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Vigiar a Covid-19 como gripe? Novo modelo deverá estar concluído até outubro

28 jan, 2022 - 00:10 • Joana Gonçalves

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge está estudar um novo sistema de vigilância da Covid-19, que se baseia em modelos de amostragem com estimativas semanais. “A muito curto prazo, teremos em simultâneo os dois sistemas a funcionar", adianta especialista do departamento de epidemiologia do INSA. O programa de vacinação poderá assumir um carácter anual e adaptado.

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Há muito que se antevê o fim dos boletins diários da Direção-Geral da Saúde e nas últimas semanas têm sido vários os apelos de médicos e especialistas no sentido de adaptar a estratégia de gestão da pandemia, à nova fase que atravessa o país.

A confirmar-se a transição do cenário epidemiológico nacional para um quadro pós-pandémico, que modelo servirá de alternativa ao que nos habituámos a seguir nos últimos dois anos? Por enquanto, o protocolo não está fechado, mas já é possível apontar algumas alterações quase certas, que o aproximam do atual sistema de vigilância sentinela da gripe.

Portugal tem pela frente dois possíveis cenários, depois de declarado o fim da pandemia. Por um lado, “podemos passar para um estado em que haverá sempre circulação do vírus, com um nível constante no número de casos”, por outro, “pode acontecer uma situação semelhante à da gripe, em que a frequência da infeção vai variando ao longo do tempo, por surtos”.

Os quadros são traçados por Ana Paula Rodrigues, especialista do departamento de epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). A investigadora não arrisca avançar certezas absolutas, mas adianta que é “altamente provável termos uma situação semelhante à da gripe ou de outras infecções respiratórias, em que venhamos a observar picos e epidemias de Covid-19, de forma mais ou menos regular”. No início vai ser difícil definir um padrão previsível, mas com o tempo espera-se que “vá estabilizando”, explica em entrevista à Renascença.

De acordo com a responsável pelo Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios, outubro é a meta para o fim da adaptação de toda a vigilância do próximo Outono/ Inverno. Para além do rastreio, também o plano de vacinação deverá estar definido.

Da atualização diária de casos às estimativas semanais

Os especialistas do INSA estão, por esta altura, a estudar a transição do modelo de vigilância, para que deixe de incidir sobre toda a população residente em Portugal e passe a basear-se “numa amostragem entre hospitais, centros de saúde e médicos de família, que vão de, uma forma regular, sistemática e com os mesmos critérios, identificando casos de Covid-19, gripe e outras infecções respiratórias, para que haja estimativas semanais”.

A confirmar-se, estaremos perante o já anunciado fim dos boletins diários da DGS. “É um cenário que nós temos posto sempre em cima da mesa, desde o início da pandemia”, adianta Ana Paula Rodrigues. “Apesar de não publicarmos estimativas diárias para a gripe, calculamos de maneira a conseguir detectar com alguma antecedência variações importantes e é provável que este modelo venha a ser ajustado e adaptado para incluir também a Covid-19, com as suas especificidades num futuro não muito longínquo”, acrescenta.

Este tipo de vigilância por amostragem é conhecido como vigilância sentinela e já é aplicado atualmente em Portugal, no caso da gripe.

Mas a transição não deverá ser abrupta. A especialista do INSA prevê que haja um período em que os dois sistemas (o atual e o novo) funcionem em simultâneo. “É provável e o ideal é que isso aconteça”. “Só assim conseguiremos validar a nova metodologia e saber o que é que os dados recolhidos representam em relação aquilo que estamos a medir atualmente”, refere.

“A muito curto prazo, poucos meses, teremos em simultâneo os dois sistemas a funcionar e, depois de verificado que o novo sistema recolhe a informação que precisamos, transitar para este modelo”. De acordo com a médica de saúde pública, esta alteração implica, também, vários ajustes na estratégia de testagem, nos critérios de definição de casos e no rastreio de contactos.

Menos recursos humanos e mais eficiência

Com o elevado número de casos diários de Covid-19, começa a ser cada vez mais difícil rastrear o total de infeções no país, num esforço que recai sobre os profissionais de saúde.

Uma das vantagens do novo sistema de vigilância, centrado em modelos de amostragem, é a possibilidade de libertar médicos e enfermeiros desta tarefa. “Certamente, não vamos precisar que todos os médicos, quer pertençam ao Serviço Nacional de Saúde ou não, todos os laboratórios e todos os hospitais estejam diariamente a reportar todos os casos que vêem e que diagnosticam”, reforça Ana Paula Rodrigues.

“Para ter uma ideia, na gripe, temos cerca de 50 hospitais que reportam semanalmente o número de casos que são diagnosticados. A informação que é recolhida também é uma informação mais sumária. Há um menor número de variáveis que são recolhidas. E depois temos, também, 50 serviços de urgência a trabalhar neste sistema. Cerca de 120 médicos numa rede sentinela que notificam também estes casos”, esclarece.

