade do Porto, explica esta e muitas outras questões que ainda levantam bastantes dúvidas na cabeça dos falantes de português.

“São nomes próprios e são topónimos. São nomes de lugares. Mas isto é uma velha questão que tem sido levantada até por alguns linguistas. Nós neste momento, em Portugal, não temos uma lista oficial dos topónimos estrangeiros que deveríamos usar. No caso concreto, de Kiev e Kyiv, há uma outra questão que se coloca, que é a seguinte. Kiev é o nome russo da cidade, Kyiv é o nome ucraniano da cidade”, diz o catedrático.

João Veloso explica ainda que a influência do idioma russo nos países pertencentes à antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) é bastante grande e que “as línguas russa e ucraniana são línguas muito semelhantes e que têm grandes proximidades fonéticas, gramaticais e lexicais”.

“O nome que acabou por ser adotado na maior parte das línguas europeias foi o nome russo da cidade, porque a Ucrânia esteve durante muito tempo ligada, digamos assim, à Rússia”, acrescenta.

O linguista refere que o surgimento da pronúncia ucraniana Kyiv pode dever-se à vontade de demonstração de apoio à Ucrânia, por parte dos meios de comunicação social e das pessoas, em geral: “eu creio que é uma forma de as pessoas exprimirem apoio total à independência não ambígua da Ucrânia em relação à Rússia.”

Estrela rock ucraniana na frente de batalha agradece apoio de músicos portugueses
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João Veloso vai mais longe e cria a ponte entre a linguística e a política. “Estas questões levam-nos a perguntar: até que ponto há uma opção linguística? Muitas vezes não será também uma opção política?”, questiona.

À Renascença, o linguista esclarece que, “muitas vezes, pensamos no nome dos objetos e no nome dos lugares apenas de forma objetiva. As palavras têm um significado objetivo, mas têm também um significado simbólico. Têm uma carga histórica”.

Moldávia ou Moldova? Como dizer o nome do país entre a Ucrânia e a Roménia?

Kiev e Kyiv não são as únicas dúvidas que o leste europeu tem apresentado à língua portuguesa. Respondida esta questão, João Veloso foca-se na Moldávia. Ou será Moldova?

A pronúncia do nome deste país, situado entre a Ucrânia e a Roménia, tem oscilado constantemente. Há quem o denomine Moldávia, mas há também quem diga Moldova.

João Veloso mostra clareza quanto a esta questão. “Devemos utilizar o nome Moldávia para nos referimos à República Independente e Moldova para designar a parte da Roménia onde se fala moldavo, que é uma língua eslava e não uma língua romena”, explicou.

O docente da Universidade do Porto acrescenta que “há uma certa distinção geográfica”.

“Aquela parte da Europa, como nós temos visto nos últimos tempos, está em constante fervilhar e o moldavo é uma língua que é falada na Moldávia, numa parte da Hungria, na Roménia e numa parte da Moldávia que tem uma grande quantidade de falantes de russo”, esclarece João Veloso.

Em conversa com a Renascença acrescenta que “aquilo que alguns manuais da política nacional aconselham é utilizar o termo Moldávia para nos referimos ao país que tem assento na ONU, que é considerado aceite como um Estado independente pela comunidade internacional”.

“Devemos reservar o termo Moldova, que no fundo é Moldávia em moldavo (idioma falado na Moldávia), para nos referirmos às partes do território da Moldávia que são reclamadas pela Rússia, e a províncias e partes da Roménia e da Hungria, onde se fala moldavo”.

A presença da NATO/OTAN no conflito

Não são apenas os nomes de países e cidades do leste europeu que geram dúvidas. Há certos termos que diferem até mesmo na sigla utilizada. Apesar do nome em português ser Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Portugal ouvimos sempre falar na NATO. NATO é a sigla americana/inglesa, North Atlantic Treaty Organization.

Contudo, se um português estiver em conversa com um brasileiro, ouvirá, certamente, OTAN. Levanta-se a questão: Porque usa o Brasil a sigla portuguesa e Portugal a sigla inglesa?

Quanto a esta dúvida, João Veloso não apresenta tanta certeza. “Eu não encontro nenhuma explicação para o Brasil utilizar a sigla a partir do nome português e nós usarmos a sigla americana/inglesa”, confessa.

No entanto, o especialista apresenta o seu ponto de vista tendo em conta o campo fonológico. Dentro da área da linguística, João Veloso é fonólogo. Partindo desse ponto, o entrevistado pondera existir “uma explicação de ordem fonética que tem a ver com os sons em português. Há mais palavras com estrutura semelhante a NATO, que é a consoante-vogal, consoante-vogal. Nato, pato, bato, rato, por exemplo. Tudo palavras terminadas em vogal oral, há muito poucas palavras terminadas em vogal nasal”.

O fonólogo não descarta, contudo, a possibilidade de existir uma explicação “de ordem cultural e semântica”.

João Veloso recorda que a dualidade NATO/OTAN é uma questão tão velha quanto tem memória. "Lembro-me que há uns 20 ou 30 anos, quando era miúdo, essa questão colocava-se muitas vezes e creio - eu não sei se não estou enganado -, mas que alguns falantes mais idosos ainda usam mesmo a sigla OTAN, em Portugal”, explica o linguista.

A invasão inglesa

A entrada de palavras e expressões estrangeiras “é uma das formas da língua evoluir”, afirma. João Veloso não considera que a chegada de novas palavras, principalmente do inglês, sejam uma ameaça à língua portuguesa. “Acho que é uma moda. O inglês é a língua do momento, mas a linguística mostra-nos que muitas destas palavras não sobrevivem", garante.

“É uma das formas que a língua tem para evoluir, recorrendo à importação lexical, indo buscar palavras de outras línguas. Destas palavras muitas não sobrevivem. Portanto, são conceitos também muito temporários. Outras sobrevivem, umas encontram o equivalente em português, outras vão-se aportuguesar, ou seja, formatar o som e a estrutura da palavra, às regras da língua portuguesa. Há ainda outras, que são sempre uma minoria, que se vão manter e acabar por integrar o léxico, como shopping, por exemplo”, explica.

João Veloso diz que os estrangeirismos são bem-vindos para a boa evolução de um idioma, e garante ainda que estes não são uma ameaça para uma língua “com cerca de 250 milhões de falantes”.

O docente deixa ainda uma mensagem de tranquilidade para todos os que temem a invasão da língua inglesa trazida pelos mais jovens: "uma língua como o português não morre de um dia para o outro. A entrada destas palavras não é uma ameaça, é uma forma de enriquecer a língua".

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