​REPORTAGEM

O que trazem os estrangeiros a Portugal?

28 jan, 2022 - 14:46 • Ana Catarina André

Os imigrantes têm cada vez mais impacto na demografia e na economia portuguesas. Na Mouraria, em Lisboa, vivem pessoas de mais de 56 nacionalidades. Rasel criou uma associação de apoio à comunidade, Ivan lidera dois projetos na área social e Júlia trabalha como investigadora. Este domingo, a brasileira vota pela primeira vez nas legislativas.

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Inglês, árabe, francês, bengali, espanhol, nepalês, mandarim. Pelas ruas estreitas e íngremes da Mouraria, um dos bairros históricos do centro de Lisboa, ecoam estes e outros idiomas dos cinco continentes. Vivem nesta zona da cidade, repleta de pequenas lojas e mercearias, muitas das quais com produtos de outras latitudes, pessoas de 56 nacionalidades distintas. É aqui também que foi criada a Associação Renovar a Mouraria, que promove a revitalização comunitária e a integração dos moradores.

Numa semana em que a agenda do país é marcada pelas legislativas, decorre nesta organização mais uma ação formativa, desta vez sobre mediação intercultural. É ali que encontramos Júlia Neves, Ivan Bustillo e Rasel Ahammed, três dos 18 participantes na sessão. São os três imigrantes e, em comum, partilham o fascínio pelo bairro que os acolheu quando chegaram Lisboa. Com formação superior, chegaram a Portugal para trabalhar.

De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, viviam em Portugal, no final de 2021, 771 mil estrangeiros, mais 109 mil pessoas do que no anterior. A maioria vem do Brasil (184 mil), seguindo-se o Reino Unido (46 mil), Cabo Verde (37 mil), Roménia (30 mil) e Ucrânia (29 mil). São, sobretudo, pessoas de faixas etárias jovens (entre os 20 e os 49 anos), e, portanto, em idade ativa e fértil.

De empregada de café a bolseira de investigação

Dos três, foi Júlia quem chegou primeiro, em 2012. Oriunda do Brasil, e com um diploma em Psicologia, chegou a Portugal com uma amiga para dar alguns concertos em algumas cidades – é flautista. Nessa altura, não planeava ficar na Europa, mas ficou encantada com Lisboa. “Foi uma sensação de liberdade. Gostei muito das pessoas e da cidade e decidi ficar mais um pouco. Arrumei um trabalho num café e inscrevi-me num curso”, conta a brasileira, hoje com 35 anos.

Alguns meses depois de ter aterrado em Lisboa, Júlia Neves conseguiu um emprego como professora numa escola de música e, mais tarde, numa associação. Recorreu a trabalhos na área da restauração, sempre que precisou de equilibrar as contas. Trabalhou e estudou em simultâneo, durante algum tempo – graças ao mestrado que concluiu no ISCTE, é hoje bolseira de investigação na área da Psicologia.


Este domingo, vai votar pela primeira vez, depois de ter conseguido obter cidadania portuguesa – 66% dos estrangeiros que vivem em Portugal têm direito de voto, mas apenas 8% estão recenseados. A poucos dias das urnas, a psicóloga confessa que não tem acompanhado muito de perto a campanha. “Sei que os partidos de direita são a favor de várias restrições sobre a imigração, mas citar nomes não sei…”, assume a psicóloga, que teve uma filha por cá, hoje com cinco anos, também ela com cidadania portuguesa.

“Conversamos várias vezes sobre este tema da nacionalidade. Ela diz: ‘Mãe, eu sou portuguesa, mas também sou brasileira? Como sou brasileira se não nasci lá?’ É muito engraçado: comigo ela fala com muito sotaque do Brasil – até mais do que eu –, mas quando brinca sozinha, fala português de Portugal.”