Estes números poderão ser ajustados de acordo com a necessidade de representatividade geográfica e até por faixas etárias, “mas os valores, na ordem das dezenas ou centenas de unidades ou médicos são muito inferiores ao universo de médicos e profissionais de saúde que temos atualmente a reportar os casos que acontecem diariamente”, garante.

Para além disso, a aposta da DGS deverá ser numa resposta automatizada, uma vez que Portugal é um dos países europeus que tem já grande parte da informação de saúde informatizada, como os registos clínicos, por exemplo. Também esta será uma forma de diminuir o volume de trabalho na notificação de casos.

A investigadora avança, também, que a atual equipa da rede de médicos sentinela deverá assegurar esta vigilância, juntamente com alguns reforços que se espera que sejam assegurados, entretanto.

“É bom usarmos o conhecimento e a formação que estes médicos já têm na vigilância da gripe, também para a Covid-19. Por outro lado, ganhamos alguma eficiência, porque um médico que vê um doente com uma infeção respiratória, recolhe a amostra e envia-a para um laboratório onde é testada para SARS-CoV-2, para a gripe, para VSR (Vírus sincicial respiratório) e outros vírus. Portanto, com a mesma informação recolhida consegue-se testar e caracterizar e identificar os vírus que estão em circulação”, defende a médica.

Dois novos desafios

Apesar dos benefícios apontados, Raquel Guiomar reconhece dois desafios acrescidos. Por um lado a qualidade da informação e por outros a eficiência da recolha.

“Tem que ser garantido que os casos que são reportados num programa de vigilância epidemiológica são representativos da população. Esse é o maior desafio nesta adaptação. Não podemos perder informação”, alerta a especialista.

Para a responsável pelo Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios, “o outro desafio é incluir uma recolha de um conjunto de informação que seja exequível e que seja o mínimo possível com o máximo de informação. Esse é um desafio também para os sistemas de vigilância. E é nisso que vamos ter que trabalhar”.

Um programa de vacinação anual e adaptado

São vários os grupos de peritos que se dedicam, atualmente, à avaliação da melhor estratégia de vacinação contra Covid-19. A Organização Mundial de Saúde constituiu um grupo de trabalho para avaliar a situação e, em Portugal, o cenário está a ser avaliado pela comissão técnica de vacinação

Ana Paula Rodrigues lembra que a actualização das vacinas com novas variantes e com os vírus que estão a circular é algo que já se faz para a vacina da gripe. “Pode ser por aí que as coisas se vão encaminhar também com o SARS-CoV-2”.

As duas investigadores defendem que “pode haver benefícios em ter vacinas adaptadas, que conferem maior proteção contra as variantes que estão a circular, mantendo igual proteção para outras variantes, como a Delta, que ainda circulam”.

Apesar de admitirem um cenário em que a vacinação contra a Covid-19 assume uma frequência anual, com campanhas de vacinação focadas em grupos de maior risco, num período anterior ao que se prevê que venham a ser os picos da doença, para já não há, ainda, um consenso científico.

O fim do reporte de assintomáticos

Já esta semana, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC) emitiu um conjunto de orientações que apelam a uma mudança de estratégia da gestão de surtos de Covid-19.

Entre elas surge a importância de reportar apenas os doentes com sintomas da doença, mais uma vez, à semelhança do que acontece com a gripe.

“A Vigilância da Gripe tinha como pressuposto uma definição de caso, com um conjunto de sinais e sintomas que motivaram a recolha de informação clínica desses doentes e também de uma amostra respiratória para diagnóstico, não incluía a testagem de indivíduos assintomáticos, como se tem feito durante a pandemia”, explica Raquel Guiomar. A definição de caso pode, por isso, voltar a incluir apenas os indivíduos sintomáticos.

Também as regras de isolamento e uso de máscara devem sofrer alterações, mas "devíamos levar desta experiência aquilo que correu bem no controlo quer da Covid-19, quer de outras infecções respiratórias, para que no futuro as consigamos controlar de uma maneira mais eficaz", defende Ana Paula Rodrigues

"A utilização de máscara de forma sistemática e em todas as situações, acho que não teremos no futuro, mas a utilização em alguns contextos, por exemplo alguém que está constipado, ou que vá a espaços onde o risco de contacto com um vírus seja maior, como por exemplo unidades de saúde, justificará a utilização de máscaras", conclui.

De acordo com o mais recente modelo epidemiológico da plataforma Covid-19 insights, o pico da pandemia em Portugal deverá ocorrer depois da segunda semana de fevereiro com cerca de 95 mil infeções diárias.

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