Lisboa é o país, Coimbra paisagem e a descentralização uma miragem

17 set, 2021 - 06:47 • Fábio Monteiro

Desde o Marquês de Pombal, Lisboa tornou-se o centro do poder político, económico e judicial do país. O centralismo é um problema endémico que, mais uma vez, veio à superfície com o parecer dos juízes do Tribunal Constitucional, que consideraram que a mudança para Coimbra seria um “grave desprestígio”. Relatório preparado pela Comissão Independente para a Descentralização nunca foi debatido no Parlamento, aponta o antigo secretário de Estado João Ferrão. Já António Cândido Pereira, autor do livro “Democracia Local em Portugal”, defende que a ideia de regionalização devia sair da Constituição.

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Culpe-se o Marquês de Pombal. Ou culpe-se a monarquia. Até D. Manuel I, que governou entre 1495 e 1521, Portugal não tinha capital administrativa ou política. O rei cirandava pelas cidades do país a seu bel-prazer; D. Dinis enamorou-se por Trancoso, D. Pedro por Coimbra. Nas suas deslocações, os reis da primeira Dinastia eram acompanhados pelo chanceler-mor e pela corte – que traziam consigo, por sua vez, os documentos oficiais do reino. Onde o rei se instalava, aí era a capital do país. Lisboa, situada no nariz adunco do continente, era uma grande cidade, mas apenas isso.

É a partir de D. Manuel, que concede os forais (o que formaliza a criação de concelhias) e começa a focar-se na exploração marítima, que “o resto do país, administrativamente, começa a ser paisagem”, aponta o filósofo e escritor Miguel Real, evocando o já famoso diagnóstico de Eça de Queirós: “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.”

Dois séculos mais tarde, o Marquês de Pombal deu um contributo definitivo nesse sentido. Após o grande terramoto de 1755, concentrou no Terreiro do Paço todas as secretarias, os ministérios; centralizou definitivamente o poder político, judicial e económico em Lisboa. Algo que nem a instauração da Primeira República, em 1910, alterou. “Lisboa é o grande centro político e administrativo do país. De tal maneira, que se fez uma revolução em Lisboa e depois enviou-se por telegrama para o resto do país a dizer: olha, já não somos monarquia, somos República”, lembra, com ironia, Miguel Real.

Mesmo o 25 de Abril não foi capaz de contrariar séculos de centralismo. A tendência mantém-se hoje e há resistência à mudança. Em 2017, António Costa tentou transferir a Autoridade do Medicamento, Infarmed, de Lisboa para o Porto, mas a ideia acabou por cair: 97% dos trabalhadores opunham-se à mudança; Rui Moreira teve conhecimento da iniciativa pela comunicação social. No fim, tornou-se um embaraço político.

Mas há um caso mais recente: o parecer dos juízes do Tribunal Constitucional. Aos olhos dos magistrados, a transferência da instituição judicial para Coimbra, por proposta do PSD, constitui “um grave desprestígio”, dado que Lisboa é a “sede histórica de todos os órgãos de soberania”. (Dez juízes votaram contra, três a favor.)

O projeto de lei do PSD, que, entretanto, tornou-se um argumento político, foi debatido na Assembleia da República na quinta-feira e vai a votos esta sexta-feira. Deverá subir à especialidade, tendo em conta que o PS já anunciou que se vai abster, mas é pouco provável que sobreviva daqui a alguns meses, quando voltar a ser votada; como é uma lei orgânica, precisaria de uma maioria absoluta no Parlamento para ser aprovada.

Em todo o caso, ficou aberta a caixa de Pandora: o que pode fazer o Governo para combater o centralismo? Não há reformas por fazer?

Um problema português

Por comparação com algumas democracias federais, como a Alemanha, Portugal tem um “grande legado” de centralismo e “não tem problemas de identidade ao nível regional”. “É sabido que em muitas democracias federais, o processo de instalação de instituições políticas e administrativas foi sempre alvo de uma grande negociação. Até a começar pela capital”, lembra o politólogo António Costa Pinto.