Mais de 10% de bebés de mães estrangeiras

Como explica Catarina Reis de Oliveira, investigadora e diretora do Observatório das Migrações, os imigrantes têm tido um papel “muito favorável” em termos demográficos. “Temos uma população estrangeira que é bastante mais jovem do que a portuguesa, com maior concentração de grupos etários em idade fértil”, diz a especialista. “No último ano, 13,5% dos nascimentos em Portugal foram de mãe estrangeira. Ora, se a população estrangeira representa 6% da população residente, temos mais do dobro da prevalência nos nascimentos do que seria de esperar.”


De acordo com o Relatório Estatístico Anual, do Observatório das Migrações, em 2020 o peso das contribuições dos estrangeiros para a Segurança Social tem vindo também a aumentar, atingindo valores de mais de 800 milhões de euros anuais, em 2019 e 2020. “A maioria dos imigrantes vem para Portugal por razões laborais”, explica Catarina Reis de Oliveira.

Foi o que aconteceu a Rasel Ahammed, que saiu do Bangladesh, o seu país de origem, à procura de melhores condições de vida. Chegou a Lisboa em 2016, na altura com 29 anos. “No início foi muito difícil obter informação credível sobre o que era preciso para ter residência legal em Portugal”, conta, dizendo que, pouco depois de chegar, se candidatou a um mestrado na área da Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa, o segundo da carreira. Para suportar as despesas, trabalhou nos primeiros anos como rececionista num hotel.

Uma história de empreendedorismo

“Com muita luta, comecei a organizar atividades para a comunidade imigrante, sobretudo na área do desenvolvimento de competências linguísticas e vocacionais”, recorda o asiático, que acabou por criar, em 2018, a Portugal Multicultural Academy Association.

A organização, sedeada na Mouraria, apoia hoje pessoas de 20 países, através de cursos de línguas, mas também de assessoria legal – além de diretor geral, Rasel é também ali professor. “Um dos principais objetivos é ajudar as pessoas a fixarem-se aqui e a contribuírem para a construção da sociedade”, diz o imigrante, que o ano passado conseguiu que a mulher e o filho se juntassem a ele, em Lisboa.

Com a pandemia, e perante as dificuldades crescentes de sobrevivência da comunidade, Rasel e a equipa criaram um banco alimentar na associação que todas as semanas ajuda 100 pessoas do bairro, alguns dos quais de nacionalidade portuguesa – o programa conta com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do Alto Comissariado para as Migrações. É no distrito de Lisboa que se concentram mais imigrantes (285 mil), seguindo-se Faro (104 mil), Setúbal (61 mil) e Porto (50 mil).

Rasel faz parte do grupo de estrangeiros que conseguiu criar um emprego por conta própria. De acordo com dados de 2020, representam 17,4% da população imigrante, um número superior ao que é registado entre portugueses (13%). Por outro lado, os dados revelam que metade dos que procuram Portugal para viver fazem parte de grupos profissionais menos qualificados e de maior risco. “Havia tradicionalmente uma relação dos trabalhadores estrangeiros com a área da construção civil e das limpezas. No entanto, nos últimos anos temos maior incidência nos serviços, em áreas como a restauração, comércio e turismo”, explica Catarina Reis de Oliveira.

Uma grande maioria procura integrar-se: 90% tem um nível avançado de português. É o caso do colombiano Ivan Bustillo, que quando chegou a Portugal, em 2019, para estudar, já dominava o idioma. Veio para concluir a tese de mestrado, curiosamente sobre o impacto das migrações no mundo, e com a pandemia – sem ter como voltar para casa – acabou por ficar.

“Descobri que é um país que oferece segurança, mas onde ainda continua a haver alguns problemas ligados à xenofobia. Como no início tinha um sotaque brasileiro muito forte, algumas pessoas achavam que eu era brasileiro e faziam comentários pejorativos”, recorda Ivan.

Meses depois de ter aterrado em Lisboa, arranjou trabalho como professor de Psicologia e Sociologia, numa escola em Cascais, e mais tarde integrou a equipa da Associação Renovar a Mouraria. Hoje lidera dois projetos na área da integração e do empreendedorismo.

“Sinto-me muito feliz de poder impactar não só a vida dos migrantes, mas também das pessoas que vivem aqui há mais anos”, diz o latino-americano de 32 anos.

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