É por isso, com algum espanto à mistura, que vê o parecer dos magistrados do Tribunal Constitucional. “Num país como Portugal considerar que a transferência do Tribunal Constitucional para uma outra cidade portuguesa é um desprestígio, salvo melhor opinião, não faz qualquer sentido”, afirma.

António Cândido de Oliveira, professor universitário jubilado e autor do livro recentemente publicado “A Democracia Local em Portugal”, partilha a mesma perplexidade. “Se tivermos um Tribunal Constitucional em Coimbra, não é só o município de Coimbra que ganha com isso, é toda a região e principalmente o país. Fica com órgãos de poder importantes, agentes de poder importantes distribuídos. Há um equilíbrio maior no país”, diz.

De acordo com o especialista, a deslocalização (ou desconcentração) de estruturas do Estado “é positiva, desde que, é claro, não criem problemas de funcionamento”.

E deixa uma nota importante para a discussão do tema: deslocalização é diferente de descentralização. No primeiro, há uma distribuição de poder, no segundo só uma mudança de local.

Mudar do nada?

Para João Ferrão, geógrafo e antigo secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades, é “natural que as pessoas reajam adversamente” à decisão de mudar de local de trabalho, de um dia para o outro, para outra parte do país. Por isso mesmo, defende ser necessário fazer “uma discussão sobre gerir a transição, preparar a mudança”.

O professor universitário, que fez parte do primeiro Governo de José Sócrates, avisa que, por essa razão, “uma estratégia de desconcentração [de instituições públicas] nunca poderá ser um conjunto de medidas, decisões casuísticas e repentistas, onde de repente se anuncia que o serviço tal vai mudar de sítio, vai perder muitas funções, porque elas irão passar para o nível regional”.

Para má gestão, já bastou o caso do Infarmed, episódio que deve ser visto “como uma espécie de laboratório”.

“Na ausência de uma estratégia, não podemos ficar com assomos mais ou menos pontuais e casuísticos que ainda por cima por não têm êxito. Anunciam coisas que não se concretizam. E ao anunciarem-se coisas que não se concretizam, cria-se um certo descrédito. E ao criar um certo descrédito, aumenta-se o fosso entre aqueles que querem manter tudo exatamente na mesma e aqueles que querem mudar tudo de um dia para o outro.”

Descentralização por fazer

Em 2018, João Ferrão integrou a Comissão Independente para a Descentralização, criada pela Assembleia da República. Ainda antes do fim da primeira legislatura de António Costa, em julho de 2019, a comissão entregou um relatório no Parlamento – que nunca foi debatido. O primeiro-ministro ainda adotou a ideia de serem os autarcas locais a eleger os presidentes das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), mas nada mais.

O antigo governante diz “ter pena” e confessa que as suas expectativas ficaram “completamente aquém” do esperado. “Tenho muita pena que o documento que foi produzido não tenha sido debatido e não se tenha a partir daí tomado uma decisão.”

“A questão para mim não é as pessoas estarem ou não de acordo com o que o relatório sugere. O problema é que o propósito do relatório, que era contribuir para um debate mais sistemático sobre a criação de regiões administrativas em Portugal, nunca se concretizou”, atira.

E acrescenta ainda: “A própria Assembleia da República, que foi quem financiou o estudo e quem no fundo acolheu a ideia e deu condições para que se concretizasse, fica numa situação no mínimo estranha porque apoiou a realização de um estudo com determinado objetivo, que depois nunca se concretizou.”

Regionalização, uma ideia falhada?

O 255.º artigo da Constituição da República Portuguesa, alinhavada em 1976, estipula a criação “regiões administrativas”. A regionalização, que deve ser vista com um passo anterior e de consolidação de um processo de descentralização, porém, ainda não saiu do papel.

A 8 de novembro 1998, António Guterres levou o tema a referendo, conforme estipulado na Constituição e colocou duas questões. Primeira: “Concorda com a instituição em concreto das regiões administrativas?” O não reuniu 2.530.802 milhões de votos (60,87%), contra 1.453.749 (34,97%) a favor. Segunda: “Concorda com a instituição em concreto da região administrativa da sua área de recenseamento eleitoral”? (Eram propostas oito regiões: Entre Douro e Minho; Trás-os-Montes e Alto Douro; Beira Litoral; Beira Interior; Estremadura e Ribatejo; Região de Lisboa e Setúbal; Alentejo; Algarve.) O não conseguiu 60,62% dos votos, o sim 34,20%.

Para o politólogo António Costa Pinto, “o que foi recusado em referendo foi em grande parte a existência de unidades políticas regionais, com legitimidade democrática.” Ao mesmo tempo, existia um receio “quer de uma parte significativa da opinião pública, quer de uma parte significativa da elite política, perante o desdobramento sucessivo de elites políticas regionais”, diz à Renascença.

Desde o 25 de Abril, os partidos políticos portugueses têm se focado mais no debate da “descentralização administrativa do que da regionalização, a criação de unidades políticas dotadas de legitimidade própria”. Por outro lado, o país “não tem entre a unidade municipal e a unidade nacional, em termos de legitimidade política, não tem nada no meio”.

A menos de dez dias para as eleições autárquicas, o politólogo António Costa Pinto diz ser “interessante” a ausência de debate sobre regionalização e descentralização. “É muito interessante como isso tem estado fora da agenda política dos próprios candidatos”, aponta. Porquê é que isso acontece? Bem, tanto o PS como o PSD estão escaldados. Já esteve na agenda política de ambos e saiu também.

Para António Cândido de Oliveira, professor universitário, a ideia da regionalização “já não devia estar na Constituição”. “Não é consensual. Quem pôs na Constituição há 45 anos a regionalização e passados 45 anos não a cumpriu, deve retirar a obrigatoriedade de constituição de regiões que está lá. Não tem sentido. Os portugueses estão divididos. Na Constituição só deve estar aquilo que é consensual”, afirma.

João Ferrão tem uma posição diametralmente oposta. Retirar o conceito de região administrativa da Constituição só serve as pessoas que são contra a regionalização. “Então é que nunca haverá, é óbvio. Mas isso nem me parece que tenha qualquer sentido. O argumento 'não funcionou até agora, ainda não conseguimos criar regiões administrativas, então vamos desistir e tirar essa possibilidade da Constituição. Penso que esse não é o raciocínio. Se as pessoas são contra, percebo que não queiram que sejam criadas. Mas para isso vai haver referendo. Nós não estamos a resolver nada retirando a possibilidade de existirem regiões administrativas da Constituição”, defende.

A oportunidade faz a política

A escolha de Rui Rio levar a debate na Assembleia da República um projeto de lei para a transferência do Tribunal Constitucional para Coimbra, quando falta pouquíssimo para as eleições autárquicas, não é inócua. A autarquia da cidade dos estudantes, liderada pelo socialista Manuel Machado, é uma das que está no limbo de cair para o PSD, caso a noite eleitoral de dia 26 corra aquém do esperado.

Nos últimos dias, o PCP e o Bloco de Esquerda acusaram a iniciativa do líder do PSD de ser “eleitoralista”. Mas isso não é necessariamente mau, defende André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, à Renascença.

“Como é normal em política, há aqui um aproveitar das circunstâncias e do momento, mas isso não me parece em si criticável. Nesse sentido, este é um bom momento para lançar este tipo de propostas e este tipo de discussão. Precisamente pelo contexto das eleições autárquicas, que até a torna mais difícil e politicamente custoso evitar o tema”, diz.

Além disso, gera ao PS um problema. “Vem de alguma forma forçar essa discussão, o que me parece positivo.” Até porque o parecer dos juízes demonstra algum “desfasamento” face à realidade e um problema sistemático. “Há esta ideia, que não é só uma ideia, de proximidade física ao poder e cultivo do poder, que certamente não é desfeita de passar o tribunal para Coimbra.”

Não foi à toa que o juiz Manuel Costa Andrade – um dos três que votaram a favor da transferência – escreveu na sua declaração de voto: “O tribunal tanto pode colher e cultivar dentro ou fora, perto ou longe de Lisboa. A maior vizinhança com os paços reais permitirá porventura ‘tomar chá com a rainha’ (Luhmann) mas não acrescentará um átomo ao prestígio do tribunal.”

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